Era finalzinho de tarde e, pela janela da sala do pequeno apartamento, aberta para aliviar um pouco o forte calor, os raios do sol poente entravam. Àquela hora, a luz que eles traziam tinha matizes de sépia, que conferiam àquele ambiente uma cor similar ao de uma foto antiga.

Eu acabara de chegar e, ali comigo, estava apenas Dona Lucy, a moradora daquele pequeno conjugado de quarto e sala. Depois de nos cumprimentarmos, sentamo-nos cada um em uma poltrona, ao redor de uma mesinha de centro de pés palito, e, do nada, ela desandou a falar:

— Exceto pela Meryl Streep, a Julianne Moore e a Fernanda Montenegro, nenhuma outra atriz de Hollywood me mobiliza mais para sair de casa e ir ao cinema.

Disse-me Dona Lucy, sem que eu tivesse lhe perguntado nada a esse respeito.

Seu olhar melancólico contrastava com seu sorriso fácil e largo. Apesar de bastante idosa, era uma mulher altiva e, pelo visto, vaidosa o bastante para cuidar de estar elegante mesmo dentro de casa. Quando cheguei, encontrei-a vestindo um conjuntinho de tailleur e saia, por sobre uma blusinha de seda. No seu rosto, todo coberto pelo pó de maquiagem, com duas rodelas mais avermelhadas por sobre as bochechas, o destaque eram as sobrancelhas desenhadas a lápis, um pouco escondidas por detrás dos elegantes óculos de grau com armação de tartaruga. Sobre a boca, ela passara um batom de um rosa bem vivo e, em volta do pescoço, havia um colar de pérolas tão bem feitas que até pareciam verdadeiras.

— Aceita um café?

Ela me perguntou, já enchendo uma xícara daquelas de chá de porcelana branca e pousando-a, diante de mim, sobre a mesinha de centro que separava a poltrona dela da minha.

Era a primeira vez que nos encontrávamos pessoalmente

(até então eu a tinha visto apenas por fotos, mesmo assim, antigas)

e naquele instante, tendo à minha frente aquela mulher corpulenta, de cabelos tingidos de preto, cortados à escovinha, percebi que estava como que diante de uma grande enciclopédia, de heráldica encadernação em couro, que mesmo com algumas de suas folhas manchadas e rasgadas, ainda assim preservava algum valor e alguma utilidade como obra de referência. Em resposta, disse-lhe, cortesmente:

— Aceito.

(à essa altura a xícara já estava preenchida até a borda de um perfumado café feito no coador de pano)

Eu tinha ido ao encontro dela para tratarmos de assuntos ligados à herança de meu pai, Seu João: Dona Lucy era viúva dele e minha madrasta. Não cheguei a conviver com ela, pois eu já tinha saído da casa do meu pai, quando ele a conheceu. Quando meu pai, Seu João, e minha mãe, Dona Maria, se separaram, fui viver com minha mãe, pois me era mais conveniente. Conhecia Dona Lucy apenas pelas histórias que meu pai me contava a respeito daquela mulher que tanto o fascinara.

— Dona Lucy…

Tentei falar-lhe, mas com um levantar da palma da sua mão direita, enrugada e cheia de pintas senis, à semelhança de uma pele de leopardo, ela interrompeu a minha intervenção. Então, mesmo consciente do quão inusitadas tinham sido suas palavras iniciais, deixei-a livre para continuar falando. Àquela altura, eu nutria, bem verdade, certa ansiedade por saber se suas próximas palavras denunciariam, como de início, outras surpresas, tão inusitadas quanto as primeiras, o que daria àquela conversa um delicioso quê de loucura.

— Lembro-me da primeira vez que fui ao cinema.

Ela começou a contar, olhando-me com um olhar terno, como se estivesse a olhar para seu verdadeiro filho, que ela nunca chegou a conceber.

Eu também me lembrava da primeira vez em que eu tinha ido ao cinema, muito embora não conseguisse, ali naquele momento, diante dela, recordar-me do nome do filme, nem com quem teria ido, se é que tinha ido com alguém – recordava-me apenas que era muito jovem. Melhor seria dizer, portanto, por fidelidade à verdade, que de nada de fato me recordava — apenas pensei em falso ter tal memória guardada comigo.

— Estava vestida com meu melhor vestido à época.

Ela continuou, intercalando sua fala com generosos goles de café.

A salinha em que estávamos tinha uma atmosfera kitsch, sensação reforçada pela presença, naquele claustrofóbico recinto, de estantes e mesinhas de centro e de canto, recheadas de incontáveis bibelôs de louça, em formato de bichinhos de diversos tamanhos, tendo sobre o piso um carpete magenta, empoeirado,

— Eu…

fonte, eu imaginava, do forte cheiro de naftalina que tomava conta do ambiente.

— … não comprava pipocas, nunca gostei do sabor e gostava ainda menos do barulho que as pessoas faziam ao mastigá-las dentro da sala de projeção. Bastavam-me umas balas de anis.

Ela confessou.

De minha parte, sempre preferi o cheiro das pipocas ao seu sabor. Compartilhava totalmente com ela, contudo, a antipatia por ruídos quaisquer, de mastigação em especial, dentro das salas de cinemas. Por esta e por outras razões, minha incontinência urinária sendo a principal, há anos, eu mesmo vinha diminuindo gradualmente minha frequência às salas de projeção, preferindo apreciar a sétima arte no doce conforto de meu lar.

— Certa vez,

Ela pronunciava as palavras em um ritmo lento, talvez por causa do calor — ou seria por causa da idade? —, não sei. Sua malemolência dava-me a impressão de que aquela conversa avançaria pelo restinho da tarde e seguiria pela noite adentro.

— … fui até o toilette durante uma sessão de Casablanca, e lá encontrei com a Suzana, sua mãe.

Ela continuou.

— Dona Lucy.

Tentei interferir, mais uma vez sem sucesso.

— Suzana estava chorando, pois seu namorado de então a abandonara logo no início do filme, ainda quando os nomes de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman apareciam na tela. Dei minha mão a ela e a abracei, trazendo sua cabeça para junto de meu peito. Seu choro foi cessando aos poucos, assim como os soluços.

Suzana não era minha mãe, mas sim meu pai, Seu João: ele adotou o nome Suzana após separar-se de minha mãe, Dona Maria, e depois de passar por uma cirurgia de mudança de sexo. Mesmo depois desse procedimento, João continuou sendo seu nome oficial, conforme registrado em seus documentos.

— Lucy!

Chamava-a pelo seu nome, mas ela parecia absorta em seus pensamentos e memórias, mirando o vazio com aqueles olhos castanhos, por detrás das pesadas lentes de seus óculos de armação de tartaruga.

— Ah, Suzana…

Um gato persa, que cochilava sobre o colo de Dona Lucy, talvez cansado de esperar em vão por carícias, pulou para o chão e seguiu, lentamente, para a cozinha — pelos miados que emitia, que mais pareciam lamentos, devia estar com bastante fome.

Eu sabia que Dona Lucy e meu pai, depois de ele se separar de minha mãe e mudar de sexo, haviam tido um longo e tórrido relacionamento. Meu pai, muitos anos depois, já separado de Dona Lucy, costumava me contar histórias daqueles anos em que convivera com ela, quando nos sentávamos à mesa para jantar, apenas ele e eu, nas raras vezes em que ele me visitava, depois que minha mãe, Dona Maria, faleceu por causa de um ataque do coração. Isso tudo antes de ele mesmo morrer de um câncer na próstata.

Os sons dos sinos da igreja da Consolação faziam-se ouvir não muito longe dali, anunciando a chegada das 6 da tarde. Então Dona Lucy pontuou:

— Naquele instante em que vi sua mãe, sabia que nossa história iria para além daquele encontro casual.

E de fato assim foi: Dona Lucy e meu pai, segundo o que ele me contava quando ainda vivo, conviveram por muitos anos, chegando a morar juntos em um pequeno sobrado nas proximidades do prédio onde ela ainda mora, na região do Baixo Augusta. Aquele sobrado já não mais existe: deu lugar a um prédio de apartamentos, todos eles diminutos como o de Dona Lucy.

Os ruídos da cidade, bem mais fortes àquela hora do final da tarde, entravam pela janela entreaberta da sala do pequeno apartamento dela, que ficava de frente para a Rua Augusta.

O gato voltava da cozinha, de rabo ereto e com um olhar pidão, quando alguém interfonou. Como que finalmente liberta do transe em que se metera desde minha chegada, ela levantou-se e foi atender. Mandou subir quem então chegava. Poucos instantes depois, alguém bateu à porta do apartamento e chamou:

— Seu Jorge?

Dona Lucy foi atender.

Ao abrir a porta, cumprimentou o homem que ali estava, do lado de fora, com um firme aperto de mãos e perguntou-lhe:

— É a ração do Domenico?

Era o nome do gato.

— Sim, Seu Jorge. Trouxe a ração para gatos que o senhor havia encomendado comigo, ontem, lá na loja.

— Ah, obrigado. Quanto lhe devo, Seu Moacir?

— Depois acertamos, Seu Jorge. Tenha uma boa tarde.

E assim o homem despediu-se e foi embora.

Dona Lucy fechou a porta, pediu-me licença e foi até a cozinha, seguida por um saltitante e ansioso Domenico. Ela carregava o saco de 30 quilos de ração para gatos, sem aparentar fazer muito esforço — o saco de ração parecia-lhe de fato muito leve.

Sozinho na sala, avistei um porta-retratos, sobre um aparador, logo atrás da poltrona onde Dona Lucy estava sentada até alguns instantes atrás. Um tanto apertado no meio dos muitos bibelôs de louça ao seu redor, o porta-retratos, em formato de coração, revelou-se aos meus olhos somente depois que ela foi dar de comer ao gato, pois antes estava eclipsado por detrás da cabeça dela.

Emoldurada pelo porta-retratos, havia uma foto antiga, cujos tons de sépia combinavam com o tom dos raios de sol que inundavam a sala no momento que eu ali chegara. Naquela foto, eu podia ver o registro da imagem de meu pai e Dona Lucy beijando-se, tendo ao fundo uma praia ensolarada. Pareciam apaixonados. Na parte de baixo da foto, uma pequena legenda, escrita à caneta Bic, contextualizava: Jorge e João, Santos, 1975.

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