Recordo-me exatamente do texto do cartão que, dentro de um envelope, colado ao papel crepom que embalava o presente, entreguei a você nesta mesma data há exatamente um ano, mas não consigo me lembrar do presente em si, Talvez por que este tenha sido um simples pretexto para que as palavras escritas naquele cartão (uma carta, para ser mais preciso) chegassem até você, Tínhamos acabado de terminar nossa relação – por iniciativa sua –, e eu ainda estava naquilo que as pessoas chamam de período de luto, Nunca gostei de adotar essa palavra para esse tipo de situação – para mim, luto diz respeito ao sentimento de pesar pela morte de alguém e você não tinha morrido: tínhamos apenas nos separado, Você seguiu seus caminhos; eu segui os meus, Nossas histórias, que antes eram comuns em muitos pontos, como que escritas por uma mesma mão, em uma mesma folha de papel, passaram a seguir enredos absolutamente separados e independentes, Num instante, você era parte de minha vida, e eu da sua – dormíamos e acordávamos juntos, saíamos para jantar, ir ao cinema, ao teatro, freqüentávamos nossos amigos… –, no instante seguinte, seríamos um para o outro apenas espectros de um passado, vislumbrado apenas pelas nossas memórias, à maneira da luz da lanterna de um guarda noturno que vigia uma estação de trem durante a madrugada, encontrando pelo chão restos da vida que transcorrera ali durante o dia, Desde então, e até hoje, nunca mais soube de você – evitei de todas as formas frequentar os mesmos lugares a que íamos juntos: tinha pânico só de me imaginar em qualquer um deles sem você, Assim agi durante esse último ano todo, Você pode pensar que foi loucura de minha parte, no que estaria coberto de razão, Demorei a me convencer de que estava mesmo cometendo uma loucura vivendo dessa forma, Eu estava me privando daquilo que para mim é uma das coisas mais valiosas da vida: minha liberdade, Sim, minha liberdade de poder ir a qualquer lugar – qualquer mesmo –, quando bem entendesse, a meu livre e exclusivo alvitre, Essa liberdade viu-se surrupiada de mim por todo esse período, Só hoje, enquanto fazia uma limpeza de gavetas lá em casa, que decidi me livrar da cópia xerográfica daquela carta, rasgando-a em pedacinhos, não sem antes fazer uma última leitura de seu teor, o qual eu quase trazia de cor, tantas vezes eu o lera, Acho que foi a primeira vez que li aquelas palavras sem que meus olhos nem sequer marejassem, Quando escrevi a carta – e levei dois dias (um sábado e um domingo) para escrevê-la –, chorei sem parar: cada palavra parecia extrair de mim emoções tão profundas quanto dolorosas, A pior de todas era a solidão do abandono, da rejeição, por pouco, muito pouco, eu diria, não entrei em depressão (ou entrei?), Lembro-me que dois meses depois daquele dia, eu estava numa mesa de bar, rodeado de amigos, e simplesmente não emitia uma palavra, estava ali, mas não estava, estava em corpo, mas não estava em alma, Olhava para todos ao meu redor falando, falando, e eu nada ouvia, imerso em uma melancolia de nevoeiro sobre um lago no inverno, absorto em meus pensamentos, que por sua vez estavam a repetir, em um frenético e incontrolável flashback, aquele momento em que me convidara para um café, apenas como pretexto, como fui saber depois, para dizer-me que não me amava mais e que nossa história pararia ali – era uma sexta-feira, Naquela noite não dormi, por mais que me dopasse, o nervosismo parecia anular o efeito do sonífero, Passei a noite toda sentado no sofá da sala, olhando para o nada, chorando e rememorando aquele momento, Comecei a escrever a carta quando o sábado nem bem tinha amanhecido, só parava para ir ao banheiro e comer – nada mais, E assim segui pela noite de sábado afora até a madrugada do domingo, quando enfim parei e consegui adormecer, No domingo à tarde, quando despertei, parecia que tudo aquilo tinha sido um pesadelo, mas não tinha, E fui dar-me conta disso quando vi aquelas dez folhas da carta manuscrita ali ao meu lado na cama, Eram a prova física, material, da dor emocional que eu vivera na real, não em sonho, Minha cabeça doía como se tivesse sido batida repetidamente e com força sobre uma eira, Acordei naquele dia e, além de “reaprender a andar” – como faço todos os dias dado que não sou uma pessoa matutina –, tive que aceitar que tudo aquilo tinha de fato ocorrido, e que pela frente eu teria então que me deparar com um colossal exercício de superação: eu teria que reaprender a viver, ser feliz, amar…, E para todo esse reaprendizado levei um ano, (As borboletas dentro da lata de ervilha Jurema estão mortas.), Não saberia mensurar quanto cresci emocionalmente com esse episódio – bem verdade que nem saberia dizer se isso foi ou é possível, Quero crer que nem tudo foram perdas, que eu cresci, amadureci, mas isso é apenas uma suposição – otimista, Foi um ano em que minha vida transcorreu como a melancolia solitária de um quadro de Edward Hopper, Felizmente, hoje tudo isso é passado, embora seja um passado que ficará por um tempo (a vida toda?) incrustado em meu ser como um nicho, fechado a partir do momento em que rasgara a cópia daquela carta, E cá estou, diante de você, Não, não vim aqui pedir para voltarmos, ou coisa do tipo – nada disso, Não sou louco a esse ponto, Vim apenas para pedir-lhe a via original da carta, caso ainda a tenha, Ela guarda manchas das minhas lágrimas, coisa que a cópia não tinha – pelo menos não nitidamente, Gostaria de emoldurá-la em um quadro e pendurá-la em um espaço que tenho ainda vazio na parede da parede do quarto, Encontrei uma moldura linda outro dia naquele mercado de pulgas ali da praça Benedito Calixto, e logo pensei que essa carta seria ideal para preenchê-la, à maneira de um quadro desses de naturezas mortas.

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