Um São Sebastião de louça, crivado de flechas, com seus olhos vitrificados, dava as boas-vindas a quem chegasse à entrada do apartamento, depois de percorrer o longo, escuro e frio corredor, desde a saída do elevador, passando pelos impenetráveis olhos mágicos dos apartamentos vizinhos, que observavam, indiferentes, quem chegava e saía, do alto das muitas portas que haviam pelo caminho. Ao lado do santo, havia uma Comigo Ninguém Pode ressecada, plantada em um vaso de barro vermelho, esmaltado, trincado na vertical à semelhança de um coração partido. Sobre os cantos da porta do apartamento, fechada à chave, era possível ver algumas teias de aranha, a denunciarem que há muito tempo

(semanas… quiçá meses)

ninguém por ela entrava ou saía.

Um capacho de sisal sintético, surpreendentemente limpo e com as cores do arco-íris ainda vivas, impedia qualquer visitante de concluir que ali havia apenas sinais de abandono e tristeza.

Nenhum vizinho, nem os porteiros, tampouco o pessoal da limpeza do prédio sabia do paradeiro de quem ali teria vivido e cultivado aquele cenário à entrada daquele minúsculo apartamento, tipo quitinete. Naquele enorme condomínio, ninguém se olhava nem se via: os moradores eram invisíveis entre si. Viver ali era como estar sozinho numa multidão.

Certo dia, chamados pelo síndico – que andava cabreiro com as dívidas de condomínio daquela unidade que iam se acumulando –, os bombeiros arrombaram, sem grande esforço, a porta daquele apartamento. Lá dentro, a janela da sala, aberta e nua, deixava entrar uma brisa abafada, que trazia com ela muita poeira e fuligem, além de muito ruído: o apartamento era bem de frente para o Minhocão.

Os móveis eram escassos, havia apenas o suficiente para poder afirmar que um ser humano teria vivido ali. Na diminuta sala, conjugada com o quarto, o destaque era o pequeno sofá com a frente voltada para a janela, e encostado ao seu parapeito, sobre o qual, encoberto pela poeira, os bombeiros encontraram um envelope, e dentro dele uma carta. Dentro da carta, muita dor. Feita de dor, a caligrafia de uma despedida. Feita de despedidas, toda uma vida. Naquela carta, a despedida final.

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