É final de tarde, a noite se avizinha, e como ocorre todos os dias, sem distinção entre dias úteis, sábados, domingos ou feriados – havendo mesmo uma predileção por estes últimos, pois neles o movimento de clientes é maior –, Antônio e Conchita estacionam seu carrinho de pipoqueiro em frente a um dos últimos cinemas de rua de São Paulo – na rua Augusta. O cinema dispõe, em seu hall de entrada, de um pequeno comércio que, entre outros comes e bebes, também oferece pipocas à venda, mas muitos clientes preferem adquiri-las do simpático casal de pipoqueiros, lá fora, talvez por acreditarem que as pipocas feitas por eles, posto que preparadas em um antigo carrinho de pipoqueiro, sejam mais saborosas. São pessoas para as quais o dedo da tradição está sempre a indicar um caminho mais conhecido, confortável, e, portanto, para elas, mais desejável.
Se nada no modo de preparo e na aparência das pipocas, ou mesmo em relação ao carrinho de pipoqueiro em si, mudou ao longo de 40 anos – tempo em que Antônio e Conchita estão casados e, juntos, à frente do negócio –, tal não se pode afirmar em relação ao casal, pois ambos mudaram muito e já se encontram bastante fragilizados por idades relativamente avançadas: Antônio tem 75 anos; Conchita, 70.
Tanto o carrinho de pipoqueiro quanto as pipocas parecem orientados por um relógio muito próprio, que parou em determinado momento do passado, permanecendo estanque em um tempo que já não mais existe.
Processo este que lhes acomete com naturalidade, ao contrário do que se nota quando voltamos os olhos para a lanchonete do outro lado da rua – decorada com motivos dos anos 50 –, e a barbearia situada dentro de uma galeria de lojas no quarteirão de baixo – que também busca naquela década inspiração para sua decoração. Por serem fruto de um esforço deliberado – e por vezes até afetado – de representar um tempo passado, a lanchonete e a barbearia acabam, por fim, colhendo artificiosos pastiches como resultado.
Em 40 anos de parceria afetiva e profissional, Antônio e Conchita nunca esboçaram nenhum sinal de descontentamento de um em relação ao outro, ou vice-versa – nunca nem mesmo brigaram. Falavam-se pouco, é verdade. Embora Conchita fosse muito extrovertida e falante, com Antônio a comunicação dava-se predominantemente em planos silenciosos: olhares, gestos.
Assim, não se sabe ao certo por qual motivo, naquele frio final de tarde de outono, por volta das 18h,
(horário em que, no passado, os homens punham-se a fazer seus exames de consciência)
quando Antônio e Conchita há pouco tinham estacionado o carrinho de pipoqueiro em frente ao cinema, enquanto Conchita servia uma primeira cliente com um saco grande de pipocas, virou-se para Antônio e, numa delicadeza de rendas, perguntou-lhe:
– Tonho,
Assim ela carinhosamente o chamava.
– você é feliz comigo?
Antônio estava então a pensar na morte da bezerra, enquanto seus olhos passeavam pelo vai e vem de pessoas que, apressadas, subiam e desciam a rua, entravam e saiam do cinema.
– Tonho?
Olhou para Conchita e ela insistiu:
– Diga-me: você é feliz comigo?
Conchita colocara essa questão a Antônio, sabendo de antemão que o efeito poderia ser o mesmo de uma flecha lançada contra um alvo de um côncavo infinito, tal qual um buraco negro. Antônio era um homem muito calado. Mas Conchita precisava dar voz àquela sua angústia, mesmo que essa voz, ao final, pudesse terminar ficando sem o eco de uma resposta qualquer de Antônio, que, não se sabe dizer se deliberadamente ou não, poderia deixar a pobre esposa a falar sozinha, tal como esses loucos que andam por aí, pelas ruas, esbarrando a miséria emocional de seus solilóquios nas muralhas da indiferença das gentes e da cidade.
Talvez, contudo, por força do efeito surpresa trazido pelo inesperado da questão, Antônio esboçou uma reação, perguntando a ela, com surpreendente calma:
– Como assim, Conchinha?
Era o apelido carinhoso com o qual a chamava.
Conchita então servia mais uma senhora, que aparentemente tinha a mesma idade dela. Ao entregar-lhe o saco de pipocas, Conchita agradeceu-lha com um apressado:
– Obrigada!
E retomou:
– Antônio,
Desta vez com a voz mais pausada.
– … vivemos juntos há 40 anos e nunca lhe perguntei isso, pois sempre me pareceu que você fosse feliz comigo,
Conchita media as palavras com bastante cuidado.
– … mas ultimamente tenho notado você distante.
– Eu!?
– Sim, você! … sentimentalmente ausente. E todo aquele carinho, afeto, cordialidade e… desejo que costumava ter para comigo parecem
Hesita por alguns instantes antes de finalizar.
– … perdidos.
Antônio, naquele instante, olhava de soslaio para uma rapariga alta, feita ainda mais alta pelo efeito dos sapatos de salto agulha que calçava, de abundantes cabelos descoloridos – que mais pareciam um chumaço de palha pronto para ser incendiado –, com ombros largos, que descia pela calçada falando ao celular com um timbre de voz forte de barítono, abafando o zum zum zum dos demais pedestres que passeavam por ali. Quando Antônio voltou os seus olhos para Conchita notou, envergonhado, o olhar de desaprovação dela. Disse-lhe então:
– Conchinha,
O olhar de Conchita deixou de lado o tom de reprovação e ganhou a languidez do olhar de uma namoradeira de gesso. Seus cabelos desgrenhados e grisalhos teimavam em cair sobre seus olhos, e cada vez que ela os afastava, aproveitava para enxugar – e assim disfarçar – pequenas lágrimas que começavam a deles brotarem, teimando em descer pelos seios pálidos de sua face, numa tristeza de noite infinita.
Um jovem casal aproximou-se do carrinho de pipocas. Ele pediu um saco de pipocas grande. Ela tentou convencê-lo que a média seria suficiente. Acabaram por fim discutindo e não levando nenhuma das opções. Homens e mulheres, até nisso tão distintos.
– vê essas pipocas que vendemos aqui há tantos anos?
Conchita olhou para um resto de pipocas que sobejava dentro do carrinho – pareciam frias e murchas, como cravos brancos há muito abandonados sobre um túmulo.
Havia naquele instante menos gente na calçada em frente ao cinema. As sessões das 18h30 já tinham começado, levando para dentro das salas de projeção boa parte dos que por ali ainda circulavam. O entorno estava tomado da melancolia de uma última janela que à noite se apaga na fachada de um velho edifício no centro da cidade.
– Sim…
Ela fez que entendeu – ao menos se esforçou. Estava confusa. O cheiro das pipocas, que sempre lhe pareceu algo inebriante, naquele início de noite tinha sobre ela um efeito entorpecente.
O tempo parecia suspenso, como se estivesse a aguardar o movimento da batuta do regente de sua orquestra para seguir em frente com sua desarmônica sinfonia – a sinfonia da vida –, pautada pela nota altissonante do caos.
Antônio prosseguiu:
– Foi com a venda delas que conseguimos nos manter e criar nossos filhos.
– Oh, Antônio.
(parecia comovida)
– E hoje temos um casal de filhos exemplar, não é mesmo?
Ele perguntou já sabendo que a resposta dela não poderia ser outra senão:
– Sim, são um homem e uma mulher exemplares.
– Temos nossa casa própria, nosso carro, e tudo isso foi construído com a venda dessas pipoquinhas,
Exceto pelo modo carinhoso com o qual a chamava:
– Conchinha.
Antônio não era homem de usar diminutivos. Conchita, portanto, estranhou o:
– pipoquinhas…
– que há anos são preparadas e vendidas da mesma forma.
Perdida, sem saber aonde Antônio queria chegar com aquela cantilena toda sobre as pipocas, Conchita, ansiosa:
– Tonho, responda-me simplesmente: você é feliz comigo?
Um periquito azul, que havia acabado de fugir de um realejo que ficava ali na esquina de cima, onde há anos cumpria pena oferecendo, às pessoas, esperança dentro de papelotes, foi visto, naquele ato, voando rente às cabeças de Antônio e Conchita. Seu dono, um senhorzinho de boina de feltro verde na cabeça, com a fralda da camisa para fora do cinto, vinha correndo atrás dele, desembestado, mas logo viu-se forçado a desistir da perseguição quando, desolado, acompanhou com os olhos seu pequeno detento de plumas azuis desaparecer, livre, mimetizado pelo azul do céu.
– Conchinha, você para mim é como essas pipocas: a certeza de continuidade. Sei que amanhã, salvo se morrermos um ou outro (ou ambos), estaremos aqui a vender essas mesmas pipocas, ganhando de forma justa nosso dinheirinho,
(o diminutivo de novo)
– e isso para mim é a melhor síntese de felicidade: viver sem surpresas. A mesma esposa, a mesma rotina, no mesmo local. Assim tem sido há 40 anos e assim continuará sendo. Por quantos anos mais?
Tendo o olhar perdido, Conchita suspirou um:
– Não sei…
E Antônio por fim sentenciou:
– Deus queira que por muitos ainda, minha Conchinha.
Ele então abraçou o rosto dela com as suas mãos em concha e beijou sua testa, produzindo um estalinho, ouvido apenas por eles dois, tal como um segredo de alcova.
Diante das palavras de Antônio, Conchita sentiu-se sufocada – percebeu-se de um instante para o outro
(num estalinho)
como um passarinho na gaiola, que há 40 anos ficara presa a um homem e a uma rotina de trabalho e de vida. Vislumbrou, como que numa epifania, o quão diminutos e restritos
(inexistentes?)
tinham sido seus horizontes nesse tempo todo. Os diminutivos que Antônio utilizara naquela conversa então lhe fizeram sentido – um sentido triste e melancólico, como um domingo à noite.
(por acaso, era mesmo domingo à noite)
Conchita olhou a cidade a seu redor, viu o quanto ela mudara e comparou com o quanto ela permanecera sendo a mesma pessoa
(apenas bem mais envelhecida)
fazendo a mesma coisa, na companhia do mesmo homem.
(até o uniforme branco que ambos usavam, parecido com uma sobrepeliz, era o mesmo nesses anos todos)
Aquilo tudo a despertou para a vida tediosa e sem esperança de mudança que tinha vivido e ainda vivia. A única possibilidade de mudar seria, como o próprio Antônio mencionara em suas palavras, morrer ele ou ela, ou ambos.
(Parece que vives sempre de uma gaiola envolvida)
Num gesto de rompante, Conchita jogou o guardanapo com o qual limpava as mãos, sujas do óleo das pipocas, sobre o carrinho de pipoqueiro, e saiu pisando duro, rua abaixo, sem olhar para trás,
– Conchinha!?
deixando Antônio a falar sozinho.
Logo mais à frente, duas esquinas depois, Conchita encontrou-se com o velhinho do realejo. Ele estava lá, parado, enxugando, com a fralda da camisa, as lágrimas que vertiam de seus olhinhos castanhos, ternos como olhos de bebê: chorava a perda de seu periquito azul. Conchita apiedou-se dele e o abraçou, trazendo a cabeça do velhinho para o conforto dos fartos seios dela.
No dia seguinte, vestida de colombina, enquanto o velhinho do realejo tocava o seu instrumento, no mesmo local do dia anterior, Conchita, presa ao carrinho dele por uma corda de tule púrpura, atada a uma coleira de miçangas coloridas, dançava e oferecia, às pessoas, esperança dentro de papelotes. Estes, que até o dia anterior eram simples e não contavam com nenhum tipo de ornamento, vinham então acompanhados, cada um, de um cravo de papel crepom vermelho.
Na frente do cinema, logo mais ali abaixo, não se via mais Antônio, não se via mais o carrinho de pipoqueiro, ambos aos quais ela estivera presa por tanto tempo. Conchita, vendo aquele espaço vazio em frente ao cinema, perguntou em pensamento:
– O que será deles?
Depois se desinteressou e nisso um sorriso de margarida desabrochou em seu rosto.
Sentiu-se finalmente livre, e a emoção a levou a tentar um rodopio, que acabou sendo frustrado pela corda de tule púrpura atada à coleira de miçangas coloridas que a mantinha presa ao carrinho de realejo.
(Parece que vives sempre de uma gaiola envolvida)
N. do A.: O título “Parece que vives sempre de uma gaiola envolvida” foi extraído de versos do poema “Mulher vestida de gaiola”, de João Cabral de Melo Neto.