Não havia mais nada a fazer: diante do corpo da mãe, estirado sobre o caixão à sua frente, só restava a José deixar fluir dos olhos o choro envergonhado de quem sempre fora ensinado, pela própria mãe, Dona Maria, que
– Homem não chora.
Ela também costumava dizer:
– Não me apego à tristeza.
E com isso em mente, José beijou a pele fria da testa dela e fez sinal para os homens da funerária fecharem o caixão, que dali levaram para o cemitério. Para lá, o rabecão seguiu sem cortejo.
Fora esses dois encarregados que a funerária havia mandado para cuidarem do velório, nenhuma outra alma viva fazia companhia a José: ele era, então, o único sobrevivente de uma família devastada.
Seu pai, seus dois irmãos mais novos e agora sua mãe, todos tinham partido, um em seguida ao outro, todos dentro de um curto espaço de tempo. Mal José se curava do luto da perda de um familiar e logo outro vinha a falecer: primeiro foi seu pai, depois o irmão do meio, em seguida o mais novo e, anteontem, foi a vez de sua mãe, cuja morte súbita punha fim a essa cadeia mórbida que, ao todo, não tinha durado nem sequer um mês.
A causa das mortes era desconhecida. Nem mesmo os médicos do hospital da cidade sabiam dizer. Na falta de uma justificativa científica, José atribuía as mortes à vontade de Deus, em cuja companhia acreditava que seus familiares agora estavam. Era um homem bastante religioso, daqueles de quem se diz ter fé inabalável.
No caminho de volta para casa, ao passar defronte a igreja, José se benzeu como de costume. Sentada no primeiro degrau da escada que levava à porta da igreja, uma velha senhora, em farrapos, estendeu-lhe a mão direita para pedir uma esmola qualquer. Ao vê-la, José interrompeu seu ritual e, com os olhos vermelhos como um pôr do sol de outono, começou a desferir chutes sobre a velha, como se a querer descontar nela toda a dor por que passara no último mês, derivada da perda de seus familiares. Chutou-a na cabeça, no peito, no estômago, chutes fortes, certeiros. Na falta de forças para gritar, a velha apenas gemeu, gemeu e logo depois silenciou: estava morta.
Ninguém presenciara aquela cena, ou se presenciaram, não se importaram. Deus testemunhara e nada fizera para impedir, habituado que estava a ver tantos de seus filhos morrerem nas mãos de outros tantos de seus filhos pelo mundo afora.
Tomado pela adrenalina do assassinato que acabara de cometer, José entrou na igreja e foi se confessar. Ao padre, contou tudo que lhe ocorrera na última semana, mas omitiu que tinha acabado de matar uma velha senhora na porta daquela mesma igreja. No final da confissão, foi perdoado.
Os sinos da igreja anunciavam ser 6 da tarde, quando José passou pela mesma porta onde antes a velha senhora pedia esmola – seu corpo ainda estava lá, ensanguentado como as mãos do Nazareno na cruz.
Poucos passos adiante, José tomou o ônibus que o levaria para casa, mas no meio do caminho, decidiu descer e seguir para um bar. Precisava, como se diz, encher a cara. Sentado diante do balcão, sobre um banquinho que mal acomodava suas nádegas magras, ele pediu uma cerveja, tomou, depois pediu outra, tomou, e assim seguiu noite adentro até por volta das 3 da madrugada, quando então, sendo o último cliente, foi convidado pelo balconista a pagar a conta e ir-se embora: era hora de fechar o bar.
Mesmo bêbado, José conseguiu pagar a conta e saiu. Foi caminhando pela rua, àquela hora completamente deserta, trançando as pernas até cair alguns metros depois, na frente de um mercadinho, onde outras pessoas então dormiam, em meio a colchões e cobertores improvisados. Quando o dia amanheceu, todos dali foram enxotados pelos seguranças do mercadinho. José, de tão bêbado, não se mexia. Não fosse pela temperatura de seu corpo e pelo pulsar de seu coração, diriam estar morto.
Reclamando do fedor de álcool que o corpo de José exalava, os seguranças o levantaram e o jogaram em uma caçamba de lixo, do outro lado da rua. E ali, em meio ao lixo, e como se lixo também fosse, o corpo de José foi recolhido pelos lixeiros e jogado dentro do caminhão de lixo, quando este por ali passou no meio da tarde daquele dia.
Ao verem seu corpo, prestes a ser triturado pelo equipamento do caminhão, os lixeiros gritaram ao motorista que parasse a máquina. Os dentes das engrenagens pararam de mastigar o lixo pouco antes de chegar ao corpo de José.
Os lixeiros, então, pegaram o seu corpo, ainda inconsciente, e jogaram-no sobre o gramado imundo de uma praça qualquer ali do centro, suja e mal cuidada.
Horas depois, já com o sol alto, José foi acordado pelo arrulhar dos vários pombos que o cercavam. Ao ver aqueles serezinhos alados, José pensou estar no céu, em meio aos anjos, com Deus e, portanto, na companhia de seus familiares.
Uma forte enxaqueca agitava suas têmporas e fazia doer sua cabeça a ponto de deixá-lo zonzo. Ficou ali o restante do dia, deitado, sem forças para se levantar.
Pouco antes da meia-noite, um caminhão da prefeitura passou por ali varrendo o chão com um potente jato de água, fria como a testa da mãe morta que José beijara no dia anterior.
Junto a toda a sujeira da praça, e como se sujeira também fosse, José foi varrido dali para uma sarjeta do outro lado da rua.
Na falta de forças para reagir, levantar-se, José nada disse, nem tampouco gemeu. E, embora seus olhos, assim como todo seu corpo, estivessem encharcados, não era propriamente de choro. Afinal, como dizia sua mãe:
– Homem não chora.
Na manhã do dia seguinte, ao acordar, vendo seu corpo ainda todo encharcado, cansado e com a mente atordoada, José reuniu as poucas forças que lhe restavam para se levantar e então caminhou, meio trôpego, até um dos bancos da praça. Ali, sentou-se, e com o rosto entre as mãos, pôs-se a chorar
(– Homem não chora.)
feito uma criança.
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