Desde muito anos, elas se encontram semana sim, semana não, numa periodicidade maior do que aquela que, no passado, chegaram a praticar, quando então quase viviam uma dentro da casa da outra. Com o passar dos anos, porém, mãe e filha foram aos poucos se distanciando, e os seus encontros foram ficando cada vez mais e mais raros, terminando por se fixar nessa regra de semanas intercaladas: uma sim, duas não.

Júlia, a mãe, era uma viúva de 83 anos; Lídia, a filha, era uma solteira de 52 anos. Cada uma vivia na sua própria casa, a poucos quarteirões uma da outra, uma distância curta o suficiente para percorrerem a pé, tranquilamente.

Em geral, Lídia, por ser a mais nova, era quem ia até a casa de sua mãe, muito mais vezes do que Júlia ia até a casa da filha.

Quando se encontravam, entre xícaras de café e bolinhos de chuva, mãe e filha ficavam a tricotar agasalhos que depois acabavam indo para a doação. O tricô tinha por finalidade protegê-las do tédio, não do frio — servia ao menos para quebrar um pouco o silêncio entre elas. Falavam pouco entre si: a conversa entre elas era formada muito mais pelos silêncios do que pelas palavras. Também a linguagem corporal compunha o diálogo entre ambas: pelo modo como se respirava, pelas expressões dos rostos, a velocidade das mãos ao tricotar, pelos meneios das cabeças, uma sabia o que a outra queria dizer.

Num sábado à tarde, quando Lídia, como de hábito, chegou à casa de sua mãe, logo depois de dizer:

— Boa tarde, mãe.

E sua mãe responder:

— Boa tarde, minha filha.

Ela e sua mãe passaram o resto do tempo que ficaram juntas, naquele dia, sem dizer palavra nenhuma, apenas tricotando e, vez ou outra, ao modo de um gato que levanta as orelhas ao perceber algo diferente por perto, entreolhavam-se para conferir se era verdadeira ou não a ausência que o silêncio acusava estar presente. No início da noite, quando Lídia se levantou e quis tomar o rumo da porta para ir-se embora, disse apenas:

— Vou chegando, mãe.

No que sua mãe respondeu, como de praxe:

— É cedo, minha filha.

E então, também como costumava sempre fazer, a mãe complementou:

— Fica para a janta.

Esse era o código de palavras que mãe e filha adotavam a cada vez que se despediam. Sempre a mesma combinação de frases

— Vou chegando, mãe

na mesma sequência

— É cedo, minha filha. Fica para a janta.

e depois de um beijo na face uma da outra, somente se veriam dali a duas semanas, novamente em um sábado à tarde.

Nas duas semanas que separavam um encontro do outro, nenhuma ligação, nenhuma mensagem, nem um

— Tá tudo bem?

nem tampouco um

— Estou com saudades.

Nesse período, mãe e filha viviam suas vidas completamente apartadas, como se uma não existisse para a outra. Isolavam-se por completo.

Cabia um mundo de dores, angústias, alegrias e nostalgias nessas duas semanas, mas nem mãe nem filha compartilhavam uma com a outra o que se passava com cada uma delas por esses dias.

Há anos, mãe e filha cumpriam esse mesmo ritual de se encontrarem sempre num sábado à tarde, semana sim, semana não, até que, num determinado sábado em que Lídia tinha ido visitar Júlia, quando, ao final daquele dia, em que se percebera um silêncio um pouco maior entre elas, a filha anunciou sua partida, como sempre dizendo:

— Vou chegando, mãe.

Sua mãe nada respondeu. 

Então Lídia, ao voltar seus olhos para Júlia, notou que sua mãe tinha parado de tricotar

(daí o silêncio)

e, com os braços e as mãos caídos sobre seu colo, tinha os olhos fechados como se estivesse cochilando ou morta. A hipótese da morte, talvez pela idade avançada de Júlia, foi aquela que Lídia, quase instintivamente, primeiro considerou, e aos prantos e desesperada, correu para abraçar sua mãe, enquanto sua mente revivia todos os momentos que tinham passado juntas desde que Lídia nascera chorando e aos berros.

(reconhece-se a vida pelo barulho que ela faz)

— É cedo, minha mãe

disse Lídia, com a voz embargada, para uma Júlia que não mais podia lhe ouvir

(reconhece-se a morte pelo silêncio que ela traz)

— Fica para a janta

pois de fato sua mãe falecera enquanto tricotava.

O silêncio ente elas agora a acompanharia por todos os dias.

Reconhece-se a vida pela quietude que fica quando ela vai-se embora.

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