No quintal, na parte detrás da casa, havia um pé de manga

(ou uma mangueira como dizem outros)

alta e frondosa, que todos os anos presenteava a família

(e os pássaros)

com suas frutas: enormes e pesadas mangas amarelas recheadas de sabor.

Era para o alto daquela árvore que Fernando subia sempre que precisava de um refúgio da sua sufocante vida adolescente, como filho de uma família classe média baixa do interior paulista.

Dali do alto da árvore, seu olhar alcançava os limites da pequena cidade

(que pareciam ainda menores dali de cima)

e seguia para muito além, adentrando as áreas rurais, com seus sítios e fazendas plenos de vegetação verdejante a maior parte do ano, e amarelada na parte restante.

Naquele tempo, o jovem Fernando já sabia que, embora alto, o topo daquela árvore estava longe de ser o ponto mais alto do mundo. Era apenas o ponto mais alto daquele seu mundo de então, mundo que, alguns anos mais tarde, ele deixou para trás ao partir para a capital, a fim de trabalhar, em busca de novos horizontes.

Deixou para trás também o pé de manga em cujo topo costumava subir.

Na capital, sua vontade era ir para ainda mais alto, vencer na vida, como se diz, mas as contas para pagar agiram, por muitos anos, como um imã a prender seus pés no chão, vivendo a realidade da sobrevivência na cidade grande que pouco lhe permitia sonhar.

Sentia falta da mangueira de sua infância e de sua mãe a gritar-lhe:

– Desce daí, menino!

e em seguida preveni-lo:

– Esse galho quebra e você se esborracha no chão.

Ainda que tenha de fato levado muitos tombos na vida, nunca sofrera nenhuma queda do pé de manga. A árvore, embora velha, tinha os galhos fortes como barras de metal, fortes o bastante para suportarem a carga de suas frutas e de Fernando quando ali subia.

De uma escadaria ao ar livre, próxima ao seu trabalho, para onde sempre ia depois do almoço para pensar sobre a vida, ficava a observar o fluxo incessante de aviões que, ao longe, cruzavam o céu indo em direção ao aeroporto. Até então, nunca havia viajado de avião.

Na primeira vez que viajou, num voo breve entre a capital e o Rio de Janeiro, passou o tempo todo a lembrar-se de sua mãe a dizer-lhe:

– Desce daí, menino!

com aquela mesma voz com que ela, dias atrás, chamava-o em meio a uma multidão na rodoviária da capital.

– Fernando.

Multidão tão imensa que fazia sua mãe parecer um balãozinho no céu, de tão pequena diante de toda aquela gente aglutinada nas plataformas da estação.

– Fernando!

ela chamou de novo e, logo em seguida, finalmente se encontraram. Beijos e abraços a curar anos de uma separação dolorosa tal qual uma ferida cálida.

Sua mãe, Dona Irene, trazia na mala um porta-retrato com a última imagem do pé de manga, numa fotografia tirada dias antes daquela árvore ser derrubada para dar lugar a uma edícula que serviria de quartinho de costura.

Era para lá que sua mãe ia todas as tardes, distrair a mente da vida que passava, exercendo uma atividade que lhe permitia domar as contas do mês. Depois do falecimento de seu marido, o pai de Fernando, Dona Irene passou a viver unicamente de sua pouca aposentadoria e dos trocados que conseguia com os trabalhos de costura.

Ao chegarem ao apartamento onde Fernando morava na capital, Dona Irene impressionou-se com a altura: vinte andares separavam aquele apartamento da movimentada rua em frente.

O prédio era cercado de muitos outros, tão altos quanto ou mesmo ainda mais altos, de maneira que não se via o horizonte.

Sentado no topo do pé de manga de sua infância, Fernando alcançava com seu olhar um horizonte maior e mais amplo do que dali de seu apartamento.

O porta-retrato dado por sua mãe, com a foto da árvore, foi deixado a um canto do apartamento, e ali ficou esquecido. Para Fernando, aquilo tudo era passado, um passado cujo único resquício no presente era sua mãe.

Quando esta, alguns meses depois daquela breve visita ao filho, veio a óbito, resquício nenhum mais lhe sobrou do que vivera em sua infância.

Há noites em que Fernando acorda de um sonho que noite após noite se faz renitente, sonho no qual ouve sua mãe a gritar-lhe:

– Desce daí, menino!

como ela fazia na sua infância, que de tão distante no tempo, parece-lhe agora ser nada mais que um sonho.

Um comentário sobre “O pé de manga

  1. Que poesia maravilhosa, amigo.

    Como me identifiquei nela, a relembrar neste momento o pé de manga que tinha no fundo do quintal da casa de minha mãe e todas as outras que subia, pela área rural em que meu bairro ficava, pois tudo virou outros bairros.

    Não sou muito de leitura, mas do amigo tive curiosidade de ver e ler até o final.

    Parabéns!!

    Bjão

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