Posso ter mais lembranças de você?

Mulher de muitas posses, viúva, sem filhos, Catarina vivia em sua mansão na companhia de sua cadela Nina, uma lulu da pomerânia de longos pelos na cor caramelo, e de sua criadagem: faxineira, cozinheira, motorista e uma cuidadora de idosos, para os quais Catarina nunca dirigia diretamente a palavra – toda a comunicação dava-se exclusivamente por meio de pequenos bilhetes de papel quadriculados, semelhantes a post-its, que Catarina deixava pela casa, com o nome do empregado a quem se dirigia na parte de cima, e na parte de baixo, o pedido escrito em francês.

Como nenhum dos empregados da casa era versado nesse idioma, mas apenas no português, não entendiam nada do que a patroa lhes pedia por meio daqueles bilhetes.

A comunicação oral tinha cessado por completo desde o falecimento de Ulisses, marido de Catarina, há dez anos. Uma das sequelas do trauma causado pela morte do marido foi a mudez de Catarina.

A casa funcionava meio que em modo automático, na base da experiência acumulada daqueles empregados e empregadas domésticos, que ali serviam desde muito antes de Seu Ulisses, como o chamavam, vir a falecer, repentinamente, de um infarto.

Dona Catarina, como a chamavam, de fato ainda não havia superado o luto pela perda de seu marido. Na cama, antes ocupada pelo casal, Catarina continua a dormir como se Ulisses ainda a acompanhasse: deitada a um canto, o mesmo que sempre ocupou, ela deixa vazio todo o resto da enorme cama de casal, como que a velar pelo corpo do falecido marido que, quando vivo, preenchia com seu corpo todo aquele espaço.

Espalhados por todas as paredes do quarto, apoiados ao chão ou presos às paredes, encontram-se vários porta-retratos com fotos de Ulisses e Catarina, sempre juntos, em vários momentos da vida. Os porta-retratos circundam todo o quarto, formando um halo em torno da cama do casal.

Todos os dias, ao acordar e antes de dormir, Catarina caminha por todo o quarto, passando em revista cada um daqueles porta-retratos, com um olhar triste e ainda inconformado. Em sua mente, não consegue mais distinguir a cronologia das fotos: para ela, era como se todas elas tivessem sido tiradas em um único dia, num mesmo local, muito embora naquelas fotografias estivessem documentados pelo menos uns vinte anos de história do casal.

(se tudo passa, por que você ficou?)

Certa noite, ao deitar-se para dormir, Catarina notou que Nina se aproximou e levantou seu pequeno corpo, num movimento que deixava claro que queria subir na cama para deitar-se com ela.

Embora muito afetuosa com a cachorra, Catarina nunca a deixava subir na cama, pois considerava aquele local sagrado como um santuário. A hipótese de Nina dormir com ela na cama, portanto, nem se cogitava.

Daquela vez, porém, vendo os olhos de Nina cheios daquela carência afetuosa que só os cães sabem demonstrar, Catarina concedeu que ela subisse na cama e ali dormisse junto dela. Sobre a cama, Nina dormiu sem ocupar o lugar que pertencia a Ulisses: dormiu colada ao corpo de Catarina.

Na manhã seguinte, quando os primeiros raios de sol começaram a entrar por entre as frestas da janela, como areia que escorre por entre os dedos, Catarina foi acordada por uma série de lambidas em seu rosto, o que fez com que ela sorrisse como não sorria desde a partida de Ulisses.

Mais tarde, para surpresa dos empregados da casa, que a tudo assistiam incrédulos, Catarina corria pelo jardim da mansão a brincar com Nina.

Quando retornou para dentro de casa, Catarina cumprimentou a faxineira:

– Bom dia, Maria.

o motorista:

– Bom dia, João.

a cozinheira:

– Como vai, Teresa?

e por fim sua cuidadora:

– Olá, Helena.

Com a mesma voz feminina e doce que há anos não se ouvia.

Daquele dia em diante, os bilhetinhos em francês não foram mais vistos pela casa. Catarina se dirigia a todos em conversas amigáveis e, quando pedia algo, sempre o fazia de forma muito educada e cortês, abrindo e fechando o pedido com um

– Por favor

ou um

– Por gentileza

e após a resposta da faxineira, da cozinheira, do motorista ou da cuidadora de idosos, invariavelmente ouvia-se de Catarina um

– Muito obrigada.

A João, o motorista, certo dia Catarina pediu que fosse à floricultura e trouxesse muitas flores – ela queria encher a casa de cores e perfumes, e substituir a tristeza que impregnava todos aqueles cantos, desde a morte de Ulisses, por um clima alegre e festivo.

À Maria, a faxineira, Catarina pediu que retirasse do quarto todos os porta-retratos com as fotos dela junto de Ulisses. Catarina queria aquelas paredes totalmente brancas, sem nada a ornamentá-las.

Quando a noite caiu, ao final daquele dia, as paredes do quarto já não traziam mais nenhum ornamento: todos os porta-retratos tinham sido removidos para o sótão da mansão, longe da vista de todos.

Ao ir se deitar para dormir, Catarina novamente recebeu Nina para fazer-lhe companhia, desta vez num quarto todo branco como uma nuvem

(que, como tudo, passa)

E foi então que Catarina pôde finalmente

(passou)

dormir em paz.

Na escuridão de sua voz

Sentavam-se à mesa para jantar sempre no mesmo horário, por volta das sete da noite. Como de hábito, ele a acomodava sentada na cadeira, no lado oposto ao dele, na pequena mesa redonda, e servia, ele mesmo, o jantar para os dois.

Invariavelmente, era servido algo muito leve, frugal: uma sopa e alguns pães, para as noites mais frias; legumes cozidos e alguma carne grelhada, para aquelas mais quentes. Para acompanhar a comida, água natural.

Enquanto comia, Pedro ia contando de seu dia a Helena, que a tudo ouvia sem dizer uma palavra.

O jantar todo não demorava mais que uns quarenta minutos e, uma vez finalizado, Pedro retirava a mesa, levando pratos, talheres e tigelas para a cozinha, onde punha-os sobre a pia e, em dez minutos, no máximo, tinha-os todos lavados e secos, prontos para o uso novamente.

Pedro então retornava à mesa do jantar, tomava Helena em seus braços

(como na nossa lua de mel, lembra-se?)

e a levava para o sofá da sala, onde, diante da televisão ligada em alguma novela, noticiário ou mesmo algum filme, ficavam até o sono chegar. E quando este vinha, Pedro desligava a televisão e dormia ali mesmo no sofá, na companhia de Helena.

Na escuridão de sua voz, as noites sempre vinham contar a Pedro, sob a forma de sonhos e pesadelos, as mais variadas histórias. Numa dessas, Pedro e Helena estavam diante do altar, cercados de padrinhos e madrinhas, elegantemente vestidos para aquela ocasião. À sua frente, um padre lhes indagava:

– Pedro, aceita Helena como sua esposa?

No que Pedro, em sonho, respondeu:

– Sim.

Em seguida, o padre perguntou a Helena:

– Aceita Pedro como seu esposo?

E daí seguiu-se um enorme silêncio, que só foi quebrado pelo barulho de alguém batendo à porta da sala.

Pedro acordou e, ainda meio zonzo de sono e sentindo a boca amarga, levantou-se, foi até a porta e a abriu.

Do lado de fora, um entregador trazia nas mãos uma grande caixa de papelão. Pedro assinou o recibo de entrega e, após despedir-se do entregador e lhe agradecer, voltou para dentro de casa.

Aproveitando que Helena ainda dormia sobre o sofá, dirigiu-se para o quarto, onde, ansioso e com um sorriso no rosto, abriu a caixa.

Pedro veio às lágrimas de alegria quando, dali de dentro daquela grande caixa de papelão, viu surgir Rita, sua mais nova esposa inflável, novinha em folha.