Tivera a infância pobre e, para a adolescência, nada mudara. Desde pequena, Olga vivia com sua mãe em um quarto e sala alugado, no quinto andar de um enorme aglomerado de concreto, cinza e deteriorado, cujos espaços eram preenchidos de seres humanos anônimos, situado no bairro da Luz.
Mal iluminadas à noite, as ruas ao redor do prédio eram verdadeiras arapucas para uma menina adolescente como ela. Quando retornava do trabalho, invariavelmente depois das 10 horas da noite, com ambas as mãos enfiadas nos bolsos da calça, segurando firmemente dois rosários de contas, um em cada uma delas, rezava Ave Marias e Pais Nossos, alternadamente, ora numa mão, ora na outra, a fim de afastar o mal que, pelo rabo dos olhos, sentia a espreitar. Nunca lhe ocorrera nada, mas sabia de histórias pavorosas de outras meninas e mesmo de mulheres feitas que tinham sido atacadas naquelas ruas escuras, repletas de entulho e quase sempre desertas àquela hora da noite.
A história mais recente dizia respeito a uma menina que tinha desaparecido quando retornava para casa, voltando para o mesmo prédio onde Olga mais sua mãe moravam, também no mesmo horário que ela costumava retornar do trabalho: tarde da noite. Por três dias, ninguém teve notícias do paradeiro da menina. Foi somente na manhã do quarto dia após o desaparecimento, que encontraram o corpo da menina todo despido, jogado na sarjeta em frente à padaria que ficava numa esquina detrás da rua onde ela morava. O corpo da menina tinha sinais de ferimentos derivados de tortura por toda parte.
Era uma manhã típica paulistana, com um leve nevoeiro cobrindo a cidade à maneira do véu que cobria os pães da padaria, de onde, naquela manhã, Olga voltava, passando justamente pelo local onde o corpo da menina se encontrava jogado. Percebendo a multidão de curiosos que se aglutinava ao redor da defunta, Olga aproximou-se e, abrindo espaço por entre os corpos dos vivos, chegou bem ao lado da morta. Olhou-a bem dentro dos olhos, que ainda permaneciam abertos
(ao menos assim estavam quando ela chegou)
a revelar assim a dor inominável que a menina sofrera nas horas que antecederam sua morte. Olga viu naqueles olhos um futuro que não desejava para si. Pela primeira vez, aos seus olhos, as histórias de violência e morte que habitavam as conversas da população local, com a naturalidade da vida, tinham ganhado uma forma visível, concreta.
Ao retornar para casa, na noite do dia em que vira a menina morta, Olga aproveitou o desce e sobe da baldeação que fazia na estação de ônibus e, ao invés de tomar aquele que a levaria à Luz, tomou outro ônibus, um cuja placa indicava como destino o Paraíso, bairro de que ela já ouvira falar nos cultos que frequentava com sua mãe na igreja do bairro, sempre aos domingos.
Destestava ir a esses cultos, mas sua mãe a obrigava, ameaçando-a com uma surra
– Daquelas
como sua mãe dizia, enquanto puxava Olga pelo braço esquerdo, forçando a menina a seguir o ritmo apressado de seus passos, no caminho de casa até a igreja.
Antes de chegar ao seu destino, o ônibus que Olga havia tomado cruzou a Paulista, seguindo por sobre ela desde seu fim, na Consolação, até seu início, no Paraíso.
Pela janela do ônibus, Olga observava, fascinada, as luzes da avenida e o intenso movimento de pessoas, algo tão raro na vizinhança onde morava. A Paulista borbulhava de vida.
Ao chegar ao ponto final, no Paraíso, Olga acompanhou os poucos passageiros do ônibus que àquela altura ainda estavam embarcados e, seguindo junto com eles, desceu para a rua. Diferentemente deles, porém, Olga não sabia para onde seguir, a partir daquele ponto.
Foi andando a esmo e, depois de caminhar por uns três quarteirões, Paraíso a dentro, Olga deu de cara com um aglomerado de unicórnios multicoloridos com cornos fluorescentes. Foi tomada pelo êxtase. Lá bem no meio deles, ela viu, vestida à maneira de uma ninfa, a menina que na manhã anterior vira morta e cujos olhos, abertos, a revelar a dor da tortura que sofrera nas horas que antecederam sua morte, tanto a tinham impressionado.
Com um gesto delicado da mão direita, a menina chamou Olga para perto dela, no que Olga obedeceu, não sem esforço para vencer o medo que parecia congelar seus músculos e ossos, como se morta estivesse.
Lá chegando, antes que sua mão tocasse a mão da menina, Olga acordou e foi quando notou seu corpo, todo nu, jogado no mesmo local
(na sarjeta em frente à padaria que ficava numa esquina detrás da rua onde ela morava)
onde horas antes vira também jogada aquela mesma menina, então morta.
Deitada naquela sarjeta, Olga observava a multidão de curiosos aglutinando-se ao seu redor. Não conseguia mexer nenhum músculo, nem sequer os de seus olhos, que, imóveis, fitavam os olhos de uma menina que sobre ela havia se debruçado.
A tal menina tinha a mesma idade de Olga e, como esta, também morava num quinto andar de algum enorme aglomerado de concreto, cinza e deteriorado, cujos espaços eram preenchidos preenchido de seres humanos anônimos, situado no bairro da Luz, bem longe do Paraíso para onde Olga tinha ido.