Demorei-me a entender e, quando finalmente o consegui, demorei-me ainda mais na tentativa de aceitar, e esta na verdade foi em vão, pois minha mente recusava-se a concluir como verdadeiro aquilo que meus ouvidos ouviram.
Não sou de falar alto. A bem da verdade, mesmo falar, falo pouco e baixinho. Às vezes, só eu sou capaz de me escutar. Sempre preferi ouvir, não apenas o que os outros têm a dizer, mas também aquilo a que chamam voz interna: sou um excelente ouvinte.
Incomodam-me sobremaneira os gritos e, se eu tenho que gritar, o transtorno é-me absoluto. Mas ali, naquelas circunstâncias, tive de fazê-lo e, assim, gritei muito e muito alto, e foi isso que custei a entender e, depois, a aceitar. Não me lembro o que gritei, pois o grito escapou-me de um modo tal, que não deixou vestígio em minha memória das palavras que usei para traduzir, sob a forma de grito, seja lá o que fosse que me impelia a gritar ali naquele momento: nem isso me lembro. Talvez a memória do grito, em si, ocorra-me ainda apenas porque minha garganta preserve o ardor e a rouquidão que o grito deixou quando de mim saiu. Estou apenas especulando. Não tenho certeza de nada. Recuso-me a tê-la: um ato de contracultura até nesse mundo em que tantos são tão seguros do que dizem, do que fazem, do que pensam…
Será mesmo assim? Na certeza, duvido.
Se já falava baixo, agora, com a rouquidão, minha voz mal se faz ouvir, mesmo que eu queira fazê-la alta, não consigo. Meu timbre de voz, grave, se antes servia a outros propósitos, nunca serviu para me ajudar a falar alto. Gritar, então, nem pensar: aquele grito foi, com todo efeito, uma exceção. E agora menos ainda, o que também me livra de ser envolvido em algo que, a meu ver, representa um dos maiores vícios de nossa época, que elegeu o grito como instrumento predominante de comunicação (comunicamo-nos?). Ao que parece, adotaram-no como a voz, por excelência, do espírito de nossos tempos. Talvez (especulo), isso ocorra com os tempos que correm por faltar-lhes, justamente, alma.
Há de fato muito ruído no mundo. Tanto que, talvez, se um dia os pássaros pararem de cantar, nem vamos mais nos dar conta disso. Alguns hão mesmo de pensar que não perdemos nada, pois nunca tiveram a chance de desfrutar desse, tão simples e ao mesmo tempo tão único, prazer ao longo de toda uma vida, vida esta, toda ela, abafada pelos sons de gritos. Uma vida sem a sedução do sussurro, sem o encanto da melodia (inclusive a dos cantos dos pássaros), sem o frescor delicado do orvalho, uma vida, enfim, sem sutileza nenhuma: crua e bruta. Tanta gritaria a nos surrupiar o silêncio necessário para nossos exames de consciência. Haveria poesia no grito? Apenas perguntando, pois também para isso não tenho respostas. E ainda que as tivesse, elas provavelmente não seriam conclusivas… e, mesmo se fossem minimamente conclusivas, não seriam definitivas… e, enfim.
Quando gritei, senti-me como de volta ao meu estado mais primevo: quando, gritando, rasguei o ventre da minha mãe ao nascer. Naquele momento, chorava também, mas o choro, ao contrário do grito, sempre foi meu companheiro, desde meu nascimento. Contudo, ele, tímido, prefere não aparecer muito em público. Costuma revelar-se apenas para mim, quando ficamos, eu e ele, juntinhos e a sós. Já chegamos ao mundo fazendo ambas as coisas: gritando e chorando. Talvez, com esse gesto, estávamos a querer que ele, o mundo, ouvisse-nos, reparasse em nossa chegada, percebesse-nos. Como nos faltavam palavras para verbalizar esse momento (éramos bebês, afinal), gritávamos e chorávamos, ou gritávamos em meio a lágrimas, ou chorávamos alto, gritando. Gritos, em geral, de algum modo servem ao propósito de nos socorrer em nossa eventual (ou, em alguns casos, nem tão eventual assim: vai ver continuamos sendo bebês) incapacidade de falar, dialogar, fazer-nos ser ouvidos, compreendidos. E amados? Talvez sim, talvez não. Não sei. E digo-lhes isso com tranqüilidade. Confesso-lhes: é-me tão mais sereno duvidar. Se essa consciência tivesse me alcançado antes, quem sabe (estou a duvidar) eu não teria gritado como gritei. Gritar, parece-me, intoxica-nos. Pode ser. Eu provavelmente estava mesmo intoxicado quando gritei. Mas do quê? Respondo-lhes, dizendo bem baixinho: não sei.

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