Depositadas dentro daquela velha caixa de papelão, que cheirava a passado, de modo um tanto desorganizado, a misturar várias camadas de tempo, inúmeras fotografias. Umas mais novas, outras bem antigas, algumas desbeiçadas, amassadas, amareladas, decoradas com molduras cheias de rococós; faltando uma pontinha aqui, pedaços ali; um rasgo a cortar outra bem ao meio, decepando um braço, cuja mão ficou atada a uma figura feminina, enquanto o restante do corpo (masculino) ficou solitário e manquitola na outra parte da foto (eram amigos, amantes?). Rostos jovens, velhos, uma mantilha, que originalmente deveria ser de renda branca, a ornamentar a cabeça de uma noiva, mas que ali, na sépia, parecia empoeirada. Um casal sentado no banco de praça de alguma igreja matriz interiorana, posando ao lado de um cipreste baixo, esculpido à semelhança da chama de uma vela votiva. Parecem felizes – devem ter sido, ou ao menos assim estavam naquele momento registrado pela foto. Homens de bigode, com ar sisudo, metidos em jaquetões, ao lado de numerosas famílias, com mulheres e crianças, todos vestidos de maneira solene (iam à missa?). Parecem tristes: não há sorrisos (quando sorrimos estamos felizes?). Crianças barrigudas, com umbigos invertidos, brincando em meio ao barro, nos barrancos de algum arrabalde – estão sujas, descabeladas, descalças. São crianças, afinal.

Em algumas fotos – talvez as mais antigas –, luz e sombra, preto e branco apenas. Noutras, há cor, mas a luz parece chegar ali na imagem retratada, como que vindo de uma longa caminhada, de anos: uma luz cansada.

Ao meu lado, a minha avó:

– Este é o tio Alfredo.

Apontando para um determinado rosto numa foto pequenina – mais um dentre tantos outros rostos que ali vejo, mas não reconheço.

– Esse aqui é seu pai, olha só, quando tinha 2 anos,

Meu pai pelado, deitado de bruços, com a cabeça levantada, olhando ao redor, curioso.

– e nesta aqui você tinha 5 anos.

Exceto pelos olhares das duas crianças nas fotos – o meu é triste –, parecemos ser o mesmo garoto, apenas retratados em idades diferentes.

– Olha seu avô como estava novinho

separando uma foto, com cuidado, afastando-a das outras do modo como selecionava, quando fazia a escolha do arroz, os grãos bons, segregando estes daqueles que estavam danificados.

– nesta foto!

Admiro-me de vê-lo ali na foto, ainda vivo, saudável, pois a última lembrança que tenho dele

– Esta outra é de pouco antes do dia em que ele faleceu.

é de pouco antes de seu falecimento – quando já não era mais meu avô, apenas uma sombra do homem que ele fora, que teimava em se apresentar encarnada no frágil corpo dele.

Numa foto grande, a cena de uma mesa posta, repleta de comidas e bebidas, rodeada de gente – todos sorriem. Devia ser Natal. Sim, pela quantidade de gente só podia ser: era a única data em que toda a família se reunia. Éramos…, bem, nem todos ali são da família: há amigos, vizinhos (amigos?), agregados. Hoje somos bem menos numerosos: muitos acabaram varridos pra baixo do tapete a que chamam terra pelas vassouradas dos anos.

– Quer um café, filho?

Indaga-me minha avó, já se levantando.

– Quero.

Acompanho-a e vamos juntos até a cozinha,

– Senta aí. Eu passo rapidinho um café quentinho pra gente.

onde nada parece ter mudado: sobre a mesa, o mesmo naperon de crochê, e sobre este o conjunto de chá que dei a ela de presente em algum dia das mães; na cristaleira, os mesmos copos de vidro granulado coloridos; xicarazinhas de porcelana branca, com bordas de esmalte dourado.

– Quer uns bolinhos?

Depositando bem à frente de meus olhos um cesto de bolinhos de chuva amanhecidos, cobertos com uma fina camada branca de açúcar, como se estivessem sido deixados lá fora sob o sereno da noite.

Servi-me de um, dois, três – estavam frios, mas deliciosos.

– Vê se está bom de açúcar.

Oferecendo-me o café feito em um coador de pano, numa xicarazinha de porcelana branca, com borda de esmalte dourado,

– Acho que adocei demais.

pousada sobre um pires de porcelana de um outro padrão, outra cor, que não ornava com o da porcelana da xicarazinha do café.

Não respondi. De repente, vi-me ali à mesa, junto dela, como numa daquelas fotos antigas que há pouco estávamos a vasculhar na velha caixa de papelão, e que tanto diziam, conquanto delas não se ouvia nenhum som.

Um dia, pensei, também eu e ela seremos nada senão fotografias dispostas em uma velha caixa de papelão, e as memórias que estas evocam.

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