Sentados lado a lado diante da televisão, acompanham, com olhos entorpecidos de cansaço e sono, as cenas da novela. As mentes de ambos trazem pensamentos dispersos, que ora pousam nas imagens projetadas no ecrã, ora nas lembranças do passado. Ali, naquela pequena casa, residiam sozinhos desde a partida do casal de filhos: primeiro, o filho primogênito, que um dia, há muito anos, desapareceu: dele nunca mais se teve notícias; depois, a filha mais nova, que, mancomunada com um sujeito nada confiável, um dia foi embora da casa dos pais sem deixar recado – nem mesmo deles se despediu. Até onde se sabe, vivia na mesma cidade, se bem que suas poucas ligações e suas ainda mais, e cada vez mais, raras visitas aos pais fizessem parecer que ela residia em alguma terra muito distante.
– Quando você vem nos visitar?
Perguntou-lhe Celina na última vez que Maria Clara, a filha, ligou para a casa dos pais. No que Maria Clara respondeu que dali a duas semanas chegaria, o que, de fato, não se concretizararia nem dali a duas semanas nem nunca mais: as duas semanas tornaram-se três, quatro, depois meses, e nada de Maria Clara aparecer. Nesse período, nem tampouco se preocupou em justificar a sua prolongada ausência. Antes desse sumiço, quando de suas raras ligações, limitava-se a perguntar à Celina, sua mãe, num tom seco:
– Está tudo bem com você e o pai?
E ao ouvir a resposta de Celina, que invariavelmente após o
– Sim.
enveredava por uma cantilena de reclamações sobre a sua saúde e a do marido, que em tudo contradiziam a afirmação anterior de Celina de que tudo ia bem, Maria Clara, sempre impaciente, encerrava a conversa com um displicente:
– Cuidem-se. Amo vocês.
e desligava antes de Celina
– Também te amamos, minha fi
terminar sua despedida.
No porta retratos, sobre a mesa de canto ao lado do sofá, ao alcance das mãos de Celina, a foto da família: ela, Antero – seu marido –, o filho primogênito e Maria Clara. Estão todos juntos ao redor do bolo de aniversário do primeiro ano de vida de Célio, o primogênito. Lá se iam pelo menos uns 30 anos desde o dia em que aquela foto havia sido tirada, na festa de aniversário de Célio, uma celebração feita de modo muito simples, pois as condições da família não permitiam, menos ainda na época, grandes dispêndios para além do essencialmente ligado à sobrevivência.
– Fazemos ao menos um bolo para a data não passar em branco.
Celina, jovem e vistosa na foto, sorri em direção à câmera. Há mais vida no olhar dela, retratada na foto, do que no olhar da Celina de carne e osso de hoje: este abatido, lasso, desesperançado.
Ao seu lado no sofá, Antero cochila, deixando escorrer uma baba branca por um dos cantos da boca. Ele em nada lembra o homem com o qual Celina, há trinta e um anos, havia se casado: um ano antes do nascimento de Célio. À época, quando Celina e Antero eram bastante jovens, ele a conquistara com sua voz pausada, que fazia contraste com a firme determinação dele para vencer na vida, outro predicado que, então, também lhe serviu para angariar a confiança e, sobretudo, o amor de Celina. No entanto, com o passar dos anos, a voz pausada de Antero foi aos poucos silenciando: as muitas dificuldades pelas quais ele e Celina, juntos, passaram pela vida, para poder criar Célio e Maria Clara, com aquilo que julgavam ser o mínimo de dignidade para seus filhos, agiram em Antero como, sobre o lustro, age a poeira que vai se depositando por cima de uma mesa de jantar, ao redor da qual, outrora, a família sentava-se, todos reunidos, para fazer suas refeições.
Uma lufada de vento entra pela janela e faz dançar a cortina de chintz, ao mesmo tempo em que agita as plumas de avestruz que, dentro de um vaso de latão, decoram um dos cantos da sala. Era com aquelas plumas que Célio costumava brincar: colocava-as às costas, por dentro do calção, de modo a imitarem a cauda do Garibaldo, no que era logo repreendido por Antero, com um tapa no traseiro seguido de um:
– Vira homem!
dito em voz grave, e não na sua habitual voz pausada.
Chorando, Célio então corria para o seu quarto, que dividia com Maria Clara, para onde Celina, em seguida, ia em seu socorro, secar suas lágrimas e oferecer-lhe consolo com sua voz calma e suas mãos sedosas
– Beba essa água com açúcar, filho. Vai te ajudar a se acalmar.
que, para ele, assemelhavam-se às mãos do padre Olavo, quando estas, sediosas, desciam em direção às partes íntimas de Célio, a fim de acariciá-las, o que o menino consentia, uma vez que, na sua idade, então 10 anos, a resultante entre as forças da culpa e do desejo favoreciam este último com folga. Os dois encontravam-se com regularidade quase diária, até que um dia acabaram pegos em flagrante atrás da sacristia da igreja de São Pedro, por Antero, que, suspeitando dos sumiços diários de Célio, sempre no mesmo horário: no final da tarde, resolvera investigar. Desde esse episódio, nunca mais nem padre Olavo nem Célio foram vistos na cidade.
A noite avançava e, em seu progresso, seguia encontrando Celina e Antero ali, sentados no sofá. Antero dorme; Celina continua acompanhando, com olhos ainda mais entorpecidos de cansaço e sono, as cenas projetadas na televisão.
(não sabe mais dizer se são cenas de uma novela)
Celina olha para Antero e, vendo-o dormir, aos poucos acaba também caindo no sono. E assim
(adormecidos?)
seguem madrugada adentro, numa noite que para eles não teve
… fim.