Tenho uma pergunta para você, ela disse, enquanto se preparava para sair: a saia, a blusa, o salto, o batom, nada destoava naquele arranjo todo combinadinho de cores pastéis.
(a coerência é uma prisão)
– Eu gostaria que você
(ela)
– … ao menos me dissesse
(continuou)
– … o nome
(pausadamente)
Sem conseguir, contudo, terminar a sentença: as palavras foram abruptamente embargadas
(como se seu rosto tivesse recebido um soco)
por um acesso de choro, dolorido como o abandono.
Ela levou as mãos ao rosto, a fim de conter as lágrimas, num gesto inútil, que ao fim e ao cabo fez o choro tornar-se ainda mais intenso
(e doloroso).
A um ou dois passos de distância, ele observava-a, numa compaixão indiferente.
Conhecera-a numa festa, anos atrás, quando foram apresentados por um amigo de um conhecido dele. No início daquela noite, trocaram algumas palavras:
– Onde você mora?
Ele peguntou a ela.
No que ela respondeu apenas com um sorriso tímido, sem nada dizer.
Mais tarde, ainda naquela noite, seus corpos, sob o olhar frio das quatro paredes de um motel de subúrbio, copularam num frenesi intenso.
Na manhã seguinte, exaustos, despediram-se após o café da manhã para voltarem a se encontrar novamente já na hora do almoço. Numa metrópole onde todos são espectros, que a todo momento surgem e desaparecem
(do nada e para sempre)
ele e ela, a partir de então, fizeram-se presentes diariamente um para o outro e vice-versa: iniciaram um namoro e, poucos meses depois, sob o testemunho de alguns familiares, amigos e amigas, diante de um padre que não falava lé com cré, casaram-se.
Ele:
– Juro que viveremos juntos e que cuidarei de ti, nos maus e bons momentos, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, na alegria e na tristeza, e te amarei até que a morte
(ou o fim do desejo)
nos separe.
No que ela assentiu com um sorriso terno. Cheios de desejo, beijaram-se.
Fato é que, poucos meses depois do casamento, o desejo desapareceria: não suportando a rotina de casal
(que tudo aniquila)
ele foi-se embora.
Sem nem sequer se despedir, um dia, ao ver a porta da sala entreaberta, esgueirou-se sorrateiramente
(não queria ter sua partida notada)
e saiu pela porta afora e nunca mais deu-lhes sinal de vida.
A sua ausência, contudo, logo depois se fez notar.
Nos dias que se seguiram, o carinho, o sexo, a entrega e os beijos foram ficando cada vez mais raros e menos intensos: aqueles dois corpos já não ocupavam mais o mesmo espaço. Ele de um lado; ela, de outro, cada um a cuidar da sua própria vida.
Os olhares, que antes ficavam embevecidos de ternura ao se encontrarem, desde a partida do desejo, evitavam-se. Vagavam sem rumo, numa estranheza que preferia ir ao encontro do vazio.
Poucas semanas depois, alguém bateu à porta da sala, na entrada da casa, ele se levantou do sofá e foi atender. Aquela que chegava não lhe era completamente estranha, parecia mesmo bastante familiar. Quem sabe, cruzaram-se vez ou outra pela vida.
A solidão, com sua voz um tanto quanto calada, não demorou a ser então convidada a entrar e, logo, logo, já estava confortavelmente instalada na pequena casa que ele e ela dividiam desde antes de se casarem.
Não tardou muito, a solidão encontrou um lugar para aconchegar-se no meio da cama, entre as duas extremidades que ele e ela ocupavam ao se deitarem para dormir. A mesma cama que antes dividiam com o desejo.
A casa, pequena, parecia tão maior após a chegada da solidão. A sobra de espaço sufocava-lhes.
Recobrada do acesso de choro, ela enfim conseguiu refazer a sentença:
– Eu gostaria que você ao menos me dissesse o nome dela.
(desta vez completa, numa tacada só)
Em resposta, ouviu dele apenas um longo silêncio
(como longos são todos os silêncios entre os casais)
interrompido, muito tempo depois, pela jocosa música de um realejo, onde um periquito, dentre muitas das sortes ali depositadas, pescou com seu bico curvo justamente aquela que previa que seu passado seguiria o curso que de fato havia seguido até ali.
Republicou isso em REBLOGADOR.
CurtirCurtir