Logo daqui a uma hora, será oficialmente amanhã: outro dia. Digo “dia” apenas para fins de calendário, pois, ao que parece, a noite é quem ainda me fará companhia pela madrugada adentro, até que os primeiros raios de um sol incerto(vai que o dia de fato amanhece nublado…)

venham iluminar a janela do meu quarto, como uma luz avistada ao final de um longo e escuro túnel.

(mas quando nos deslocamos dentro de um túnel, vamos ao encontro da luz – aqui estou parada: a luz é que vem ao meu encontro; ela é que está no controle – não eu. Isso deveria me tranquilizar?)

Serei eu quem essa luz encontrará, ou será aquele.., aquela

(ou aquilo?)

que ao final desta longa noite, feita ainda maior

(é-nos tão relativa a perspectiva do tempo)

pelas horas em vigília, sobrar de mim?

Durante o dia, o silêncio é-me tão raro,

(quase inexistente de fato)

à noite, embora ele me circunde, esteja ao meu redor, quando sofro de insônia ele não está dentro de mim. É como se meu corpo fosse mergulhado em um mar de águas escuras e calmas, deixando minha cabeça

(que não silencia)

à mostra, por sobre a superfície, a lutar para manter-se à tona, à semelhança da cabeça de um náufrago, que, à noite, olha fixamente as estrelas no firmamento, acreditando, com certa resignação,

(eis que não lhe resta mais nada em que acreditar: a morte está à espreita, pode senti-la bem próxima, como quando alguém toca-nos no ombro)

que aquela será a última imagem que verá em vida.

Quem dera eu poder silenciar minha mente, submergir neste mar: adormecer. Mas minha mente e o sono

(esse mar)

parecem imiscíveis.

Houve um tempo, num passado não tão distante, em que o amanhecer era-me anunciado pelo canto dos pardais, que, mal o sol nascia, vinham fazer festa no cipreste que existia aqui em frente à janela do meu quarto.

(derrubaram-no)

Hoje o dia chega sem festa – apenas os ruídos da cidade vêm despertar-me.

(adormeci?)

Ainda há pouco, antes de deitar-me, enquanto banhava-me, ao abaixar-me para pegar o sabonete, que caíra no chão do box do banheiro, notei as marcas que o elástico da meia-calça havia deixado na parte superior da pele de minhas coxas.

(pareciam cicatrizes

(em brasa)

provocadas por ferro quente)

Podia-se ver, no baixo relevo encarnado,

(que se assemelhava a uma ferida aberta)

perfeitamente, os contornos barrocos da renda que ornamentava o elástico da meia-calça.

Peguei o sabonete, com ele enchi a bucha de espuma e iniciei uma vigorosa esfregação, seguindo todo o contorno das marcas deixadas pelo elástico da meia-calça, em volta de minhas coxas. Queria livrar-me daquelas marcas, mas tudo que consegui foi torná-las ainda mais evidentes sobre a minha pele. Doíam como uma tatuagem recém-feita.

(à dor emocional veio juntar-se a dor física)

As lágrimas do chuveiro, misturadas às gotas de meus olhos, caiam sobre o piso frio do banheiro, reproduzindo o som que muito me lembrava o da chuva

(fria)

que caía sobre a cidade, no final daquela tarde em que,

(encharcada)

após ter enfrentado todo o longo itinerário percorrido pelas duas conduções que eu tomara para ali estar, tendo antes pensado em desistir,

(a todo momento pelo caminho)

bati à porta da clínica médica e pela última vez respondi:

– Mário.

Ao perguntarem-me, lá de dentro:

– Quem é?

Ali, naquele lugar, decorado de maneira impessoal, fria,

(além de minha sombrinha, que tinha uma vareta quebrada, e que lá esqueci)

deixei todas as minhas economias. Para trás, também ficaram um passado, uma história, uma identidade, que, à toda evidência, não se mostravam verdadeiros

(legítimos)

perante quem eu me sentia de fato.

Quando tive alta, no dia seguinte àquele em que lá chegara, vesti-me com a única troca de roupa que levara comigo, dentro de um saco de lixo de plástico preto. Parada ali diante do espelho, no quarto de repouso da clínica, não vi mais refletida quem eu era.

(e quem eu era?)

Quando, nesse dia, a enfermeira entrou no quarto, vestindo um uniforme branco, que quase não contrastava com sua pele alva como um papel de arroz, trazendo-me o prontuário com o qual eu teria alta, chamou-me:

– Senhor Mário?

No que fiquei alguns segundos, minutos… não sei dizer,

(é-nos tão relativa a perspectiva do tempo)

a fitá-la, sem saber o que responder.

Não que meu nome tivesse mudado: continuava a chamar-me Mário. Contudo, mais do que nunca, alguém chamar-me por esse nome afigurou-se-me descabido, algo ofensivo até.

Após alguns segundos, minutos… não sei dizer,

(é-nos tão relativa a perspectiva do tempo)

pedi-lhe:

– Pode me chamar de Eva.

A enfermeira então assentiu com a cabeça, silenciosamente,

(o silêncio impalpável daqueles que não estão mais entre nós)

e entregou-me o prontuário.

Assinei-o, terminei de me vestir

(um bustiê, uma saia plissada, meia-calça, sandálias de salto alto e, na cabeça, uma diadema)

e saí pela porta como que a renascer, trazendo no rosto a expressão serena de quando morremos.

(e não a expressão de medo de quando nascemos)

Já em casa, após o banho, tendo desistido de livrar-me das marcas em minhas pernas, deitei-me: precisava descansar. Mas se no tempo em que estivera internada na clínica, graças aos sedativos que me foram prescritos, eu conseguia adormecer com facilidade, dormir agora parece uma batalha. Sinto-me amedrontada como uma criança abandonada à noite em um parque infantil deserto, a observar um carrossel que gira desgovernado. É minha cabeça a girar, penso.

(não reconheço o olhar dos cavalinhos: parecem perdidos, distantes, como o olhar das gentes na multidão)

Minha cabeça dói, meus músculos doem, meus ossos também. Após ter tentado, em vão, várias posições para dormir, eis que ao deitar-me de bruços, pelo menos consigo aliviar o incômodo que me causavam as grandes asas de borboleta, feitas de acrílico púrpura, salpicado de bolinhas brancas, que me foram implantadas no alto de minhas costas, por entre as omoplatas.

A julgar pela luz do sol que entra pela janela, está a amanhecer, já é outro dia. Não sei quem sou.

(ou o que restou de mim)

Sei apenas que não sou mais quem eu era.

(e quem eu era?)

Os ruídos da cidade invadem meu quarto, assim como antes o invadia o canto dos pardais.

(adormeci?)

Abro a janela, miro o sol a nascer por detrás dos prédios e resolvo estrear minhas novas as as.
  

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