O aroma inebriante que tomava conta da cozinha denunciava qual era o prato cujo preparo ficava a cargo do forno, que, a julgar pelo calor do ambiente, estava ligado em fogo alto há algum tempo. E assim ficaria por pelo menos mais meia hora, tempo suficiente para completar o necessário para que aquele prato que Madalena assava no forno ficasse pronto, segundo a receita que ela havia visto em um programa matinal de culinária no dia anterior. Dentro do forno, Madalena assava uma lasanha, o prato preferido de seu único filho, Pedramérico, que, dali alguns minutos, chegaria para reencontrá-la após quase cinco anos distantes.

Durante esses anos, mãe e filho mal se falaram – as raras vezes em que isso ocorreu foi sempre por telefone, em breves ligações nas quais ele e ela trocavam meros cumprimentos que, no caso dele, serviam apenas para saber se a mãe ainda estava viva ou se batera as botas. Nada além disso.

No passado, com quinze anos então recém-completados, Pedroamérico fugiu da casa da mãe, pois não suportava mais apanhar dela quase todos os dias. Vítima de uma educação severa, na qual crianças não tinham voz nem tampouco vez, desde sua infância Madalena somente havia aprendido a educar fazendo uso da violência física, a mesma que ela sempre aplicara na educação de Pedroamérico. Para azar dele, havia um agravante: Madalena acreditava que, quanto maior a violência utilizada para educar, melhor era a educação que daí resultaria.

Ao fugir de casa, Pedroamérico havia jurado para si mesmo que nunca mais voltaria, mas, com o passar do tempo, ele foi aos poucos revendo essa decisão até se convencer de que sua velha mãe merecia ao menos uma segunda chance.

E o dia do encontro que marcaria ao menos uma aposta nessa segunda chance havia enfim chegado: um sábado que, não fosse por isso, seria um sábado qualquer na vida dele ou de sua mãe. Pela manhã, Madalena tinha ido ao mercado para comprar os ingredientes da lasanha. Fez questão de comprar a melhor massa, presunto e queijo que seu escasso dinheiro de aposentada permitia. Pensou em também levar um pote de sorvete, a sobremesa preferida de Pedroamérico, mas não tinha como pagar por essa extravagância: Madalena tinha um pacote de boletos aguardando quitação para a semana seguinte e não queria ver-se na situação de má pagadora perante a companhia de luz ou a de gás, só para mencionar algumas das contas que teria que honrar já na próxima segunda-feira.

Enquanto a lasanha seguia assando no forno, Madalena cuidou de arrumar a mesa, jogando por sobre seu tampo redondo uma toalha estampada com motivos florais, em cima da qual depositou dois pratos, dois pares de talheres e dois copos. Deixou livre o centro da mesa, pois ali depositaria o marinex com a lasanha. Ela também aproveitara a manhã para fazer uma faxina na casa e, assim, sinalizar para Pedroamérico que aquela Madalena que aguardava por ele naquele sábado não era a mesma desleixada que convivera com ele antes de sua partida dali, que pouco ou nada se interessava em zelar para que a casa estivesse limpa e organizada: à época, vivia-se ali em meio a roupas jogadas pelos cantos, lixo para retirar, poeira e odores para todos os lados. 

Madalena passara toda sua infância e adolescência tendo de lidar com um pai alcoólatra e violento, daí por que, para além de sua complicada relação com autoridade, organização, também sua relação com qualquer bebida alcoólica era cercada de ressentimentos. Nas várias vezes em que seu pai chegava em casa bêbado, ele fazia de Madalena uma vítima fácil das revoltas e frustrações dele: as surras eram frequentes, sempre sob o olhar indiferente de sua mãe, uma mulher cujo santo jamais bateu com o de Madalena – eram como estranhas uma para a outra. Mesmo diante desse histórico conturbado, Madalena gostava de tomar um pinga, beber uma cerveja. Bebia todos os dias, mas não se julgava dependente da bebida. Porém, não serviria nada alcoólico para acompanhar a lasanha. No lugar de um vinho, que raramente bebia por causa do preço, ou da cerveja, Madalena ofereceria apenas uma Coca-Cola, que ficaria guardada na geladeira até a hora de servir.

O forno apitou avisando que o tempo de cozimento da lasanha chegava ao fim. E nada de Pedroamérico chegar. Vai ver pegou trânsito, Madalena pensou. Ela imaginava que ele vinha de longe, não sabia dizer de onde, e que, portanto, poderia demorar, era natural, pensou. Foi checar se havia alguma mensagem dele no celular dela. Nada. Pensou em mandar uma mensagem para ele perguntando

— Onde está?

ou

— Está chegando?

mas jamais um

— Está tudo bem?

pois seria uma questão demasiadamente ampla. E sempre cabem muitas respostas para questões amplas. E Madalena não queria tantas respostas, queria apenas saber se Pedroamérico estava chegando dentro do horário que dissera a ela que chegaria.

Ela então desligou o forno, tirou a lasanha lá de dentro e a pôs sobre o centro da mesa, para esfriar um pouco. Depois, sentou-se em uma das cadeiras e ficou a contemplar a lasanha quente e fumegante sobre a mesa, enquanto bebericava uns goles de Coca-Cola misturada com cachaça.

Sobre o aparador, ao lado da porta de entrada da casa, havia dois porta-retratos com fotos, uma com Madalena tendo ao colo Pedroamérico bebê e outra com uma selfie recente de Madalena a ocupar toda a quadratura da foto, sem revelar ao fundo o local onde fora tirada. Na foto com Pedroamérico bebê, ela sorri para a câmera emulando as mães da igreja que frequentava, que também faziam questão de sorrir nas fotos com seus bebês. Essas fotos eram coladas no mural da igreja, como forma de avisar os fiéis que a frequentavam sobre para quem direcionar suas doações e preces.

Duas horas já haviam se passado desde que a lasanha ficara pronta e Madalena ainda seguia sem notícias do paradeiro de seu filho. Nesse tempo, a lasanha acabou esfriando. Madalena voltou a verificar se havia alguma mensagem de Pedroamérico em seu celular. Novamente nada.

Então se levantou e foi até a frente da casa a fim de olhar, até onde sua vista alcançava, se ali pela rua havia sinais da chegada do filho. Naquela hora da tarde, com o sol tinindo de quente, a rua jazia praticamente deserta, sem ninguém a percorrer suas calçadas. Voltou para dentro da casa e recolocou a lasanha no forno, mas sem acendê-lo novamente. Abriu apenas a chave do gás e, mantendo o forno aberto, deixou que o gás se espalhasse pela casa toda, preenchendo todos os seus espaços com aquele seu cheiro metálico tão característico.

Com a caixa de fósforos na mão direita, Madalena preparava-se para acender o forno, quando alguém bateu à porta e chamou:

— Mãe?

Era Pedroamérico que chegava, pensou Madalena.

Deixou de lado a caixa de fósforos e correu meio desembestada até a porta de entrada. Ao abri-la, não viu ninguém ali fora: a frente da casa estava tão vazia quanto no momento em que ela saíra para ver se avistava o filho a chegar pela rua. Ela jurava ter ouvido seu filho bater à porta e chamar:

— Mãe?

Decidiu deixar a porta aberta para dispersar o gás, fazendo-o ir para o lado de fora da casa. Feito isso, foi conferir novamente seu celular e viu ali na tela o aviso de uma ligação perdida que havia partido do celular de Pedroamérico. Com as mãos trêmulas, ela pegou o telefone e apertou o botão para chamar de volta o telefone do filho. Do outro lado da linha, mesmo diante da insistência dos toques da ligação, ninguém atendeu.

— Mãe?

De novo, era Pedroamérico que ela ouvia chamar, mas desta vez o chamado vinha do quarto que o menino ocupara quando ainda morava com ela. Aos tropeços, Madalena foi caminhando até lá, temerosa de mais uma vez ser um chamado em falso.

Ao abrir a porta do quarto do menino, que Madalena tinha preservado do mesmo modo como ele deixara quando fugiu daquela casa, ela viu, sem esboçar surpresa, Pedroamérico deitado sobre sua cama, com o corpo todo cheio de lesões e hematomas das surras que levara de sua mãe.

Madalena sentou-se na beira da cama, pousou a mão direita sobre a pele fria do rosto de Pedroamérico e, com voz serena, perguntou-lhe:

— Está tudo bem?

A mesma pergunta demasiadamente ampla que tinha evitado até então, por receio das muitas respostas que poderia contemplar.

Receio que se provou desnecessário, ao menos naquela ocasião, pois de Pedroamérico não recebeu resposta nenhuma.

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