Acabara de sofrer um estupro e, sentindo-se vulnerável e humilhada, ela subia correndo a Rua Augusta, no sentido da Marquês de Paranaguá para a Paulista. A rua estava estranhamente deserta àquela hora da manhã de um domingo.
Na verdade, a rua borbulhava: estava cheia de pessoas, todas aproveitando os últimos suspiros de vida de uma noite de sábado.
O estupro ocorrera na esquina da Marquês de Paranaguá com a Augusta. Um advogado, de tipo franzino, que ela conhecera num bar ali perto, depois de embriagá-la, levou-a na lábia para aquele lugar escuro e pouco frequentado, e, violentamente, forçou-a ao ato sexual. Ela ainda tentou resistir, mas o soco que ele desferiu sobre o rosto dela deixou-a atordoada por tempo suficiente para ele se satisfazer e ir-se embora. Apesar de jovem, o rapaz já tinha uma carreira bastante bem sucedida. Muito provavelmente, diziam as más linguas
(com a vulgaridade que lhes é própria)
nascera em berço de ouro, ou teria dado a bundinha para o Sistema, nem que fosse de levinho, do tipo que só deixa entrar a cabecinha.
Quando encontrou com ela no bar, o tal advogado já tinha em mente fazer o que acabou depois fazendo, mas para não parecer que faria, ainda perguntou a ela o nome.
(mesmo o sexo anônimo às vezes pede um nome)
No que ela respondeu:
– Clarissa.
Como poderia ter dito Larissa, Priscila, ou qualquer desses nomes femininos delicados, muito diferentes de seu nome de batismo, Pedro.
Correndo pela Augusta acima, a travesti gritava inutilmente por socorro para o vazio da indiferença.
Na esquina da Augusta com a Paulista, foi parada por uma viatura da polícia, que estava estacionada naquele local para levar lei e ordem ao caos. Detida, ela acabou sendo jogada dentro daquela terra sem lei que é o interior de uma viatura policial.
Sob o olhar cúmplice de um dos policiais
(eram ao todo dois)
ali dentro ela foi estuprada pelo outro. Depois, revezaram-se: o outro policial quis dar para ela sob o olhar cúmplice do primeiro que a penetrara.
O sexo foi seguido de socos e pontapés, que por fim fizeram-na desmaiar.
Inconsciente, foi levada para uma delegacia e depositada numa cela super lotada, onde a sobrevivência era uma barganha diária com a morte violenta.
Ali, quanto maior o número de vivos, tanto maiores seriam as chances de mortos haver.
Naquele cubículo abafado, de poucos metros, com cheiro forte e nauseabundo de corpos, ela ficou presa por vários dias, todos eles pagos com favores sexuais para os líderes da cela. Para alguém como ela, essa era a moeda de troca mais óbvia para garantir uma certa imunidade em relação à morte violenta, que ali disputava com a vida violenta o número de corpos para abate: o que a vida violenta trazia, a morte violenta levava. A disputa era acirrada.
Em dias de altas temperaturas, o calor intenso fazia aqueles corpos aprisionados parecerem maiores e, consequentemente, parecia menor o espaço que dividiam na cela.
O quinto dia dela ali foi um desses dias demasiadamente quentes. O calor, de tão forte, fez os ânimos dos presidiários esquentarem até o ponto de ebulição de um motim.
Dentro da cela, os mais fracos perderam a cabeça, decaptados por ordem dos líderes do pedaço, como forma de causar medo, comoção e, com isso, pressionar os policiais para que a super lotação fosse diminuída.
Com a tensão crescente, houve um momento em que ela, com o corpo fraco e entorpecida pelo medo, desmaiou.
Naquele momento, um grande contingente de policiais, fortemente armados, aglutinava-se diante da porta da cela, imantados às suas grades, ameaçando arrombar a porta caso os detentos não recuassem.
Não recuaram.
Dois dias depois, ela acordou numa cama de hospital. Seu corpo estava todo ele coberto por uma bata azul celeste, com uma sonda presa ao seu braço direito. Por baixo da bata, seu corpo magro, quase só pele e ossos, tinha vários curativos: seu corpo, mesmo desfalecido, tinha sido agredido durante o motim, contrariando aquela máxima de que não se bate em cachorro morto.
Não se lembrava de nada, nem de como fora parar ali nem tampouco do que lhe ocorrera nos últimos dias.
Lembrava-se apenas de ter de tudo isso esquecido.
Com o olhar depositado sobre uma folhinha de calendário pendurada na parede ao seu lado e ornada com a foto de um bebê loiro, com cabelos encaracolados à maneira pré-rafaelita, a sorrir, por imitação ela também sorriu. Um sorriso triste.
Esquecera-se de lembrar como era ser feliz.