Sentados à mesa, um de frente para o outro, ambos tomavam a sopa que ela preparara para aquele jantar, uma sopa rala, mas quente, ideal para espantar o forte frio que fazia naquela noite. Lá fora, deitavam ao chão as lágrimas de uma chuva carpideira, teimosa, daquelas que avançam noite adentro, tornando agradável o sono daqueles que têm abrigo.
Moravam sozinhos naquela mesma casa desde quando se casaram, há uma vida inteira. Quando as crianças cresceram e partiram para cuidar de suas vidas
(casar, ter filhos, trair, magoar e mesmo assim juntos permanecer, ficar)
a casa pareceu maior, embora nada nela tivesse sido alterado, a exemplo dos quartos dos filhos, dois meninos e uma menina
(a caçula)
que continuavam ali, prontos e arrumados, como se a esperar a volta daqueles que um dia os ocuparam.
Depois de deixá-los, ao tornarem-se adultos, os filhos raras vezes voltaram e, quando o fizeram, ficaram pouco: sempre visitas rápidas, concentradas nos dias festivos
(Dia das Mães, Dia dos Pais, Natal… e olhe lá).
Ao longo dos anos, mesmo essas raras visitas tornaram-se ainda mais rarefeitas. Foram-se apagando, como uma vela que lentamente se esvai após consumir todo o seu pavio. E, se no passado, eram motivo para celebração
(a mãe preparava um assado de carne, fazia macarrão, enquanto o pai tirava da adega seus mais cultivados vinhos)
hoje em dia, não mais: o dia da visita dos filhos era um dia como outro qualquer.
As fotos dos dois meninos e da caçula, que por muitos anos dividiram espaço com os bibelôs de louça sobre o aparador disposto paralelamente à mesa de jantar, há muito tinham sido guardadas em caixas de papelão, depois enterradas dentro de gavetas em algum armário no quarto do casal.
A mãe já não se lembrava exatamente onde as guardara, e o pai nem dera falta daquelas fotografias demasiado antigas, algumas bem amareladas.
(haviam sido apagadas de sua memória pelo tempo, que tudo apaga)
Um de frente para o outro, jantavam em silêncio. Ao longo dos anos, foram-se habituando com a quietude
(ou será que toda uma vida juntos esgotara os assuntos?).
Não pensavam sobre isso, pareciam felizes assim: tinham um semblante sereno. Ao menos reclamar não fazia parte das poucas palavras que, vez ou outra, embora quase nunca, trocavam.
Assim como ocorre quando, ao nos acostumarmos com uma determinada paisagem que faz parte do nosso dia a dia, deixamos de percebê-la, também eles foram deixando de perceber um ao outro
(como uma vela que lentamente se esvai após consumir todo o seu pavio).
Compartilhavam a solidão de estarem juntos há tantos anos.
Quando terminaram de comer, ela levantou-se, recolheu os pratos e os talheres e então levou-os para a cozinha, a fim de lavá-los antes de ir dormir: não gostava de deixar louça suja na pia durante a noite.
(temia as baratas)
Pouco depois, ele também se levantou e deixou para trás a mesa de jantar vazia. Seguiu para a sala, onde sentou-se diante da televisão desligada. O mundo lá fora parecia-lhe distante, a ponto de já não lhe interessar mais saber o que se passava fora dos limites da própria casa. Mesmo o pequeno quintal ele pouco explorava.
Pouco depois, ela também foi sentar-se ali na sala, numa poltrona
(a sua preferida)
situada no canto oposto ao que ele ocupava. Ficaram ali, imersos no silêncio das palavras que não encontram voz, a olhar cada um para o vazio dentro de si, a tricotar pensamentos sem fio. À medida que as horas foram passando, eles foram ficando cada vez mais e mais cansados. De um lado, ele a pescar cochilos com o pescoço; do outro, ela a dormir com a cabeça caída por sobre o seu ombro direito.
Num sobressalto, ela acordou e levantou-se. E com um leve aceno de mão, comunicou-lhe que estava indo deitar-se. Ele não deu pela falta dela
(nem dera pela sua presença)
e ficou ali mais um tempo, a cochilar diante de seu próprio reflexo projetado na tela da televisão desligada.
(a casa em silêncio)
Pouco depois, já noite alta, com a chuva carpideira ainda deitando lágrimas ao chão lá fora, também ele não resistiu: estava cansado de cochilar sentado, queria deitar, a fim de poder dormir de vez. Então, levantou-se e foi acompanhar a esposa, seguindo ele também para o destino
(comum)
que lhes fora desde sempre reservado.
Ocupavam lados opostos no jazigo do casal: o direito era dela; dele, o esquerdo. Por sobre a sepultura, alguém deixara um vaso, todo ele adornado por um punhado de flores secas.