Logo no início de “O Grande Hotel Budapeste”, filme de Wes Anderson, baseado na obra de Stefan Zweig, o narrador-personagem afirma que se enganam aqueles que pensam que os escritores passam as 24 horas do dia transbordando de inspiração, e que eles são uma verdadeira fonte de conhecimento e cultura, quando, na verdade, ainda nas palavras daquele narrador-personagem, escritores se alimentam de histórias verídicas, roubando da realidade pessoas que mais tarde se transformam em personagens. Não diria que qualquer dessas afirmações seja sempre verdadeira – pelo menos não (definitivamente não) no caso deste diletante escritor que vos escreve. A crônica a seguir, todavia, vai ao encontro justamente da segunda afirmação, pois teve sua personagem inspirada numa figura da vida real, encontrada por mim numa reportagem da BBC News (“Idosas viram prostitutas para sobreviver na Coréia do Sul” – http://migre.me/kcKKs). É de uma das entrevistadas por essa reportagem a seguinte declaração: “Estou com fome, não preciso de respeito, não preciso de honra, só quero fazer três refeições por dia”. Apenas para melhor situar o leitor que porventura não quiser ler a reportagem, esclareço que estas palavras foram ditas por uma senhorinha sul-coreana, que, após ser abandonada pela família, foi buscar seu sustento na prostituição. Tal fato reproduz um drama humano cada vez mais comum naquele país, onde os “jovens dizem não ter mais condições de sustentar os pais em uma sociedade altamente competitiva.” A história a seguir foi inspirada nessa senhora.
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Dona Cidinha, aos 70 anos, é uma dessas senhorinhas cujo peso da idade as fez ficar delicadas e pequeninas como uma codorna. No caso dela, essa semelhança faz-se ainda maior, dado que tem suas costas envergadas numa curvatura similar ao do dorso daquelas avezinhas. Ela estava ali, numa esquina movimentada da área central da cidade – aguardando seu primeiro cliente da noite –, em pé, em meio a travestis e outras prostitutas. Vestia um charmoso vestido negro, estampado com pequenas poás brancas, calçava nos pés um par de tênis de academia, fluorescentes e multicoloridos, e trazia à mão direita uma sombrinha, que lhe servia como uma bengala.
Há 3 meses, havia sido abandonada por sua única filha, Maria Aparecida dos Nós – Maria Aparecida por parte de mãe, e dos Nós por parte de Nossa Senhora Desatadora dos Nós, de quem Dona Cidinha era devota desde quando o pai de Cida dos Nós, como sua filha era mais conhecida, a abandonara, ainda antes de a menina nascer. A filha, aos 19 anos, fugiu com um alemão que conhecera num barzinho da Vila Madalena, e nunca mais foi vista, nem tampouco notícias dela foram recebidas nesses 3 meses. Cida dos Nós era a responsável pelo sustento do pequeno apartamento, no qual ambas residiam de aluguel. Com seu sumiço, Dona Cidinha, já aposentada e sem ninguém a quem recorrer (não tinha mais parentes e amigos ou amigas vivos – Cida dos Nós era a única pessoa com a qual ainda contava), viu-se na iminência de uma ordem de despejo por falta de pagamento do aluguel.
A fim de evitar o constrangimento que seria ver-se posta para fora do apartamento, preferiu sair antes do despejo bater-lhe à porta. Colocou seus poucos pertences dentro de uma grande sacola e foi viver na rua, onde, na primeira noite, ainda ensaiou uma reza para sua santa de devoção, Nossa Senhora dos Nós, mas o cansaço a pôs a dormir antes mesmo de terminar a oração.
Quando os primeiros raios de sol começaram a lamber seu rosto, pensou que estava vendo aquela luz da qual tanto falam os que tiveram experiências de quase morte. Mas era apenas o início de uma manhã ordinária, para a qual despertara com uma extraordinária fome. Saiu a pedir, de janela em janela, perante os carros que paravam no cruzamento, ali próximo, para aguardar a abertura do semáforo. Mas de seus motoristas recebia apenas a indiferença dos vidros fumês fechados.
Uma travesti, de heróica elegância, que por ali passava em um conversível branco, a caminho do cabeleireiro, vendo aquela senhorinha, ali, em tão comovente sofrimento, teve compaixão dela. Dona Cidinha, de algum modo, a fazia lembrar-se de sua falecida mãe, cuja fotografia, plastificada, a travesti trazia guardada dentro de sua bolsa. Quando Dona Cidinha aproximou-se do conversível branco, a travesti a recebeu com um largo sorriso, expondo-lhe o brilho e a alvura impecáveis de suas facetas de porcelana.
– A senhora está sozinha, com fome?
Dona Cidinha hesitou por um instante: não sabia o que responder, dado que a questão fora dupla e não sabia colocar, em um rol de prioridades, o que lhe doía mais, se a fome ou a solidão – ou ambas em igual nível de sofrimento.
– Sozinha e
Aquilo tudo para ela era muito novo.
– com fome.
Ao ouvir isso, uma lágrima escorreu do olho direito da travesti, à maneira de um pingo de parafina numa vela acesa, borrando levemente sua maquiagem. Borraria ainda um pouco mais quando ela foi enxugar a lágrima com a mão.
– Entre aqui!
Convidou Dona Cidinha a entrar e sentar-se no banco de passageiros do conversível branco. A travesti, ao final, teve de sair para ajudá-la, pois Dona Cidinha, por si só, não conseguira dar a volta ao carro e entrar antes do semáforo abrir, e, com este aberto, o frenesi das buzinas e dos sons dos aceleradores dos carros ali ao redor já se fazia ensurdecedor. Com ambas já dentro do conversível, Dona Cidinha e a travesti,
– Qual a graça da senhora?
– Maria Aparecida, mas pode me chamar de Dona Cidinha. E a sua, minha filha?
– Lindaura.
cujo nome agora sabemos, ficaram a mobilhar o silêncio, enquanto rodavam pela cidade, como se fossem amigas de longa data.
– Prazer.
Lindaura cancelou seu cabeleireiro e voltou para seu apartamento, ali na Rua Itupeva, levando consigo Dona Cidinha. Lá chegando, ofereceu-lha um vasto café da manhã, banho e novas roupas. Tinha praticamente todas as roupas de sua falecida mãe ainda guardadas em uma caixa plástica, ao lado de uma antiga penteadeira, no seu quarto, sobre a qual havia uma infinidade de perfumes e cremes de beleza. Em cima da caixa plástica, uma toalhinha de crochê fazia o papel de cama para um gatinho de pelúcia, de olhos tristes de boneca, cuja calda, de longos pelos brancos, envolvia-lhe o corpo tal como uma estola.
Dona Cidinha, pelo resto daquele dia, acompanharia Lindaura onde quer que esta fosse, sempre ouvindo dela as histórias de uma vida que, para além da fina superfície de sua heróica elegância, era puro sofrimento físico e emocional, cada qual, à sua respectiva maneira, responsável por profundas e, em alguns casos ainda cálidas, cicatrizes naquele ser humano, cujo nome, Lindaura, só depois Dona Cidinha seria informada de que se tratava na verdade do nome de guerra
– Fui crismada Antônio Pedro.
de um homem,
– Meu pai era devoto de Santo Antônio, e minha mãe, de São Pedro.
com a idade para ser
– Daí o Antônio Pedro.
seu filho.
E, como tal, Lindaura acabou sendo adotada por Dona Cidinha, embora não fosse de todo errado dizer que Dona Cidinha é que acabara sendo adotada como mãe por Lindaura. O resultado, na prática, como hão de notar, dá no mesmo.
Dali em diante, passaram a fazer tudo juntas, unidas como unha e carne.
À noite, porém, quando Lindaura saía para o trabalho, Dona Cidinha – que até então nem desconfiava que trabalho era esse – ficava no apartamento. Sentia-se só, pois dormia pouco – não mais que 3 horas por noite –, e todo o restante do tempo ficava a pensar na vida, enquanto jogava paciência no computador de Lindaura. Certa noite, acabou adormecendo sobre o teclado e, quando acordou, viu diante de si, expostas no monitor, diversas fotos de Lindaura, em poses sensuais. Em outras fotos, havia mesmo pornografia: Lindaura aparecia com parceiros masculinos, desempenhando papéis sexuais que, na concepção de Dona Cidinha, seriam – ou ao menos deveriam ser – exclusivamente masculinhos.
Dona Cidinha ficou por alguns instantes como que hipnotizada pela visão daquelas imagens. Saiu do transe somente quando ouviu o som dos saltos de Lindaura aproximando-se da porta da sala, no hall de entrada do apartamento – era quase manhã. Desligou rapidamente o computador e correu para o lavabo, a fim de pegar um lenço de papel e limpar a baba que, ao cair de sua boca enquanto dormia, sujara de leve o teclado do computador.
– Bom dia, mãe!
Era assim que Lindaura a tratava.
– Já acordada?
– Acabei de acordar, filha.
Era assim que Dona Cidinha a tratava.
Mais do que simplesmente despertada de seu sono, Dona Cidinha via-se também acordada para uma realidade que lhe era distante: há muito tempo, desde a noite em que ela e seu parceiro fecundaram o que depois viria a ser Cida dos Nós, que ela nunca mais praticara sexo com ninguém – nem com ela mesma. Sentiu assim, por ocasião do contato com aquelas fotos, e com a realidade que elas enfim revelaram, correr pelo corpo um certo vigor de juventude.
Com naturalidade e sem adotar nenhum tom de julgamento, conversou com Lindaura a respeito de sua profissão.
– Ganha-se bem?
Quis saber, deixando escapar um quê de ambição,
– Sim
legítima até, para quem, há pouco, tivera chegado ao fundo do poço da pobreza material
– e eu me divirto muito fazendo o que faço.
e da descartabilidade social.
– Acabo conhecendo muitos homens interessantes, que me presenteiam com momentos, histórias e mesmo presentes materiais maravilhosos.
Na noite daquele dia, que no momento desse diálogo estava apenas começando, encontraríamos Dona Cidinha, como no início desta crônica, vestida com um charmoso vestido negro estampado com pequenas poás brancas, calçando nos pés um par de tênis de academia, fluorescentes e multicoloridos, trazendo à mão direita uma sombrinha, que lhe servia como uma bengala. Junto dela, Lindaura, em um elegante vestido de cetim verde-esmeralda, que descia até a uma altura um pouco acima de seus joelhos. Ambas estavam em pé, em meio a outros travestis e outras prostitutas, paradas em uma esquina movimentada da área central da cidade.
Um senhor, vestindo um distinto terno de linho branco, tendo sobre a cabeça um chapéu panamá da mesma cor, aproxima-se de Dona Cidinha. Esta logo nota – e vê-se seduzida por – seu belo peito, parecido com o de um pássaro columbiforme, destacado ainda mais por um plastron que ele trazia preso ao pescoço por um alfinete com cabeça de madrepérola. Acomodava em seu braço esquerdo, dobrado como um gancho, um gato persa, branco, de ar entediado. O senhor para Dona Cidinha:
– Sua graça?
Dona Cidinha, a essa altura, fazia carinhos na cabeça do bichano, e este agradecia em sua linguagem de ronronados, semicerrando os olhos à maneira de um filatelista.
– Bárbara.
Respondeu-lhe. E o senhor para ela:
– Altidore, prazer.
Enquanto, num gesto de vênia, trazia a mão de Bárbara para junto de seus lábios, a fim de beijar-lhe o dorso.
– Prazer.
Ela disse-lhe.
Saíram dali de mãos dadas, a caminhar tranquilamente pela rua. Duas figuras que, pela idade e trajes, eram tão estranhas àquele entorno, que pareciam andar tendo ao fundo um cenário artificial, montado sobre um chroma key.
– Mãe?
(Vinha ela pela rua, caminhando tatibitate)
Lindaura tentava acordar Dona Cidinha,
– Mãe!
(Levava a mãozinha na cintura, toda cocotinha)
que dormia agarrada ao gato de pelúcia, o guardião da caixa plástica na qual eram guardadas as roupas da falecida mãe de Lindaura, as quais Dona Cidinha tomara posse.
(Àqueles que a xingavam de biscate)
– Oi…
(Respondia-lhes: “biscate é a vovozinha”)
– Acorde. Você está bem?
– Ora, pois sim, por quê?
Deixando o gato de pelúcia de lado.
– É que você estava falando sozinha enquanto dormia. Devia estar tendo algum pesadelo.
– Será!? Acho que não.
Dona Cidinha já não se lembrava mais do que sonhara.
– Acorda, acorda. Vamos tomar café.
Dona Cidinha levantou-se
– Já vou indo, minha filha.
e foi até o lavabo, a fim de se recompor.
– Te espero lá na cozinha então.
Momentos depois, quando Dona Cidinha entra na cozinha, e Lindaura a vê vestida com um charmoso vestido negro estampado com pequenas poás brancas, calçando nos pés um par de tênis de academia, fluorescentes e multicoloridos, trazendo à mão direita uma sombrinha, que lhe servia como uma bengala, admirada, Lindaura exclama:
– Mãe, a senhora está bárbara!
Lisonjeada, Dona Cidinha dobra os joelhos, num gesto de vênia, levantando as abas do vestido, como um curto abrir de asas de uma pequena codorna.
Um pombo branco, pousado sobre o parapeito da lavanderia ali ao lado da cozinha, que a tudo ali dentro acompanhava com seus olhinhos vermelhos, assustou-se com o gesto de Dona Cidinha, bateu asas e voou até desaparecer em meio aos prédios, engolido pelo cinza, do modo como a memória que os outros têm de nós é engolida pelos anos, à medida que estes passam, depois que daqui nos vamos.