Ontem, por volta do meio-dia e meia, uma velha senhora veio sentar-se à mesa, ao lado daquela que eu ocupava no restaurantezinho de bairro, muito simples, para onde eu sempre ia para almoçar. Nunca a tinha visto antes.

Havia percebido sua chegada pelo cheiro de talco de bebê que a acompanhou, a denunciar, pelo olfato, o quanto infância e velhice guardam em comum.

Enquanto esperava pelo meu prato, pedido já havia alguns minutos, distraia-me a olhá-la com afeto: lembrava-me minha falecida avó.

Imaginei-me chegando a casa dela e deparando-me, no quarto, com uma coleção de bonecas de plástico, amontoadas sobre o guarda-roupa, todas elas adquiridas em jogos de parques de diversão. Era assim o quarto de minha avó.

Como numa arquibancada, as bonecas ficavam a olhar, lá de cima, todo o movimento do cômodo, por trás do celofane colorido que as envolvia, para protegê-las da poeira. Tinham sorrisos estranhos, que mudavam a depender do olhar de quem as observava.

– Quero esquecer o amanhã.

Minha avó dizia, a querer justificar a manutenção de todas aquelas bonecas sobre o guarda-roupa.

– Tenho memória de pirulito.

Finalizava, sempre deixando quem quer que estivesse a ouvi-la demasiado atordoado com a linha de raciocínio ali exposta.

A garçonete veio servir meu prato, e só então se deu conta de que a senhora na mesa ao lado ainda nem fizera seu pedido.

Perguntou-lhe, então:

– O que vai ser hoje?

No que a senhora que cheirava a talco respondeu:

– O mesmo que ele.

Apontando para meu prato com o dedo indicador de sua mão direita, toda ela rechonchudinha a ponto de fazer os muitos anéis que portava parecerem encravados na carne dos dedos.

Depois que a garçonete anotou o pedido dela e o levou à cozinha para ser preparado, aquela senhora ficou a me observar, ora com o olhar sobre mim, ora sobre meu prato, a ponto de forçar-me a lhe perguntar:

– A senhora está servida?

Ao que ela, de súbito, respondeu:

– Obrigada. Pedi uma salada para mim.

Respondi, então:

– Ah, ok.

Confuso, pois, acabara de vê-la pedindo à garçonete o mesmo prato que eu comia: um picadinho.

Justamente o prato que, poucos minutos depois, foi-lhe servido pela garçonete.

Intrigado, tomei coragem e perguntei-lha:

– A senhora não havia pedido uma salada?

E ela, espantada, respondeu-me perguntando:

– Foi?

E completou, decidida:

– Foi não. Pedi mesmo um picadinho, igual ao seu.

E lançando sobre mim um olhar parecido com os das bonecas que minha falecida avó mantinha sobre o guarda-roupa dela, enquanto viva, completou:

– Mas vai saber, né? Sou muito esquecida.

E por fim justificou, em meio a um sorriso afetuoso:

– Tenho memória de pirulito.

Um comentário sobre “Memória de pirulito

  1. A solidão, sem dúvida, encontra níveis diferentes na velhice.
    Por isso devemos enxergar além da imagem que envelhece.

    Não pude deixar de notar a a sua completa falta de empatia.
    O contato só partiu na preocupação de confronta-la, comportamento este arisco que nós homossexuais adquirimos diante de anos de reprovação social.

    Mais 3 minutos de prosa, poderia fazer um bem enorme a aquela senhora.

    Adorei a história das bonecas, ahahahah
    Demais!!

    Gostaria de ter ouvido um pouco mais a história daquela velha senhora, claro, se a memória de pirulito permitisse.

    Ass. Mago.

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