Era-lhe inevitável a sensação de vingança quando, ali no meio daqueles anúncios das páginas funerárias do jornal, via anunciada a morte de algum desafeto do passado.
– Aqui se faz, aqui se paga.
Regozijava-se João todas as vezes que isso acontecia, sempre esboçando um sorriso no canto da boca.
Ao contrário do que fazia com o restante do jornal, sobre cujas páginas apenas passava distraidamente os olhos, quando a leitura recaia sobre as páginas funerárias não lhe bastava simplesmente ler, era necessário focar a leitura com a ponta do dedo indicador, que ficava a percorrer aqueles anúncios como um revolver que mira suas vítimas.
Terminada a leitura, João recortava aqueles anúncios e arquivava numa pasta, colocando cada anúncio em um plástico específico. Era uma pasta bastante volumosa e pesada, que ele guardava bem escondida, por debaixo de umas caixas que ficavam em um quartinho nos fundos do apartamento, onde antes havia um banheiro de empregada.
João tinha 80 anos e vivia sozinho em um apartamento bastante amplo dos anos 50, no meio da Avenida São Luiz, com vista para boa parte do centro de São Paulo, suas riquezas e suas misérias.
Funcionário público aposentado, João nunca se casara. Era então o único sobrevivente de uma pequena família: pai, mãe e dois filhos, um deles, o mais novo, o próprio João.
Além de ler o jornal, sua rotina diária limitava-se a ficar horas e horas a observar os prédios à frente de seu apartamento e a breves caminhadas até o mercado e a farmácia, a fim de buscar os mantimentos e os remédios que sua aposentadoria ainda lhe permitia adquirir. Ao longo dos anos, a conta da farmácia foi ficando maior, enquanto a conta do mercado foi diminuindo. Ainda assim, comparado aos seus contemporâneos
(aqueles que ainda sobreviviam)
João era um homem que podia se considerar um privilegiado portador de boa saúde.
Dia desses, enquanto lia o jornal e, como de costume, procurava por nomes conhecidos por entre aqueles cuja morte os anúncios funerários faziam a todos saber, João deparou-se, surpreso, com seu próprio nome, escrito logo abaixo de uma cruz. Ao lado do nome, constava uma data de nascimento igual à dele, seguida de uma data de falecimento a indicar o dia de ontem como seu marco.
– Há de ser coincidência.
Pensou, enquanto seus olhos ainda miravam o anúncio, com as pupilas dilatadas pela curiosidade que fato tão inesperado lhes causara.
Intrigado, João recortou o anúncio e, quebrando um pouco sua rotina de apenas sair para ir ao mercado e à farmácia, tomou um táxi e foi até o endereço onde se daria o velório daquele seu homônimo cuja morte o jornal anunciara.
O local do velório ficava em uma capela de bairro, pequena, que estava completamente vazia quando João chegou, muito embora aquele fosse o horário anunciado do velório. Não havia caixão, nem defunto, nem flores, nada nem ninguém.
Ao redor de João, na nave da igreja, havia apenas estátuas de anjo a olharem para baixo, entediados. O silêncio ali dentro era tamanho que João podia ouvir o pulsar de seu sangue em suas têmporas, dilatadas devido ao calor intenso do dia.
Sentou-se em um dos bancos da capelinha e ficou a admirar a decoração interna, cuja exuberância e riqueza de detalhes contrastava com a simplicidade da parte externa.
João ficou ali até a fome apertar e, quando isso ocorreu, levantou-se e foi embora, tomando o caminho de seu apartamento, ainda intrigado com tudo que lhe ocorrera naquela manhã.
Quando o táxi que havia tomado chegou à Avenida São Luiz, João não soube indicar ao taxista onde deveria parar: não se lembrava qual daqueles prédios, colados um ao outro, era o seu.
Pediu ao taxista:
– Pode parar aqui.
Indicando um local qualquer quase na esquina com a Rua da Consolação. Ali ele desceu do táxi e seguiu caminhando pela calçada da Avenida São Luiz, como que sem destino, pois ainda não conseguia se lembrar onde morava.
Diante do Edifício Itália, João começou a sentir uma angústia crescer dentro de seu peito, como que a querer devorá-lo vivo. Olhava ao redor, na tentativa vã de se recordar onde morava: estava perdido.
Foi quando um senhor aproximou-se dele e, percebendo que João parecia precisar de ajuda, ofereceu-se
– O senhor precisa de ajuda?
para ajudá-lo.
Ao voltar os olhos para o senhor que lhe oferecia ajuda, João reconheceu no homem um dos seus muitos desafetos do passado: era Heitor quem estava ali diante dele, o mesmo que, há vinte anos, traíra a sua amizade ao revelar, aos pais de João, que ele mantinha relações com michês que, naquela época, faziam ponto na Avenida São Luiz, logo em frente ao prédio onde João morava, fofoca que acabou resultando na quebra de relação entre ele e seus pais.
João era capaz de se lembrar disso com detalhes, embora não estivesse conseguindo se recordar do prédio onde morava.
Depositou a dor dessa lembrança em sua mão em punho, com a qual desferiu um potente soco no rosto de Heitor, que, atordoado, caiu ao chão, batendo a cabeça na quina da calçada: o óbito foi imediato.
– Aqui se faz, aqui se paga.
Pensou João, com os olhos injetados de sangue, logo depois de ver o desafeto cair morto ao chão.
Foi então que dois policiais surgiram do nada e agarraram João pelos braços, algemando suas mãos e levando-o ao camburão.
Dali, ele foi levado para a delegacia mais próxima. Na sela onde foi lançado, João reconheceu os móveis e objetos de seu apartamento: estava em casa.