A pequena vila, com seus sobradinhos espremidos um ao lado do outro, era uma ilha de tranquilidade em meio ao agito trazido para aquele bairro pelos muitos espigões que, no decorrer dos últimos anos, foram erguidos ao redor, fazendo aumentar a população local de pessoas, de carros, o trânsito, o barulho, tornando o silêncio algo absolutamente raro, encontrado apenas por entre os cômodos daqueles sobradinhos, habitados, todos eles, por idosos solitários, cujas vidas eram somente memórias.
(e algumas saudades)
Ao contrário de seus vizinhos, que passavam a maior parte do tempo ora dentro de suas casas, ora sentados nos bancos à frente delas, a papear uns com os outros, a reclamar das muitas dores da velhice e a lembrar do passado, muito raramente saindo dos limites da vila, Dona Clarice gostava de sair de casa e fazer suas caminhadas diárias pelas redondezas.
Aos 70 anos, viúva e sem filhos, ela ainda encontrava forças para cumprir diariamente essa rotina: gostava de registrar com os olhos o mundo que se formava para além do portão da vila onde sempre vivera, desde menininha.
Curvada como uma gárgula, ela caminhava pé ante pé, bem devagar, como se a carregar todo o peso do mundo sobre aqueles seus ombrinhos estreitos. Ia à padaria, ao açougue, à feira, ou andava sem rumo certo, pelo simples prazer de sentir-se ativa, e depois voltava para sua casa, que, tal como as demais ali na vila, era um sobradinho estreito, com a fachada toda recoberta de coloridas pastilhas de vidro, algo típico das primeiras residências que, há muitos anos, ali se estabeleceram e das quais então restavam apenas os tais sobradinhos. Todo o entorno da vizinhança era formado de prédios residenciais altos, que lançavam suas sombras por sobre a vila, restringindo o horário de sol de seus habitantes a apenas poucas horas do dia.
– A gente não vive, a gente teima.
Dona Clarice respondia àqueles que lhe perguntavam:
– Como vai a senhora?
ou
– Melhorou das dores no estômago, Dona Clarice?
como, outro dia, o moço da farmácia, o mesmo que sempre a atendia, quis saber, enquanto ela repunha o estoque semanal dos remédios que serviam para aliviar suas muitas aflições.
A resposta dela era sempre a mesma:
– A gente não vive, a gente teima.
Aguerrida, Dona Clarice liderou por muitos anos a resistência dos moradores da vila contra o assédio de grandes construtoras que sempre viram aquele espaço como ideal para a construção de mais um grande conjunto habitacional, moderno e com muitas torres. Boa parte de sua velhice, ela passara indo ao encontro de seus vizinhos, casa a casa, a fim de, entre um café ou um chá com bolo, convencê-los a não ceder àquele assédio.
Seguiu vitoriosa até o dia em que, logo depois de sair pela manhã para mais uma de suas caminhadas, seus vizinhos receberam a visita do representante de uma dessas grandes construtoras, um jovem homem, cabelo e barba cortados bem curtos, vestindo calça e camisa social, munido de uma pasta cheia de papéis, que chegou ali na vila, sem avisar, e foi de casa em casa, oferecendo aos velhinhos e velhinhas propostas de troca dos sobradinhos onde viviam sozinhos por…
Uns entenderam que a proposta seria de compra dos sobradinhos, com pagamento em dinheiro; outros entenderam que a proposta era pela troca dos seus sobradinhos por um apartamento no prédio que a construtora queria ali construir; houve aqueles, ainda, para os quais a proposta do jovem homem foi simplesmente incompreensível, mas que mesmo assim, seduzidos por seu carisma, terminaram por aceitar de qualquer forma a proposta que não entenderam bem do que se tratava.
O homem foi estratégico: antes do meio-dia, tinha conseguido visitar todos os moradores dos sobradinhos da vila, enquanto Dona Clarice estava fora, em mais uma de suas caminhadas diárias. Convenceu todos os vizinhos dela a deixarem com ele as chaves de suas casas, e dali partirem, deixando tudo para trás, para morar em uma casa de repouso, localizada no bairro vizinho, onde passariam a viver a partir daquele dia. Foi tudo muito rápido.
Tão rápido que, quando Dona Clarice retornou à vila, quase no finalzinho da tarde, nada viu senão os escombros dos outros sobradinhos, já reduzidos a cascalhos. Em pé, sobrara apenas o sobradinho dela, solitário em meio aos escombros dos seus pares.
Ao ver toda aquela destruição, Dona Clarice caiu sobre seus joelhos e começou a chorar, chorar, gritar, gritar, tamanha era sua tristeza, seu desespero. Correndo como podia, por entre os escombros, foi até seu sobradinho, abriu a porta e entrou.
Desde aquele dia, não foi mais vista por aquelas redondezas a fazer suas caminhadas diárias. Por várias vezes, o pessoal da construtora chegou a bater à porta do sobradinho dela, mas nada de ninguém vir atender. Lá dentro, o silêncio, antes tão raro por aquelas bandas, tornara-se ainda mais pronunciado. Era quase um grito.
Sem conseguir dar ao sobradinho de Dona Clarice o mesmo destino que fora dado aos demais, a construtora não conseguiu espaço suficiente para levar adiante seu projeto, que acabou inviabilizado, e então abandonou ali as ruínas do jeito que estavam desde o dia da demolição. Daquela pequena vila, antes conhecida como Vila das Saudades, sobrou apenas um amontoado de escombros, em meios aos quais, um único sobradinho ainda em pé parecia dizer:
– A gente não vive, a gente teima.
Tal como Dona Clarice, no passado, sempre respondia a todos que lhe perguntavam coisas do tipo:
– A senhora vai bem?
ou
– A senhora se lembra onde morava, Dona Clarice?
Pergunta que, dia desses, fez-lhe um rapaz que oferecia marmitas a um grupo de pessoas sem teto, nas redondezas da Praça da Sé.
Foi então que, ao invés de lhe dizer:
– A gente não vive, a gente teima.
Ela respondeu ao rapaz apenas com um:
– Saudades.
Dito mais pelo olhar do que pelos lábios.