Era um lugar sujo, feio, tomado por uma tristeza enorme, que se fazia ainda mais pungente por conta da chuva fria que, há mais de três dias, caia quase sem dar trégua nenhuma.
Da janela de seu quarto, no quinto andar de um antigo e decadente predinho de oito andares, Camila observava a rua em frente, completamente vazia de pessoas, com o comércio todo fechado e, por todo lado, as muitas placas de aluga-se e passa-se o ponto. Antes de tudo aquilo começar, aquela rua era ruidosa: vivia povoada de pessoas, quase sempre carregadas de sacolas, num frenético ir e vir, para lá e pra cá, que começava ainda antes do sol raiar e só tinha fim quando a noite caia.
Por vários quarteirões, viam-se lojas populares de todos os tamanhos, diante das quais se enfileiravam um sem número de barracas de vendedores ambulantes, que, de tão próximas umas das outras, pareciam, quando vistas do alto, uma única barraca comprida e esguia, que reservava aos pedestres apenas um estreito caminho de passagem na calçada. No passado, em dias chuvosos como esse, o cenário ficava ainda mais caótico. Nesse dia, porém, sem a multidão de pessoas, havia apenas a chuva, que caia numa melancolia de domingo à tarde, embora fosse outro dia qualquer.
Enquanto observava a chuva cair, Camila viu um guarda-chuva amarelo despontar na esquina e vir caminhando num passo apressado até o predinho onde ela morava. Era o carteiro. Na caixa de correio correspondente ao seu apartamento, ao lado do portão, ele depositou um envelope pardo, grande, daqueles que trazem dentro algo importante. Em geral, desde que tudo aquilo começara, quando vinha depositar as correspondências ali, o carteiro olhava para a janela de onde Camila sempre estava a observar a nova ordem das coisas lá embaixo e para ela acenava antes de ir-se embora.
Desta vez
(por causa da chuva?)
nenhum aceno. Nem ao menos se deu ao trabalho de olhar para a janela. Apenas depositou o envelope na caixa de correios e partiu, logo vindo a sumir na primeira esquina rua abaixo. Parecia apressado ou com medo.
Vai ver era um outro carteiro.
Camila não desceu para pegar a carta. Há dias
(meses?)
elas iam se acumulando na caixa de correios. Não lhe interessava saber sobre o conteúdo daquele envelope que acabara de lhe ser entregue, nem tampouco de tantos outros que ali estavam depositados, aglomerados como passageiros em um ônibus que cruza a cidade no fim do expediente.
O dia seguia seu lento caminhar: à tarde, as horas pareciam ainda mais longas, como se em cada uma delas coubesse uma eternidade.
Lá fora, ainda chovia, mas então com menos intensidade. Já era possível ver algumas andorinhas a descerem e subirem pelo céu, em voos agudos, em busca de insetos que, ao contrário de Camila, arriscavam-se a sair, pagando a liberdade com a própria vida.
Dali da janela de seu apartamento, Camila observava tudo, tomada por um tédio gigantesco, que parecia envolver seu corpo como um manto pesado.
Houve um tempo em que ela podia voar: abria suas asas e depois de batê-las duas ou três vezes, alçava voo e, logo, ganhava o espaço aberto do céu, onde permanecia voando por horas, contando com a bem-vinda ajuda dos ventos. Lá do alto, ficava a observar o movimento do mundo lá embaixo, mundo que ainda podia observar, mas agora
(e desde que tudo aquilo começara)
confinada aos limites de altura da janela de seu apartamento, no quinto andar daquele velho prédio, espremido em meio a tantos outros, como se fosse parte de uma multidão.
Volta e meia, ao longo do dia, Camila recebia a visita de um ou outro passarinho. Eles vinham pousar no parapeito da janela, de onde lançavam olhares curiosos para dentro do quarto dela. Quando a viam, partiam num sopro, assustados, talvez temerosos de que o destino de Camila pudesse de alguma forma alcançá-los e, ao custo de uma maior segurança, aprisioná-los, privando-os, assim, da tão arriscada liberdade.
Presa e isolada em seu apartamento, Camila desfrutava de grande segurança, mas lhe faltava a liberdade.
Dentro do seu quarto, havia uma televisão que se mantinha ligada o tempo todo. Era a janela com que Camila acompanhava o mundo para além dos limites do estreito campo de visão da janela de seu apartamento. Noticiário após noticiário, a impressão que Camila tinha era que os jornalistas voavam em torno das informações sobre o número sempre crescente de mortos, as UTIs lotadas, a vacinação lenta e escassa, como varejeiras em torno da carne podre, produzindo um zumbido bastante monótono, causador de uma sonolência tal, que fazia pesar as pálpebras de Camila, levando-a a cochilar de maneira intermitente ao longo do dia, o que, entre outras razões, prejudicava ainda mais seu já difícil e escasso sono à noite.
Havia perdido a conta de quantos dias
(meses?)
não saia de casa. Parecia-lhe que os dias
(meses?)
que se seguiram ao primeiro dia desde que tudo aquilo começara eram uma reprodução infinita daquele primeiro dia.
– Quando tudo isso vai terminar?
Perguntava recorrentemente a si mesma em pensamento, uma pergunta que nunca encontrava resposta, nem sequer eco na realidade sísifa que a circundava e, de certa forma, sufocava-a. Já não se recordava quando tinha sido o último momento em que tocara alguém com um beijo, um abraço ou um simples aperto de mãos.
Desde que tudo aquilo começara, os seus limites eram basicamente os limites de seu apartamento. Saia pouco e apenas para ir ao mercado, vez ou outra na farmácia… nada de mais, e sempre sozinha. Sentia-se angustiada com essa rotina, mas o medo da peste de certa forma a reconfortava.
Na solidão de seu apartamento, distraia-se com pequenos afazeres como ler, olhar fotos antigas, bordar. Outro dia, enquanto arrumava uma gaveta do armário, encontrou uma foto antiga de sua avó. Camila havia ficado meses sem vê-la e, dia desses, soube por um parente que sua avó falecera. Para ela, aquela morte não era mais um número dentre os milhares que os jornais anunciavam todos os dias. Era sua avó, afinal, que havia morrido – a pessoa com quem Camila tanto brincara na infância, quando a vida parecia não ter fim. Foi sua avó que, mesmo desprovida de asas e sem nunca ter voado, ensinou Camila a voar.
A foto não voltou mais para a gaveta: depois que soube da morte de sua avó, Camila manteve a foto sempre ao alcance dos seus olhos, em cima do criado-mudo ao lado da cama. Deitada sobre esta, Camila observava a imagem da avó, metida em um vestido típico dos anos 30. Na foto, a avó tinha um olhar sisudo, triste, que parecia mirar o vazio. Muito parecido ao olhar que Camila via refletido no espelho do banheiro, sempre que ia se pentear, lavar o rosto ou escovar os dentes.
Camila pegou a foto com a mão esquerda, levantou-se e caminhou para a janela do quarto, que por sua vez abriu com a mão direita. Com ambas as mãos projetadas para o lado de fora do apartamento, picotou a foto da avó até que esta se tornasse um punhado de pequenos quadradinhos irregulares, que Camila lançou ao vento como quem nele joga as cinzas de um corpo cremado. Uma vez jogados, os quadradinhos tomaram rumos distintos, voando para todos os lados, como os confetes que Camila tanto gostava de brincar nos Carnavais do passado.
Se soubesse o que viria depois do último Carnaval, teria celebrado como se de fato fosse o último. Teria beijado mais, abraçado de forma mais intensa, rido a plenos pulmões. E o que mais?
Com esse pensamento ainda a ocupar sua mente, Camila deixou a janela e foi até o guarda-roupa. Então, abriu suas portas e, lá dentro do antigo móvel de madeira marfim, ela avistou a fantasia de fada que acabou não sendo usada no último Carnaval: um vestido de bailarina de tule rosa, com asas de celofane púrpura, presas às costas do vestido, suportadas por uma armação de arame.
Camila despiu-se do moletom que vestia, o mesmo que vinha usando dia após dia
(meses?)
desde que aquilo tudo começara, e vestiu a fantasia de fada. Não se lembrava de ter uma varinha, do tipo daquelas que, com uma estrela na ponta, dizem ser mágicas. Procurou, procurou, mas nada de encontrá-la.
Em uma das gavetas do guarda-roupa, ao invés da varinha mágica que tanto procurava, encontrou um revólver, a arma que seu pai legara a ela quando de sua morte.
– É para a sua segurança.
Ele dizia, pouco antes de morrer. A morte de seu pai não entrara para as estatísticas repisadas todos os dias pelos jornais desde que aquilo tudo começara, à maneira das pisadas dos coveiros sobre a terra que encobre os mortos nas muitas covas que a televisão mostrava todos os dias. Covas cavadas às pressas para fazer frente à demanda de corpos sem vida que, desde que tudo aquilo começara, parecia nunca esmorecer.
Vestida de fada, com a arma na mão direita, Camila caminhou até a janela do quarto, abriu-a, subiu sobre o parapeito e, de lá, ao som de um estampido seco, Camila se viu livre para voar – um voo curto, que em fração de segundos terminou com seu corpo aterrissando, num baque úmido, no chão duro de ladrilhos à frente do prédio. Um voo demasiado rápido, mas que pelo menos serviu para libertá-la da clausura solitária em que vivia desde que tudo aquilo começara.
– É tão bom poder voar.
Pensou, pouco antes de inclinar seu corpo para a frente e acionar a varinha mágica carregada sob seu queixo.