Todos os dias, a mesa do café da manhã era caprichadamente posta para servir duas pessoas: um par de xícaras feitos de uma fina procelana florida, duas fatias de bolo de frutas, acompanhadas de duas fatias de mamão papaya e dois pares de talheres.
Sem nenhum par sobre aquela mesa, ficava apenas o bule de café, no mesmo padrão de porcelana de que eram feitas as xícaras.
Sentada à mesa, e também sem par, ficava Ana, que todas as manhãs servia o café para dois, embora não tivesse ninguém para acompanhá-la. Ela tomava sua xícara de café, comia sua fatia de bolo de frutas e de mamão, e o resto jogava fora.
Viúva há pouco mais de cinco anos, Ana ainda não havia superado a ausência de João, o homem com quem fora casada por quase quarenta anos. Vitimado por uma morte súbita, ele de repente partiu, sem dar a ela nem sequer a chance de dizer um adeus, nem sequer um…
Nada.
Morreu logo depois de terem tomado, juntos, o que então foi o último café da manhã dele.
Ana ainda se lembra de como era tê-lo à mesa: sentado na cadeira, do lado oposto ao lado dela, ele ficava a ler o jornal, que lhe tomava toda a atenção, não sobrando desta nem mesmo migalhas para Ana, que, diante disso, conformava-se em tomar seu café em silêncio, tendo à sua frente a imagem de um jornal aberto, segurado por um par de mãos, que se revezavam, descendo vez ou outra para servir-se do café da manhã posto sobre a mesa.
(tão grande a solidão ter você ao meu lado)
Ana lembrava-se do barulho que o jornal fazia quando João virava as páginas; sentia falta do conforto que aquele som lhe proporcionava. Era como ouvir a voz de João a sussurrar-lhe nos ouvidos, algo que, já naquela época, há muito tempo ele deixara de fazer.
Desde muitos anos antes de João morrer, o silêncio havia preenchido o espaço que, outrora, era ocupado por conversas animadas, emolduradas por olhares apaixonados, que partiam dos olhos dele e de Ana como projéteis em direção um ao outro e vice-versa.
À medida que o tempo foi passando
(pela sua memória, o início do declínio tinha sido logo depois de completarem dez anos de casados)
o amor foi esfriando e, quando o casamento deles completou quinze anos, nada daquele amor tinha restado senão os dois corpos que antes faziam papel de sujeitos. Dois corpos solitários, incapazes de qualquer comunhão, mas que permaneceram juntos os anos seguintes apenas pela inércia da conveniência.
(tão grande solidão ter você ao meu lado)
Depois da morte de João, Ana cancelou a assinatura do jornal que ele sempre lia, sentado à mesa para o café da manhã. O jornal seria inútil para ela, dado que, depois que João partiu, Ana perdeu todo o interesse pelo que ocorria para além dos limites da casa que com ele dividira.
Alfredo, filho que tivera com João, desde muito jovem partira para viver no exterior. A respeito dele, Ana quase nada mais sabia: ele ligava para a mãe uma ou, no máximo duas, vezes por ano, para perguntar-lhe
– Está tudo bem?
e depois de ouvir Ana responder-lhe
– Sim, meu filho
ele logo emendava um
– Aqui está tudo bem, também
finalizando com
– Um beijo.
E então desligava, não permitindo à sua mãe nem sequer um até logo, nem sequer um te amo, nem sequer um…
Nada.
Atualmente, a única companhia de Ana, ainda assim apenas por meio período, era Jandira, a cuidadora que ela pagava com sua aposentadoria para garantir que não morresse sozinha e fosse encontrada, dias depois, já com o corpo rígido, por quem quer que estranhasse o odor nauseabundo a sair de dentro da casa.
Ana vivia reclusa e solitária, mesmo tendo a companhia de Jandira, por meio período. Seguia vivendo um dia após o outro, sem se dar conta de em qual dia da semana estava. Para ela, isso não importava: eram todos iguais.
Num certo dia
(não sabia dizer qual)
alguém bateu à sua porta enquanto ela tomava seu café da manhã, na mesa caprichadamente posta, como de hábito, para dois.
Apoiando-se em seu andador, ela levantou-se e foi até a porta atender quem batia. Ao abri-la, não viu ninguém: quem ali estivera, tinha já partido sem nem sequer dizer um bom dia, nem sequer um olá, nem sequer um…
Nada.
Na soleira da porta, havia um capacho, cuja mensagem de bem-vindo mal se podia ler, tamanha a quantidade de poeira sobre ele depositada. Jogado sobre o capacho, e por cima da poeira, alguém deixara um jornal, o mesmo que João lia à mesa do café da manhã enquanto ainda era vivo.
Ana pegou o jornal em suas mãos, fechou a porta e voltou à mesa onde, antes daquela interrupção, tomava seu café.
Abriu o jornal, da maneira como João fazia, e começou a folheá-lo, ouvindo o ruído de suas folhas, ao serem manipuladas, chegarem aos seus ouvidos com uma sonoridade distinta daquela produzida pelo seu falecido marido, quando ele, sentado àquela mesa, fazia aquele mesmo gesto.
Depois de folhear algumas páginas, Ana, algo entediada, deixou de lado o jornal e voltou as atenções ao seu café da manhã. Sentia então um certo alívio por ver sua rotina restabelecida.
Não fosse a inesperada entrega daquele jornal, teria sido um dia como qualquer outro: sem nenhuma nenhuma vírgula na sua bem traçada rotina, nem sequer uma novidade…
Nada.