Agradava-lhe caminhar pela manhã e sentir a luz do sol, os cheiros, ouvir os sons ainda frescos de um dia ainda jovem. Isso de certa forma o fazia relembrar do tempo em que ele mesmo era jovem.
Ao caminhar, seu passos firmes faziam vibrar todo o seu corpo, alcançando certa harmonia com os batimentos de seu coração. Raimundo sentia-se vivo depois de passar tantos anos
(já não se lembrava mais quantos)
preso em uma sela, imunda, suja, escura e superlotada, onde as vidas, apesar de numerosas, tinham quase nada de valor.
Ele fora parar ali depois de ser detido enquanto cantava para alguns transeuntes, em uma das esquinas do Viaduto do Chá. Acusado de “artista”, sem direito a se defender ante as provas evidentes a respeito de seu crime, naquele mesmo dia foi enjaulado e, desde então, passou a viver naquela prisão, só vindo a ver-se enfim livre muitos anos
(já não se lembrava mais quantos)
depois, quando já não mais conseguia cantar: deixara de ser aquele artista que antes encantava com sua música as pessoas simples com quem cruzava pelas ruas do centro da cidade. Só lhe restava o estado miserável de quem toda a humanidade fora extraída: não era mais um homem, apenas um homem a mais.
No finalzinho da tarde, depois de passar o dia a perambular sem rumo pela cidade, catando comida entre restos que encontrava nas lixeiras, Raimundo parava em um bar qualquer. Sentava-se sozinho, ao balcão ou à mesa, e pedia uma caninha. Para ele, beber era como uma reza.
Depois da primeira, pedia outra, e então mais outra, e outra, até que a embriaguez lhe jogasse ao chão, e depois disso ele acabava sendo expulso do bar, atirado à calçada. Com sorte, isso ocorria sem que apanhasse, fosse xingado. Raimundo não era propriamente um homem de sorte.
Na manhã seguinte, tão logo acordava, punha-se novamente a caminhar, caminhar, caminhar, sem olhar para trás.
Certa manhã, por volta das 11 horas, enquanto ainda caminhava, cruzou com uma sombra pelo caminho. Ela se dirigiu a ele e lhe disse algo que Raimundo não entendeu bem. Só compreendera algumas poucas palavras do que ela lhe dissera e, dessas poucas, esqueceu-se de todas, de modo que era como se a sombra nada lhe tivesse dito. Mas ficou em sua lembrança o sorriso da sombra: a única parte dela que podia de fato ser vista, já que todo o resto era um breu só. A sombra tinha um sorriso maroto
(traiçoeiro talvez)
que convidava Raimundo a, com ela, também sorrir, o que Raimundo não fez por falta de prática.
Desde que fora preso, e mesmo depois de solto, Raimundo adotara uma feição grave, demasiado séria, pouco afeita a distrações, uma vez que estas passaram a ser sinônimo de aberturas para agressões de todo tipo. O rosto carrancudo era-lhe, portanto, uma forma de defesa.
– Não se pode baixar a guarda aqui.
Alertou-lhe, certa vez, um colega da prisão, quando percebeu que um grupo se aproximava dele a fim de espancá-lo. Daquela vez escapou. De outras tantas, não.
Outro dia a sombra apareceu diante dele mais uma vez, um pouco mais tarde que quando da primeira vez. Tinha no rosto aquele mesmo sorriso maroto
(traiçoeiro talvez)
a convidar Raimundo para também sorrir. Cansado e sedento por causa da caminhada, ele acabou seduzido por aquele sorriso, pois viu nele um copo d’água fresca a que lhe era oferecido. Não resistiu e bebeu.
Na manhã seguinte, não caminhou.