Todos os dias, ele pegava seu carro e saía para trabalhar: era taxista. Passava o dia inteiro a percorrer as ruas da cidade, levando passageiros para os mais variados destinos. Conhecia a cidade como a palma de sua mão, era assim que gostava de afirmar. Não precisava de guia. No lugar do volumoso livro com os nomes e mapas das ruas da cidade, Lucas levava um livreto da Constituição brasileira, única lembrança de seus tempos de servidor público no fórum central da cidade, carreira que abandonou por não suportar a rotina de trabalho em ambientes fechados – para ele a liberdade sempre veio em primeiro lugar, sempre foi prioritária. Carregava o livreto apenas para servir de isca para puxar assunto com seus passageiros.

Era uma segunda-feira de manhã, e Lucas, ainda sonolento, tomava seu café numa padaria qualquer da cidade, a fim de despertar, quando recebeu um chamado para buscar a senhora Catarina na casa dela e levá-la ao médico. Ela era uma cliente antiga de Lucas.

Ele então terminou seu café e, sentindo-se mais desperto, saiu apressadamente indo em direção da casa de Catarina, algumas quadras de distância dali. Ao chegar lá, encontrou-a já na porta a esperá-lo, vestindo uma camisola branca, como se estivesse acabado de sair da cama.

Lucas estranhou um pouco, pois nunca a vira vestida daquela forma, mas preferiu não questionar. Depois dos cumprimentos usuais, Catarina entrou no táxi dele e seguiram para o destino dela.

No caminho, Catarina foi contando o sonho que tivera naquela noite a Lucas. Segundo seu relato, no sonho ela caminhava em meio a uma procissão de padres, todos vestindo roupas eclesiásticas de cor preta, à semelhança de urubus. Ela era a única mulher a acompanhá-los e, no sonho, vestia a mesma camisola que estava vestindo enquanto contava o sonho a Lucas.

Catarina contou que, em determinado momento do sonho, os padres foram todos se dispersando, cada um seguindo sozinho para um lado diferente, por ruas diversas, deixando-a, ao final, sozinha no meio da rua por onde caminhavam. Sem entender o que acontecera, ela começou a sentir uma certa náusea e, então, deitou-se no chão enquanto sua cabeça girava como se estivesse tendo um ataque de labirintite.

Sufocada por aquela sensação, ela finalmente conseguiu acordar. Estava toda suada, da cabeça aos pés.

Enquanto contava o seu sonho a Lucas, este seguia o caminho percorrendo as ruas da cidade, bastante carregadas de trânsito àquela hora da manhã. De repente, quando passava por determinada rua, Catarina gritou bem alto:

– Pare aqui!

No susto, Lucas brecou o carro de supetão quase levando à colisão o carro que vinha atrás dele.

Catarina abriu a porta ao lado de seu assento e saiu apressada, sob o olhar assustado de Lucas. Lá fora, ela ficou a observar a rua com o olhar espantado: era a rua que ela havia percorrido em seu sonho da noite passada, junto dos padres em procissão, e era possível vê-los chegando a umas duas quadras dali, em passos rápidos. Foram chegando, chegando, até finalmente alcançarem Catarina.

Foi nesse momento que ela se deu conta que, aqueles que ela julgava serem padres no sonho, eram na verdade juízes e estavam todos eles vestindo longas togas negras, caminhando juntos pela rua como numa procissão.

Como no sonho, Catarina passou a acompanhá-los em seus passos, mesmo sem saber para onde seguiam. Pouco antes do próximo cruzamento daquela rua por onde caminhavam, os juízes pararam de caminhar em linha reta e, então, formaram um círculo ao redor de Catarina, círculo esse que foi se fechando, fechando, fechando cada vez mais, até tocar o corpo dela, e depois seguiu se fechando mais e mais.

Os juízes que estavam na parte interna do círculo foram se despindo de suas togas, deixando nus seus corpos flácidos e seus membros em riste, com os quais passaram a tocar o corpo de Catarina, que, desesperada, passou a gritar por socorro a plenos pulmões.

Lucas, que até então estava imobilizado pela cena que via, enfim despertou de seu torpor e, num gesto quase instintivo, pegou o livreto da Constituição que trazia em seu táxi, no lugar do guia de ruas, e com toda força, jogou-o sobre os juízes, que então fugiram em disparada, tropeçando sobre suas togas, como o diabo foge da cruz. Deixaram Catarina jogada sobre a rua com o olhar catatônico e encharcada de suor.

Ele correu até ela, tomou-a nos seus braços e levou-a até o táxi. Abriu a porta traseira e deitou-a sobre o banco de trás.

Quando Lucas foi dar a partida no carro, o som do motor o despertou. Ao abrir os olhos, viu-se deitado em sua cama, também ele todo encharcado de suor.

Ao olhar o relógio em formato de táxi, sobre a mesinha ao lado da cabeceira, notou que estava bastante atrasado para ir para o trabalho no fórum.

No final, aquilo tudo tinha sido apenas um sonho.

Um comentário sobre “o taxista

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