No fundo, julgava-se um merda, um merda daqueles cuja presença no planeta não fez, não fazia e, por certo, não faria nunca diferença nenhuma: tanto faz, como tanto fez. Era um sujeito incapaz de qualquer gesto honroso para se fazer notar, algo que até conseguia por meio de seus deslizes, que eram muitos, mas assim como ele, invariavelmente passavam desapercebidos.

Trabalhava como contador numa empresa onde a contabilidade era apenas uma área de apoio. Ainda assim, era a primeira área a ser lembrada quando o assunto era problema.

Só então seu nome:

— Astor

era lembrado.

— Venha aqui à sala tal

pedia-lhe o seu chefe ao telefone. Astor então desligava seu ramal, saia de sua baia cinzenta e seguia, esbaforido, para a tal sala de onde o seu chefe o chamava. Pelo caminho, que percorria meio que atropelando os passos, ainda encontrava tempo para, mentalmente, imaginar sua entrada naquela sala vestido à maneira de um homem bomba e, ao invés de dizer

— Olá

explodir, levando ele e todos os demais ali reunidos para uma morte cuja chegada ninguém nem notaria, assim como ninguém notaria a chegada dele àquela sala.

Mas esse plano ficava apenas na imaginação: Astor era medíocre demais para por em ação algo tão mirabolante.

Ao chegar à sala da tal reunião para a qual havia sido chamado, ele não era capaz de atrair o foco dos olhares de ninguém ali presente — ninguém de fato notava sua chegada. Interessava aos que estavam naquela sala apenas que o problema — que nem sequer era apresentado a Astor — tivesse logo uma solução.

— E então?

logo de cara perguntavam.

Pergunta para a qual Astor reservava sempre a mesma resposta: o silêncio de quem nada tem a dizer, por se considerar um ninguém.

No restante da reunião, Astor permanecia num canto, a fingir que tomava notas, quando na verdade rabiscava cenas obscenas no papel, sonhando um dia poder pô-las em prática. Quando a reunião terminava, era o último a deixar o recinto: era sua forma de marcar alguma presença, se bem que ninguém estava nem aí para ele. Tivesse ele saído antes, daria no mesmo.

No dia a dia do trabalho, escondia sua completa ausência de autoridade escorando-se na autoridade alheia: nada conseguia por si mesmo, tinha sempre que dar conhecimento do cargo de quem, de fato, por meio dele endereçava o pedido: seu chefe ou um outro gerente qualquer, de quem ele era sempre um subordinado.

Sua vida era de casa para o trabalho, e deste de volta para casa, numa rotina que só encontrava alguma variação nos finais de semana, quando então seu percurso diário mudava para: de casa para a igreja, e desta de volta para casa.

Sozinho, sem família e amigos, e já numa idade em que novas amizades são raras, não lhe restava outra alternativa senão seguir vivendo e repetindo todos os dias essa mesma rotina, ainda que a detestasse.

Há anos não tirava férias decentes (talvez há uns 20 anos): procuravam-no para resolver problemas do trabalho logo no que supostamente seria o seu primeiro dia de gozo de férias, e assim continuavam a fazer durante toda a sua ausência do escritório, que, deste modo, ao fim e ao cabo, acabava sendo uma ausência apenas física, pois, à distância, ele continuava a trabalhar como se fosse um dia regular de trabalho, com a única diferença de não ter de ir de casa para o trabalho e de lá voltar para casa.

No fundo, as férias que tirava o livravam dessa parte da rotina e, também, do sentimento de nada valer, de ser um ninguém: ao menos durante sua ausência, notavam sua existência à distância. Esse pensamento de certa forma tranquilizava um pouco a amargura que ele vivia ruminando, sem nunca engolir ou cuspir para fora.

Quando retornava das férias, sentia-se tão cansado quanto no dia em que saíra para, em tese, poder desfrutar alguns dias de descanso.

Aproximando-se de seus sessenta e cinco anos, Astor tinha esperança de poder viver uma vida diferente depois de se aposentar. E é aqui que residia sua maior angústia, pois, pela regra de aposentadoria mais recente, aquela que portanto o atingia, a partir dos sessenta e cinco anos de vida, como logo mais viria a ser exatamente o caso de Astor, todo cidadão seria submetido a um cálculo específico para se chegar à sua idade de aposentadoria. Por meio desse cálculo, a cada ano de aniversário do cidadão, após completar os seus sessenta e cinco anos, o governo faria constar nos seus registros, para fins previdenciários, vinte anos a menos.

Deste modo, tão logo completasse seus sessenta e cinco anos, Astor passaria a ter, para fins previdenciários, quarenta e cinco anos. No ano seguinte, quando completasse sessenta e seis, sua idade de aposentadoria regrediria para quarenta e seis anos, e assim por diante.

Com a idade para a aposentadoria fixada pelo governo em noventa anos, para homens e mulheres, não se tinha notícia, desde a implantação dessa regra, que alguém tivesse conseguido se aposentar.

A tal regra nascera sob a justificativa de crise nas contas da previdência, mas há anos não se falava nem se cogitava de mudá-la, pois, como dizia a maciça propaganda do governo em torno dela: um povo cada vez mais jovem é um povo feliz.

— É isso que nossa pátria precisa

dizia o presidente em seus pronunciamentos improvisados na televisão

— Juventude e felicidade!

concluía, depositando a mão direita sobre a faixa presidencial encardida que equilibrava sobre o peito, na transversal do torso, por sobre um terno mal ajambrado.

Assim, não restaria a Astor outra alternativa senão, mesmo depois de completados os seus sessenta e cinco anos, o que faria dali a um mês, seguir vivendo sua rotina, que nos dias úteis implicava ir de casa para o trabalho, e deste retornar para casa; e nos finais de semana, ir de casa para a igreja, e desta retornar para casa.

Não lhe restava outra alternativa senão seguir vivendo assim até morrer.

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