Ela julgava que seu casamento deveria ser tido como bem-sucedido, pois, passados 20 anos desde a cerimônia em que ela, diante do padre, dissera sim a Lourenço, e este dissera sim a ela, o casal conseguiu adquirir um apartamento próprio, nada muito grande, apenas o suficiente para acomodá-los mais a família de maneira confortável; tiveram dois filhos, que já estão quase saindo da “saia da mãe”, como se diz; puderam construir, cada um deles, sua carreira própria: ele é advogado, ela é manicure e trabalha em um salão de beleza. Não raro, dos salários de ambos sobra algo ora para economia, ora para alguma extravagância; cada um tem seu carro próprio – o dela foi ele quem deu; conseguem viajar algumas vezes por ano, sem muito sacrifício financeiro, inclusive para o exterior. O casamento é abençoado e estimado pelos pais dele e dela, gente conservadora e temente a Deus. Tudo, enfim, parece perfeito, mas apenas quando visto de longe.
De dentro, sob os olhos de Catarina, a esposa, a relação com Lourenço parece uma sessão lenta de tortura. Ela não se lembra quando foi a última vez em que fizeram amor; de fato, mal se lembra o que é isso. Para piorar, desconfia que ele tenha uma amante (quiçá várias). Já pensou em contratar até um detetive para investigar, mas diante do medo do que poderia descobrir, prefere conceder-lhe o benefício da dúvida. Afinal, um casamento de 20 anos não se joga pela janela por qualquer coisa. Ele é homem, reflete, e homens são assim mesmo. Além disso, o que diriam seus pais, seus sogros, seus filhos, suas colegas de trabalho, a vizinha de porta do apartamento, todo o condomínio, se acaso descobrissem que ela tem sido traída pelo marido? Não descarta a hipótese de que, mesmo inocente, venha a ser julgada e condenada como se culpada fosse. Foi você quem procurou, ou você não fez por merecê-lo, diriam apontando o dedo para seu nariz. Seria queimada no inquisitório tribunal da família e amigos. Há dias, esses pensamentos a perseguem e, para dormir, tem apelado para substâncias vendidas apenas com prescrição médica, que consegue facilmente por meio de uma amiga pediatra. Começou ingerindo algumas poucas gotinhas; hoje, quase engole um frasco por semana e, ainda assim, dorme mal.
O desgaste físico e emocional já se faz visível em seu rosto, cabelos e corpo: olheiras, fios ressecados e sobrepeso. Tudo isso só vem piorar a sua fraca autoestima fazendo-a cair ao chão. Chão sobre o qual caminha quase se arrastando.
Quando ele chega em casa depois do trabalho, ela vai ao encontro dele ali mesmo na porta para dar-lhe as boas-vindas com um beijo que tenta acertar a boca, mas que acaba na bochecha dele após ele desviar o rosto. Catarina investiga com o olhar e o nariz se ele traz no corpo ou na roupa alguma pista de traição: uma marca de batom no rosto, por exemplo, ou um perfume feminino a envolver seu pescoço. Está paranóica. Cansado e visivelmente incomodado com aquela atenção toda da mulher que ele atura todos os dias, há anos, ele mal a cumprimenta e vai se sentar no sofá onde, com um copo de whisky na mão passa algumas horas sentado a assistir séries na televisão.
Quando o sono dela chega, enquanto ele segue na sala assistindo televisão por mais algum tempo, ela vai dormir sozinha e, na cama, fica virando de um lado para o outro até conseguir cair no sono, por efeito dos remédios. Mesmo dormindo, o desejo continua vivo dentro dela, o que a faz sonhar diversas vezes o mesmo sonho: ela está na cama, uma cama qualquer que não a dela, e faz amor com um outro homem, não aquele com quem está casada. Acorda suada e assustada. Naquela noite, depois de sonhar que fazia amor com um colega de trabalho, um cara bem mais novo que ela, quase a idade de seus filhos, ela acordou gritando o nome dele, do cara, e com isso acordou Lourenço. Sentindo-se traído, o marido quis saber com quem ela anda saindo. Ela diz que foi apenas um sonho. Ele não acredita. Ela jura e chora. Ele dá de ombros e vira as costas. Brigam a noite toda. Mal o dia amanhece, ele vai embora, levando consigo tudo que pode e xingando alto, para deleite dos vizinhos do prédio. Em posição fetal sobre a cama, ela passa aquele dia todo chorando. Ao se levantar, já bem tarde naquele dia, vê um envelope deixado à frente da soleira da porta da sala, com seu nome escrito. Corre até ele na esperança de que seja alguma mensagem de Lourenço. Sim, é a caligrafia dele. Ela abre o envelope sem muito cuidado para não rasgá-lo e lê a mensagem que o marido lhe escrevera. Em algumas poucas linhas, ele diz a ela o quanto ele se sentiu mal com a traição e que buscará na justiça todos os seus direitos sobre o patrimônio do casal. Incrédula, depois de ler a mensagem, ela começa a rir histericamente. E foi rindo assim, que ela foi resgatada, horas depois, pelos paramédicos, e levada de ambulância até o hospital. Há dias, está internada ali sob acompanhamento de uma médica especializada. Sobre a parede atrás da cabeceira de sua cama, onde há dias ela segue deitada e medicada, há um crucifixo com a figura do Nazareno nu e ensanguentado. Catarina passa o dia todo a observar aquela figura de madeira, pensando em como seria bom se ele fosse de carne e osso, descesse daquela cruz, se deitasse ao lado dela e, ali mesmo naquela cama de hospital, a possuísse.