Lá pelo final da década de 70, quando Sofia ainda era uma menina, ela gostava de ir ao quarto de sua avó e por lá ficar quantas horas lhe fosse possível, sentada diante de uma enorme penteadeira de mogno escuro, situada de frente para a janela, bem ao lado da cama da avó. O móvel era repleto de rococós barrocos que lhe conferiam um ar suntuoso, que contrastava fortemente com a simplicidade da vida naquela época.

Sobre a penteadeira, havia alguns poucos batons, o pó que a avó usava de maneira um tanto exagerada, numa tentativa inútil de encobrir as rugas da face, um frasco de Leite de Rosas, sentado como uma moça comportada no canto direito e, logo ao seu lado sobre a penteadeira, um velho abajur sustentado por uma pesada base de ferro, cuja luz alaranjada envolvia, como mãos que benzem, uma estatueta de barro de Nossa Senhora Aparecida, santa pela qual sua avó nutria grande devoção.

Devoção que só aumentou depois que todas as demais imagens de santos que a avó tinha sobre a penteadeira foram ao chão e espatifaram-se, devido ao forte vento que invadira o quarto durante uma tempestade de verão: a janela do quarto estava aberta e, com a força do vento, as cortinas ricochetearam sobre os santos, derrubando-os da penteadeira. Apenas a imagem da Nossa Senhora foi salva, passando incólume pela tempestade. A avó

(Sofria bem se lembrava)

chorou por dias a perda de seus santos. Sentia-se culpada pela tragédia e viu seu medo de ir para o inferno

(que já era grande)

só aumentar. Angustiada, foi confessar-se com o Padre Mateus, padre da sua paróquia, que lhe garantiu que a vaga dela no reino dos céus era certa desde que ela continuasse a contribuir regularmente com o dízimo da igreja. Melhores seriam as chances dela lá no céu entrar, disse-lhe ainda o padre, ao final da confissão, se o dízimo fosse aumentado, o que a avó não tardou a fazer, dado que, temente a Deus como era, temia em igual medida ter de encontrar-se com o Diabo.

Desde aquela tempestade, que derrubou os santos que estavam sobre a penteadeira, a Nossa Senhora, além de santa, passou a ser, para a avó, um símbolo de resistência, atitude bem conhecida por aquela calejada mulher, à época com uns sessenta e poucos anos.

A avó de Sofia, Dona Maria Helena, tinha de fato passado por grandes e numerosas provações durante sua vida. Ainda que fossem contadas em papel bíblia, dariam um calhamaço de histórias. A pior delas, talvez, deu-se quando foi abandonada pelo marido.

Num dia qualquer

(ela não se lembrava exatamente qual)
ele foi-se embora com a roupa do corpo, sem dizer nada nem olhar para trás. Apenas saiu pela porta da sala e, desde então, nunca mais foi visto nem dele se soube. Deixou-a em casa, a ver televisão

(a novela das sete)

sozinha e, ainda por cima, grávida de sua primeira e única filha

(a mãe de Sofia)

A partir de então, Dona Maria Helena desenvolveu uma forte repulsa por homens, passando a agir em relação a eles de maneira bem diferente de quando ainda era moça e vivia a perseguir os rapazes do bairro onde vivia, com a mesma teimosia daqueles cães vira-latas que correm atrás dos carros que passam pelas ruas empoeiradas das periferias. No quanto podia, evitava vê-los e ter de com eles falar. Abria exceção apenas para o padre Mateus e, mesmo assim, só falava com ele dentro do confessionário.

A avó de Sofia foi ficando cada vez mais e mais reclusa, chegando mesmo a ser acometida pela solidão. Aos finais de semana, depois da missa das seis, para onde ia religiosamente, a avó, na tentativa de fugir desse sentimento, seguia para um restaurante qualquer do bairro, onde, sentada sozinha à mesa

(geralmente uma mais ao canto)

ficava cumprimentando com um gesto da mão direita pessoas desconhecidas que, apenas em sua imaginação, adentravam aquele recinto vindo ao seu encontro.

O perfume do Leite de Rosas, que impregnava o quarto da avó, marcara a infância de Sofia. Assim como o delicado odor das Damas da Noite, também o Leite de Rosas era um dos aromas que melhor a fazia recordar dos tempos de menina. Das Damas da Noite, lembrava de sentir seu perfume, suave como uma carícia, no caminho que ela fazia quando voltava do mercado, para onde ia, sempre ao final de tarde, a fim de comprar mantimentos para a mistura do jantar: algo para acompanhar o arroz e feijão de todo dia.

Como eram perfumadas essas memórias.
Mas diferentemente destas, as demais memórias de infância de Sofia eram bastante duras e dolorosas.

(é tão longe voltar)

Naqueles tempos passados, quando pegava Sofia em flagrante, a maquiar-se com seus batons e perfurmar-se com seu Leite de Rosas, sentada diante da penteadeira de seu quarto,
Dona Maria Helena puxava Sofia pelos cabelos, deitava-a sobre a cama e, com a Nossa Senhora Aparecida em punho, golpeava a cabeça da menina, como que a querer benzê-la.

Nessas ocasiões, quando pega em flagrante pela avó, Sofia, em pânico, antes do primeiro golpe, gritava:

– Mãezinha, não!

e depois do primeiro golpe, um

– Mãezh…

(abafado)

e, finalmente, após o golpe final

(eram sempre dois)

um

– Mãe…

(já dito entre lágrimas, com a voz embargada)

Sofia não tinha uma mãe com quem ir chorar as surras que levava de sua avó nessas horas. Orfã desde o momento de seu parto

(sua mãe morrera por complicações daí decorrentes)
a menina cresceu tendo a mãe de sua mãe, sua avó, como sua mãe postiça.

Sofia não guardava imagem nenhuma de sua mãe verdadeira: a avó cuidara de eliminar todas as fotos da filha de que ainda dispunha, não sobrando nem mesmo aquela pela qual a avó mantinha algum carinho: uma em que a mãe de Sofia, ainda menina, aparecia toda sorridente, em um vestido de linho branco, numa pureza de óstia, de mãos dadas com alguém cuja imagem a foto capturara apenas a mão esquerda.

Dona Maria Helena não era má, mas quando via Sofia em seu quarto, sentada, ali diante da penteadeira, a se pentear e maquiar
(à imagem e semelhança da mãe de Sofia, quando ainda viva)
a velha revivia a dor intensa que sentira pela morte de sua filha. Para Dona Maria Helena, Sofia era a culpada da morte da mãe, e não havia nada nem ninguém que pudesse convencê-la do contrário.
Ao ver a menina ali diante da penteadeira e, assim, reviver a dor da morte de sua filha, a avó pegava a imagem da Nossa Senhora e

– Mãezinha, não!

(um primeiro golpe)

– Mãezh…

(um segundo golpe)

– Mãe…

desferia dois golpes na cabeça da menina, que depois ficava ali na cama a chorar, menos de dor e mais de ódio. Com a cabeça sangrando, Sofia jurava para si mesma um dia vingar-se da avó.

Todas as surras de Dona Maria Helena em Sofia tinham como arma a estatueta de barro da Nossa Senhora Aparecida. Era a forma por ela encontrada de compensar com a força da fé a força corporal que lhe faltava.

Poucos meses depois de completar trinta e cinco anos de idade, Sofia enterrou sua avó numa sepultura, vizinha à de sua mãe, no jazigo coletivo que era o cemitério do bairro. Ao funeral, nenhum amigo, amiga ou parente próximo da avó compareceu, exceto Sofia.

Na época, já era então casada e vivia com seu marido e mais sua primeira filha, na mesma casa onde, por toda a sua vida, crescera e vivera com sua avó.

Com o falecimento de Dona Maria Helena, a casa ficou de herança para a única neta. Sofia, que antes ocupava com seu marido e sua filha, um quarto menor da casa, mudou-se com o marido para o quarto que era de sua avó, deixando o quarto menor apenas para sua filha.

Ao lado da cama onde Dona Maria Helena dormira as derradeiras noites de seus dias finais, ainda hoje está a enorme penteadeira de mogno e, sobre ela, quase na mesma posição que sempre ocuparam, ainda estão alguns poucos batons, o pó que a avó usava de maneira um tanto exagerada, numa tentativa inútil de encobrir as rugas da face

(tentativa que foi se tornando mais e mais inútil, chegando mesmo a ser caricata, à medida que os anos foram passando)

aquele frasco de Leite de Rosas, ainda sentado como uma moça comportada no canto direito e, logo ao seu lado sobre a penteadeira, permanece aquele velho abajur

(agora ainda mais velho)

sustentado por uma pesada base de ferro, cuja luz alaranjada continua a envolver, como mãos que benzem, a estatueta de barro de Nossa Senhora Aparecida.

Os rococós que, nos tempos de infância de Sofia, conferiam um ar suntuoso à penteadeira, ainda estão lá e continuam a contrastar com a simplicidade da vida. Bem verdade, a vida continua a ser simples, mas a simplicidade agora é mais dura, por assim dizer, pois falta-lhe a esperança e há medo de sobra.

A imagem da santa, por sua vez, se antes era muito bem cuidada pela avó, hoje, além da poeira que se deposita sobre ela, formando como que um novo manto sobre o seu manto original, traz no barro de que é feita as muitas cicatrizes das duras surras

(– Mãezh…)

sofridas

(– Mãe…)

por Sofia, quando menina.

Sua avó tinha morrido aos oitenta e cinco anos, não propriamente do câncer que tomara de assalto quase todo o seu corpo

(embora tenha sido esta a razão que constou registrada em sua certidão de óbito)

mas de morte súbita, decorrente do susto fatal que tomou quando viu a neta deitada nua em sua cama a masturbar-se com a imagem da Nossa Senhora Aparecida, sua santa de maior devoção.

Sofia nunca deixou a casa que vivera com sua avó nem a sua cidade natal. Estes eram os limites do seu mundo.

Todas essas lembranças vieram à sua mente, ao cair de uma tarde de verão, quando ela se encontrava na beira da praia em sua cidade, e, de costas para o mar, observava a cordilheira de prédios à sua frente, sentindo o refluxo das ondas puxar-lhe os pés, como se a querer empurrá-la para trás.
(para onde é tão longe voltar)
Um dos prédios em específico chamava-lhe a atenção por conta das luzes alaranjadas que eram projetadas por suas janelas. Luzes que lhe lembravam aquelas do abajur sobre a penteadeira de sua avó, a iluminar a estatueta de barro da Nossa Senhora Aparecida.

Estatueta que, mesmo cicatrizada pelas muitas surras dadas em Sofia, ainda hoje está lá, no mesmo local.

Para Sofia, mesmo nunca tendo dali partido, ainda assim é tão longe voltar.

 

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