Deve ser mais fácil voar quando estamos vazios

Somente quando percebi quão solitária estava a minha escova de dentes, que ocupava apenas um dos dois orifícios do porta-escovas ali sobre a pia do lavabo, foi que os fatos do dia anterior despertaram-me como se um balde d’água fria me fosse jogado sobre a cabeça. Era ainda muito cedo: por volta das 6 da manhã de uma terça-feira.
Poucos minutos antes, o despertador havia tocado uma única vez – desliguei-o logo em seguida. Já não sou bem-humorado pela manhã, e acordar com o ruído de um despertador, ainda mais àquela hora, contribui sobremaneira para que a pouca serotonina que meu cérebro produz nesse horário fique ainda mais escassa – e quanto mais eu deixar o toque do despertador se repetir e se prolongar, sei que ainda menos humor vai me restar: a serotonina cai mesmo a nível zero. Não duvido se por vezes ela atinja níveis até abaixo desse marco.
Levantei-me e saí tateando na escuridão do quarto até o lavabo – parecia um bebê a dar seus primeiros passos. Uma vez dentro do lavabo, inundado por aquela luz branca fluorescente – que em nada beneficia minha aparência, seja em que horário for, muito menos naquele –, vejo meu rosto refletido no espelho – pareço um defunto no necrotério. Minhas olheiras parecem olhos de panda.
Olho para aquele orifício vazio do porta-escovas, bem ao lado do que é ocupado pela minha escova, já puída. Sinto-me também vazio.
É um vazio diferente – não é apenas fruto da sensação de fome com a qual quase todo dia acordo. A bem da verdade, nada tem a ver com tal sensação, pois hoje nem sequer a sinto. Eu pareço oco, completamente oco por dentro. Como uma casa inabitada, uma cidade evacuada, sinto-me, enfim, sem nada… por dentro.
Começo a chorar compulsiva e descontroladamente. Se cheguei até a pia do lavabo caminhando como um bebê que dá seus primeiros passos, agora choro, a plenos pulmões, como se tivesse acabado de sair do ventre materno. Pequenas ânsias de vômito ameaçam, de quando em quando, jogar sobre a pia algo além das lágrimas que já a inundam. Ficam na ameaça.
Meu rosto, se antes, quando da primeira olhada em seu reflexo no espelho, parecia o rosto de um defunto, continua a assim parecer – mudou apenas a causa mortis. Tão inchado está, que o defunto (eu) agora parece ter sido vítima de um grave acidente antes de vir a falecer. Apiedo-me de mim mesmo.
Lembro-me então de meu chefe, no final da manhã do dia anterior, chamando-me para uma reunião em sua sala. Ele:
– Dê um pulinho aqui.
Num tom que deixava entrever que
– Preciso falar com você.
aquela não seria apenas uma simples conversa.
Quando cheguei à sala dele, vi-o acompanhado de um séquito de assessores.
– Sente-se aí.
Sentei-me.
– Nós te chamamos aqui, pois precisamos informar-lhe
Enquanto ouvia o discurso dele, via a menina dos recursos humanos, sentada ao lado dele, mexendo nervosamente em alguns papéis que estavam à sua frente.
– que houve mudanças na estrutura do departamento, e nessa nova estrutura não encontramos espaço para você.
Nem em minhas piores expectativas sobre aquela reunião, eu poderia antever que a sua razão de ser seria a minha demissão. Ainda duvidando disso, quis me certificar:
– Quer dizer então que estou sendo desligado?
– Sim. Infelizmente,
Pra quem?
– sim.
Despedimo-nos. Saí dali e fui até minha mesa – era hora do almoço, todos os demais tinham saído para almoçar –, encaixotei alguns pertences e saí pela porta sem olhar para trás.
Caminhei os 7 ou 8 quarteirões que separavam o escritório de casa. Nela chegando, desabei na cama, onde dormi até o meu despertador, sem ter sido “avisado” do fato do final da manhã anterior, acordou-me como de costume no horário para o qual estava programado para me despertar todos os dias úteis da semana.
Já não tenho mais lágrimas para chorar, e enfim elas cessam de brotar de meus olhos. Até nisso, penso, estou agora vazio.
Fui rejeitado e a rejeição é sempre dolorosa, por mais que não goste de quem o rejeita – como era o meu caso com aquele emprego –, estar no pólo passivo dessa ação (ser “o rejeitado”), é sempre algo que causa muita dor.
Há dias em que, sem sabermos bem ao certo o porquê, sentimo-nos tristes, ou sabemos, mas, de qualquer forma, por pudor, guardamos aquilo para nós mesmos. Foi o que fiz.
O telefone tocaria o dia todo. Queriam saber o como, o porquê, o e agora? Não tinha respostas para nenhuma dessas perguntas. Se tinha, não as revelei…
– Mas você está bem? – por fim perguntavam. E eu respondia:
– Sim.
Tranquilizando-os.
O azinhavre da moldura do espelho é como uma ruga a denunciar sua idade avançada. Estou velho demais, penso, fazendo caretas para o espelho, que repuxam minha pele. O que farei de minha vida daqui pra frente?
Tomo uma ducha. Quando termino, a sensação de vazio ainda está lá, mas então vem acompanhada de um frescor. Sinto-me também frágil como um filhote de pássaro, e como tal quero tentar uns primeiros vôos, mas ainda não sei como bem manejar minhas recém-nascidas e novas asas.
De todo modo, deve ser mais fácil voar quando se está vazio. Resolvo arriscar.

Teleprompter

Eram cinco reis, todos de pé, um ao lado do outro, altivos, a darem ordens em voz alta para súditos imaginários. Magnânimos em sua impotência.

**************************************

Juraram nunca mais se ver, embora dividissem o mesmo cubículo no trabalho.

A palavra de ordem ali era foco.

**************************************

Cada vez mais, menos gente aparecia nos anúncios de desaparecidos.

Podia até não parecer, mas ainda assim continuava a desaparecer gente.

**************************************

Lembrava-se claramente de um dia ter estado ali, naquele mesmo lugar, só que do outro lado do mundo.

Não se lembrava onde…

**************************************

Disse tudo que queria dizer e depois calou-se.

O não-dito disse mais do que o que fora dito, calando os gritos do interlocutor imaginário.

**************************************

O diálogo era impossível: falavam ao mesmo tempo, as mesmas palavras, no mesmo tom. Parecia um coro.

**************************************

Depois de almoçar, satisfeita da fome, ela deitou-se no sofá, nua como viera ao mundo.

Então dormiu, satisfeita da vida.

Dormiu de vez: a morte convida.

**************************************

A sua mãe sempre lhe dissera para não falar com estranhos.

Ao longo da vida, foi deixando de falar com a mãe, e esta de falar com ela.

Uma verdadeira família.

**************************************

Ao descer do trem, ela ouviu alguém chamar seu nome.

Olhou para trás, para os lados, e seguiu em frente sem lembrar o seu destino.

**************************************

Tinha tudo que alguém poderia desejar na vida, mas faltava-lhe aquilo que julgava mais importante:

**************************************

Vaidosa, sempre mirava-se no espelho antes de sair de casa. Era um espelho alto, que lhe permitia ver o seu corpo inteiro, menos seus olhos.

**************************************

Preso à parede da igreja, um pesado crucifixo de madeira trazia, no lugar da cabeça do Nazareno, a cabeça de um Mickey de borracha.

Os fiéis revezavam-se para puxar-lhe a orelha.

Esquece-se

Sentados à mesa, um de frente para o outro, ambos tomavam a sopa que ela preparara para aquele jantar, uma sopa rala, mas quente, ideal para espantar o forte frio que fazia naquela noite. Lá fora, deitavam ao chão as lágrimas de uma chuva carpideira, teimosa, daquelas que avançam noite adentro, tornando agradável o sono daqueles que têm abrigo.
Moravam sozinhos naquela mesma casa desde quando se casaram, há uma vida inteira. Quando as crianças cresceram e partiram para cuidar de suas vidas

(casar, ter filhos, trair, magoar e mesmo assim juntos permanecer, ficar)

a casa pareceu maior, embora nada nela tivesse sido alterado, a exemplo dos quartos dos filhos, dois meninos e uma menina

(a caçula)

que continuavam ali, prontos e arrumados, como se a esperar a volta daqueles que um dia os ocuparam.

Depois de deixá-los, ao tornarem-se adultos, os filhos raras vezes voltaram e, quando o fizeram, ficaram pouco: sempre visitas rápidas, concentradas nos dias festivos

(Dia das Mães, Dia dos Pais, Natal… e olhe lá).

Ao longo dos anos, mesmo essas raras visitas tornaram-se ainda mais rarefeitas. Foram-se apagando, como uma vela que lentamente se esvai após consumir todo o seu pavio. E, se no passado, eram motivo para celebração

(a mãe preparava um assado de carne, fazia macarrão, enquanto o pai tirava da adega seus mais cultivados vinhos)

hoje em dia, não mais: o dia da visita dos filhos era um dia como outro qualquer.
As fotos dos dois meninos e da caçula, que por muitos anos dividiram espaço com os bibelôs de louça sobre o aparador disposto paralelamente à mesa de jantar, há muito tinham sido guardadas em caixas de papelão, depois enterradas dentro de gavetas em algum armário no quarto do casal.

A mãe já não se lembrava exatamente onde as guardara, e o pai nem dera falta daquelas fotografias demasiado antigas, algumas bem amareladas.

(haviam sido apagadas de sua memória pelo tempo, que tudo apaga)

Um de frente para o outro, jantavam em silêncio. Ao longo dos anos, foram-se habituando com a quietude

(ou será que toda uma vida juntos esgotara os assuntos?).

Não pensavam sobre isso, pareciam felizes assim: tinham um semblante sereno. Ao menos reclamar não fazia parte das poucas palavras que, vez ou outra, embora quase nunca, trocavam.
Assim como ocorre quando, ao nos acostumarmos com uma determinada paisagem que faz parte do nosso dia a dia, deixamos de percebê-la, também eles foram deixando de perceber um ao outro

(como uma vela que lentamente se esvai após consumir todo o seu pavio).

Compartilhavam a solidão de estarem juntos há tantos anos.

Quando terminaram de comer, ela levantou-se, recolheu os pratos e os talheres e então levou-os para a cozinha, a fim de lavá-los antes de ir dormir: não gostava de deixar louça suja na pia durante a noite.

(temia as baratas)

Pouco depois, ele também se levantou e deixou para trás a mesa de jantar vazia. Seguiu para a sala, onde sentou-se diante da televisão desligada. O mundo lá fora parecia-lhe distante, a ponto de já não lhe interessar mais saber o que se passava fora dos limites da própria casa. Mesmo o pequeno quintal ele pouco explorava.

Pouco depois, ela também foi sentar-se ali na sala, numa poltrona

(a sua preferida)

situada no canto oposto ao que ele ocupava. Ficaram ali, imersos no silêncio das palavras que não encontram voz, a olhar cada um para o vazio dentro de si, a tricotar pensamentos sem fio. À medida que as horas foram passando, eles foram ficando cada vez mais e mais cansados. De um lado, ele a pescar cochilos com o pescoço; do outro, ela a dormir com a cabeça caída por sobre o seu ombro direito.

Num sobressalto, ela acordou e levantou-se. E com um leve aceno de mão, comunicou-lhe que estava indo deitar-se. Ele não deu pela falta dela

(nem dera pela sua presença)

e ficou ali mais um tempo, a cochilar diante de seu próprio reflexo projetado na tela da televisão desligada.

(a casa em silêncio)

Pouco depois, já noite alta, com a chuva carpideira ainda deitando lágrimas ao chão lá fora, também ele não resistiu: estava cansado de cochilar sentado, queria deitar, a fim de poder dormir de vez. Então, levantou-se e foi acompanhar a esposa, seguindo ele também para o destino

(comum)

que lhes fora desde sempre reservado.

Ocupavam lados opostos no jazigo do casal: o direito era dela; dele, o esquerdo. Por sobre a sepultura, alguém deixara um vaso, todo ele adornado por um punhado de flores secas.