Encontros e desencontros

Ao avistar-me ao longe,
sozinho, naquela calçada deserta,
iluminada apenas pela luz incerta
de uma noite enluarada,
mas parcialmente encoberta,
correu ao meu encontro,
para abraçar-me, desmanchando-se em prantos,
saudosa estava de meu calor, meus acalantos.
Há meses não nos víamos, não nos falávamos,
tão abatidos estávamos por um longo histórico de desencontros.
Brigas e que tais,
pelos motivos os mais banais.
Mas ali, como que por encanto,
finalmente nos vimos prontos para nos perdoarmos,
e, felizes, despedirmo-nos um do outro de vez — e ponto.

Tem coisa que só sai da gente por escrito

Todas as tardes, ela caminhava até a porta da sala e, de cara para a rua, punha-se a picotar as cartas que trazia em uma sacola plástica, dessas de supermercado. Dali daquela porta, ficava a lançar os pedacinhos das cartas sobre a calçada, até que, ao modo das folhas do outono, eles cobrissem todo o trecho em frente ao sobrado onde morava.

Não eram cartas quaisquer que Aurora picotava, eram cartas de amor, dezenas delas, acumuladas ao longo de toda uma vida. Cartas que carregavam desabafos, angústias, ansiedades, ódios e, também, muitos amores, estes não raramente ornamentados com corações desenhados com canetinha hidrocor vermelha, a destacar os diversos

“eu te amo”

ou mesmo os

“sinto sua falta”

e até os

“não sei viver sem você”

com que ela preenchia aquelas cartas.

Com canetinhas de outras cores, ela pintava as letras dos

“eu te odeio”

ou

“nunca mais quero te ver”

e os ainda mais definitivos

“suma da minha vida”.

Na verdade, nem sempre tão definitivos, pois muitos desses

“suma da minha vida”

foram depois seguidos de reconciliações, que, uma vez concretizadas, punham em marcha novos ciclos de

“eu te amo”

e

“sinto sua falta”

e

“não sei viver sem você”

sempre ornamentados com corações desenhados com canetinha hidrocor vermelha.

Aurora colecionava essas cartas desde a mais tenra adolescência, quando sua letra ainda era de

– Menininha.

como dizia sua mãe, ao revisar suas tarefas escolares, a fim de garantir que a filha fosse sempre a primeira da classe, missão que sua mãe conseguira bem cumprir apenas enquanto Aurora foi de fato uma

– Menininha.

Fase que terminou quando, já desinteressada dos estudos, Aurora escreveu sua primeira carta de amor ao menino, loiro, que à época tinha a mesma idade dela, e cuja família se mudara, dias antes, para o sobrado vizinho.

O sobrado estava até então vazio, pois sua antiga e única moradora, Dona Sônia, que ali residira por todos os seus últimos dias, sozinha, havia falecido de causas naturais, repentinamente, caindo ao chão como um passarinho que, de uma hora para a outra, vê-se sem asas em pleno voo.

Foi Dona Sônia que ensinara Aurora a escrever cartas de amor. Dizia-lhe sempre:

– Tem coisa que só sai da gente por escrito.

Ensinamento que guiou Aurora por todas as vezes em que se punha a escrever suas cartinhas, as quais, pouco depois de completar 80 anos, trazendo na pele da alma as muitas feridas de amores passados, desesperançada de um dia poder voltar a amar alguém e sozinha no mundo como Dona Sônia vivera antes de morrer, passou a picotar, jogando os pedacinhos, pequenos como confetes, por sobre a calçada, vez ou outra atingindo algum pedestre que por ali passava bem nesse momento.

Ninguém entendia a razão por que Aurora, todas as tardes, desde completar seus 80 anos, vinha cumprindo esse ritual de picotar as cartas de amor que tão zelosamente guardara ao longo dos anos, todas elas escritas de próprio punho e nunca enviadas aos seus destinatários.

(dos quais Aurora nunca recebeu carta nenhuma)

Certa vez, questionada por uma vizinha sobre o porquê daquele gesto, Aurora deu de ombros e respondeu simplesmente:

– Estavam a juntar traças dentro de casa.

E seguiu picotando as cartas e jogando à calçada os seus pedacinhos, tão pequenininhos que, ainda que fossem colados de volta, não garantiriam o retorno da carta à sua legibilidade de origem.

– Tem coisa que só sai da gente por escrito.

Ensinava-lhe Dona Sônia – uma lição que Aurora bem apreendeu.

Por outro lado, a vida lhe ensinara que outras coisas só saem da gente quando de fato as destruímos e jogamos fora, muitas vezes nos deixando em pedacinhos.

Hélio

À noite, gostava de subir no telhado de casa, onde, deitado de barriga para cima, de frente para o céu, ficava a observar as estrelas. Imaginava-se podendo tocá-las com as mãos e moldá-las, de maneira a recriar as constelações sob novos formatos.

Assim ficava por horas, até que sua mãe o chamasse para dormir. 

– Vem se deitar.

No dia seguinte, a família toda acordaria para ir trabalhar, bem cedo, quando os primeiros raios de sol ainda nem bem tinham irrompido no horizonte.

Trabalhavam em uma fábrica de armas, cada um alocado em uma parte da linha de produção: o pai na primeira montagem, o filho no polimento e a mãe ficava com a embalagem. Hélio, o filho, tinha dezessete anos e trabalhava naquela indústria desde os doze. Foi seu primeiro e, até então, único emprego. 

Não lhe agradava aquele trabalho, mas, filho de uma família pobre, seu salário era essencial para compor o mínimo necessário para sustentá-lo e, também, seu pai e sua mãe. Naquela região do país, não havia outra indústria a não ser aquela. Por pior que fosse, ainda era melhor que trabalhar na roça, pois pelo menos pagavam todos os direitos e o trabalho ia de vento em popa, dado o aumento no consumo de armas, que contrastava com a queda no consumo dos alimentos.

Ao final do expediente na fábrica, quando a noite ia caindo, Hélio seguia para casa junto com seu pai e sua mãe. Voltava cansado, mas ansioso para deitar-se sobre o telhado e, novamente, contemplar as estrelas.

Numa noite particularmente quente e estrelada, a voz de sua mãe a chamar-lhe:

– Vem se deitar

pois

– Já é tarde.

Como todas as noites se ouvia, então não se ouviu. Não que sua mãe nas as tivesse dito, mas quando o fez, Hélio já estava a quilômetros de distância dali, embarcado no ônibus que o levava para a cidade grande: São Paulo.

Saiu às escondidas de casa, levando uma mochila às costas apenas com as trocas de roupa suficientes para uma semana.

No final da madrugada, ao avistar as luzes da grande metrópole no horizonte, Hélio tentou moldá-las com as mãos como fazia com as estrelas que costumava observar no céu, do alto do telhado da casa de seus pais. 

Frustrado com a inutilidade de seu gesto, recolheu os braços e aguardou, apreensivo, o momento que o ônibus chegaria à rodoviária, algo que aconteceu no final da madrugada, quando o dia nem bem nascia. Uma forte neblina então cobria a cidade.

Hélio desceu do ônibus e, seguindo o enorme fluxo de gente que, àquela hora, descia de inúmeros outros ônibus, subiu uma longa escada rolante até o andar superior da rodoviária, todo ele repleto de ainda mais gente, alguns guichês e lanchonetes. Um tanto atordoado com todo aquele movimento e sem saber ao certo para onde ir, ficou por um bom tempo a contemplar o ir e vir de pessoas, até que

– Já é tarde.

ouviu uma mulher a dirigir-lhe essas palavras, da mesma maneira que sua mãe fazia quando ele, noite alta, ainda insistia em ficar deitado sobre o telhado a contemplar as estrelas lá no firmamento.

– Já é tarde, Hélio.

Sua mãe a dizer-lhe.

E quando Hélio abriu os olhos, viu-a diante dele, vestida com o uniforme de trabalho.

– Hora de levantar.

A chamá-lo para mais um dia de trabalho na fábrica de armas.

Laura

Sentada à mesa da cozinha, a mãe aguardava ansiosa pela chegada da filha que há muito não via. Dois anos se contavam desde quando a filha a visitara pela última vez.  Laura, a mãe, lembrava-se bem daquele dia: brigaram muito, xingaram-se, um desentendimento besta, coisas de mãe e filha, mágoas que passam com o tempo

(ela pensou à época)

e logo dão lugar à saudade.

Assim de fato ocorreu, mas demorou dois anos para que ambas pudessem novamente voltar a conversar, dois anos para que uma ouvisse da outra, do outro lado da linha telefônica:

– Está tudo bem, mãe?

e sua mãe responder:

– Tudo bem, sim, minha filha.

A hora ia passando, passando, e a ansiedade de Laura só crescia. A filha disse que chegaria a tempo para o almoço, mas nada de aparecer até então. Ao olhar o relógio na parede, viu-o marcar duas da tarde. O combinado era que a filha chegaria, no máximo, por volta do meio dia e meia.

(teria acontecido algo?)

Laura estava preocupada.

Um pardalzinho entrou na casa pela janela da cozinha e passou voando por sobre a cabeça de Laura, bem rente aos seus cabelos. No susto, ela levantou-se e saiu correndo apressada pela casa. Pelo caminho, cruzou com um grande espelho que servia de decoração a uma das paredes da sala, olhou para a imagem que o espelho refletia e não se reconheceu.

(quem seria aquela mulher ali refletida?)

A imagem que o espelho refletia era de uma mulher muito mais velha, com a pele do rosto demasiadamente enrugada, as bochechas cavadas e os olhos fundos, mal vestida, suja até. Algo estranho para Laura, uma mulher que costumava ser muito vaidosa e cujo medo de envelhecer era maior que o céu. Orgulhava-se de ouvir de quem a encontrava:

– A senhora não aparenta a idade que tem.

e quando caminhava junto a sua filha

– Parecem irmãs.

Desde a briga com a filha, sem se dar conta, Laura deixara de se cuidar: os cremes que sempre passava no rosto antes de dormir foram esquecidos numa gaveta do armário do banheiro; os cabelos não foram mais pintados, tornando-se brancos como cal; vestia as mesmas peças de roupa por dias seguidos, às vezes até semanas; alimentava-se de maneira nada saudável. Mesmo os banhos passaram a ser menos frequentes. Como, desde então, ela pouco ou quase nada saíra de casa, quase ninguém a viu. Dizem mesmo que uma velha como ela é quase invisível.  

Somente após alguns minutos fitando, completamente inerte, aquela imagem refletida no espelho, foi que Laura finalmente aceitou que era ela que estava ali refletida, e não aquela mulher que, há pouco mais de dois anos, ao cruzar com as pessoas, ouvia:

– A senhora está bastante conservada.

e quando caminhava junto a sua filha…

Bem, já há um bom tempo que não caminhava com sua filha, que, aliás, estava atrasada demais e não dava notícias de seu paradeiro. Laura estava cansada de esperar. Sentiu-se desprezada.

Foi até a cozinha e jogou no lixo todo o almoço que havia preparado: o arroz, o feijão, a carne… tudo acabou dentro do cesto de lixo, junto com a sobremesa que ela preparara: um pudim de leite sem furinhos, o preferido da filha.

Depois de tomar um banho, trocou de roupa e saiu para ir ao salão de beleza. Foi caminhando pela rua, meio cabisbaixa, e logo chegou ao salão, onde a atendente, a mesma que sempre a atendera, recebeu-a com o sorriso que costumava esboçar quando Laura ainda era uma freguesa fiel.

(o mesmo sorriso para todas as clientes)

Foi então que a atendente disse, surpresa:

– Meu Deus!

E então perguntou, já um pouco menos exaltada:

– Está tudo bem, mãe?

no que Laura de pronto lhe respondeu:

– Tudo bem, sim, minha filha.

(em tom sereno)

Dito isso, foi sentar-se num dos muitos lugares vagos do salão de espera vazio, todo ele pintado de vermelho, a imitar o formato de um coração.

Saudades

A pequena vila, com seus sobradinhos espremidos um ao lado do outro, era uma ilha de tranquilidade em meio ao agito trazido para aquele bairro pelos muitos espigões que, no decorrer dos últimos anos, foram erguidos ao redor, fazendo aumentar a população local de pessoas, de carros, o trânsito, o barulho, tornando o silêncio algo absolutamente raro, encontrado apenas por entre os cômodos daqueles sobradinhos, habitados, todos eles, por idosos solitários, cujas vidas eram somente memórias.

(e algumas saudades)

Ao contrário de seus vizinhos, que passavam a maior parte do tempo ora dentro de suas casas, ora sentados nos bancos à frente delas, a papear uns com os outros, a reclamar das muitas dores da velhice e a lembrar do passado, muito raramente saindo dos limites da vila, Dona Clarice gostava de sair de casa e fazer suas caminhadas diárias pelas redondezas.

Aos 70 anos, viúva e sem filhos, ela ainda encontrava forças para cumprir diariamente essa rotina: gostava de registrar com os olhos o mundo que se formava para além do portão da vila onde sempre vivera, desde menininha.

Curvada como uma gárgula, ela caminhava pé ante pé, bem devagar, como se a carregar todo o peso do mundo sobre aqueles seus ombrinhos estreitos. Ia à padaria, ao açougue, à feira, ou andava sem rumo certo, pelo simples prazer de sentir-se ativa, e depois voltava para sua casa, que, tal como as demais ali na vila, era um sobradinho estreito, com a fachada toda recoberta de coloridas pastilhas de vidro, algo típico das primeiras residências que, há muitos anos, ali se estabeleceram e das quais então restavam apenas os tais sobradinhos. Todo o entorno da vizinhança era formado de prédios residenciais altos, que lançavam suas sombras por sobre a vila, restringindo o horário de sol de seus habitantes a apenas poucas horas do dia.

– A gente não vive, a gente teima.

Dona Clarice respondia àqueles que lhe perguntavam:

– Como vai a senhora?

ou

– Melhorou das dores no estômago, Dona Clarice?

como, outro dia, o moço da farmácia, o mesmo que sempre a atendia, quis saber, enquanto ela repunha o estoque semanal dos remédios que serviam para aliviar suas muitas aflições.

A resposta dela era sempre a mesma:

– A gente não vive, a gente teima.

Aguerrida, Dona Clarice liderou por muitos anos a resistência dos moradores da vila contra o assédio de grandes construtoras que sempre viram aquele espaço como ideal para a construção de mais um grande conjunto habitacional, moderno e com muitas torres. Boa parte de sua velhice, ela passara indo ao encontro de seus vizinhos, casa a casa, a fim de, entre um café ou um chá com bolo, convencê-los a não ceder àquele assédio.

Seguiu vitoriosa até o dia em que, logo depois de sair pela manhã para mais uma de suas caminhadas, seus vizinhos receberam a visita do representante de uma dessas grandes construtoras, um jovem homem, cabelo e barba cortados bem curtos, vestindo calça e camisa social, munido de uma pasta cheia de papéis, que chegou ali na vila, sem avisar, e foi de casa em casa, oferecendo aos velhinhos e velhinhas propostas de troca dos sobradinhos onde viviam sozinhos por…

Uns entenderam que a proposta seria de compra dos sobradinhos, com pagamento em dinheiro; outros entenderam que a proposta era pela troca dos seus sobradinhos por um apartamento no prédio que a construtora queria ali construir; houve aqueles, ainda, para os quais a proposta do jovem homem foi simplesmente incompreensível, mas que mesmo assim, seduzidos por seu carisma, terminaram por aceitar de qualquer forma a proposta que não entenderam bem do que se tratava.

O homem foi estratégico: antes do meio-dia, tinha conseguido visitar todos os moradores dos sobradinhos da vila, enquanto Dona Clarice estava fora, em mais uma de suas caminhadas diárias. Convenceu todos os vizinhos dela a deixarem com ele as chaves de suas casas, e dali partirem, deixando tudo para trás, para morar em uma casa de repouso, localizada no bairro vizinho, onde passariam a viver a partir daquele dia. Foi tudo muito rápido.

Tão rápido que, quando Dona Clarice retornou à vila, quase no finalzinho da tarde, nada viu senão os escombros dos outros sobradinhos, já reduzidos a cascalhos. Em pé, sobrara apenas o sobradinho dela, solitário em meio aos escombros dos seus pares.

Ao ver toda aquela destruição, Dona Clarice caiu sobre seus joelhos e começou a chorar, chorar, gritar, gritar, tamanha era sua tristeza, seu desespero. Correndo como podia, por entre os escombros, foi até seu sobradinho, abriu a porta e entrou.

Desde aquele dia, não foi mais vista por aquelas redondezas a fazer suas caminhadas diárias. Por várias vezes, o pessoal da construtora chegou a bater à porta do sobradinho dela, mas nada de ninguém vir atender. Lá dentro, o silêncio, antes tão raro por aquelas bandas, tornara-se ainda mais pronunciado. Era quase um grito.

Sem conseguir dar ao sobradinho de Dona Clarice o mesmo destino que fora dado aos demais, a construtora não conseguiu espaço suficiente para levar adiante seu projeto, que acabou inviabilizado, e então abandonou ali as ruínas do jeito que estavam desde o dia da demolição. Daquela pequena vila, antes conhecida como Vila das Saudades, sobrou apenas um amontoado de escombros, em meios aos quais, um único sobradinho ainda em pé parecia dizer:

– A gente não vive, a gente teima.

Tal como Dona Clarice, no passado, sempre respondia a todos que lhe perguntavam coisas do tipo:

– A senhora vai bem?

ou

– A senhora se lembra onde morava, Dona Clarice?

Pergunta que, dia desses, fez-lhe um rapaz que oferecia marmitas a um grupo de pessoas sem teto, nas redondezas da Praça da Sé.

Foi então que, ao invés de lhe dizer:

– A gente não vive, a gente teima.

Ela respondeu ao rapaz apenas com um:

– Saudades.

Dito mais pelo olhar do que pelos lábios.