Naquela manhã, ao acordar, sentiu um certo mal-estar, um enjoo, tudo acompanhado de uma angústia, uma tristeza… não sabia bem dizer o quê. Era como se, durante a noite, tivesse pulado de pesadelo em pesadelo, e isso ao final a tivesse deixado nauseada. Mas Julia não se recordava de ter tido pesadelos naquela noite; de fato, eram raras as manhãs, muito raras mesmo, em que acordava com lembranças dos sonhos havidos na noite anterior.

Julia levantou-se da cama e foi ao banheiro para fazer sua toalete, tomar seu banho matinal, escovar os dentes, pentear-se, passar um perfume, maquiar-se, tudo para ficar, enfim, pronta para enfrentar mais um dia. Já se encaminhava para a cozinha, onde tomaria o seu café da manhã, mas nada daquele mal-estar que vinha sentindo desde que acordara a abandonar.

Tomou um café puro, pois se sentia enjoada demais para comer qualquer coisa. Nem as bolachinhas integrais que gostava de comer pela manhã estavam descendo. Terminado o café, pegou sua bolsa e saiu de casa, deixando a chave embaixo do capacho, em frente à porta do apartamento, para a faxineira poder entrar quando chegasse mais tarde. Era a mesma que trabalhava com ela há mais de cinco anos. Sentia-se confiante de deixar a chave para a faxineira entrar e sair. Mesmo tendo estabelecido essa relação de confiança, não sabia o nome da mulher que logo mais adentraria seu apartamento para fazer a faxina diária, abrindo a porta com a chave que ela sempre deixava embaixo do capacho.

A faxineira costumava trabalhar ali três vezes por semana, todas as semanas. Chegava cedo, pouco depois de Julia sair para o trabalho, e terminava seu expediente no final da tarde, algumas horas antes da dona da casa chegar. Ao longo dos anos em que a faxineira trabalhou para Julia, praticamente nunca haviam se encontrado. Eram quase como estranhas uma para a outra. Nos dias de pagamento, a faxineira recebia um cheque que Julia deixava sobre o aparador, com o valor da semana, descontado o valor dos alimentos que ela pegava da geladeira ou da despensa para consumo próprio. Julia tinha controle de tudo o que entrava e saía de casa e, portanto, sabia quando a faxineira consumia algo que não lhe pertencia. Para Julia, combinado era combinado e não fazia parte do ajuste que a faxineira pudesse comer de graça enquanto em serviço no apartamento dela. Por isso, a seu ver, esses descontos eram justos. Na primeira vez em que se viram, na entrevista de emprego, Julia chegou a perguntar-lhe:

— Qual seu nome?

Qualquer que tenha sido a resposta naquele dia, Julia não mais se recordava. Desde então, chamava aquela mulher simples, vinda da periferia distante e pobre da cidade, que em três vezes por semana ia até sua casa, tão somente pela função que ela desempenhava ali: faxineira.

Naquele dia, Julia teve que retornar bem mais cedo do trabalho: o mal-estar que vinha sentindo desde a hora em que acordara foi piorando ao longo do dia e ela se sentia demasiadamente fraca para continuar trabalhando. Ao chegar em casa, já quase prestes a desmaiar, tamanha a fraqueza que sentia, encontrou com a faxineira a terminar de limpar a sala.

— Oi, Dona Julia.

Disse a faxineira, sem esboçar grande entusiasmo, talvez por conta do susto que levara: tão raro era poderem se encontrar pessoalmente.

Sem se lembrar do nome da mulher que limpava sua casa, não restou a Julia outra alternativa senão dizer:

— Oi.

Assim, seco.

Enquanto caminhava na direção de seu quarto, Julia pediu a faxineira que lhe preparasse um chá, algo que estava fora do escopo de seus serviços. Ainda assim, a faxineira preparou um chá de boldo e levou para Julia, que então já descansava em sua cama.

—Tome, Dona Julia.

Disse a faxineira ao chegar ao quarto e se deparar com Julia deitada, toda enrolada em cobertas: ela estava febril.

— Cuidado pois está muito quente.

Advertiu-lhe a faxineira, antes de deixar a xícara passar de suas mãos para as mãos de Julia, que, em seguida, bebeu todo o chá quase que de um gole só, sem se importar com quão quente estava a bebida. Intrigada pela visão daquela mulher que, há pouco, havia sido tão gentil com ela, parada ali diante de sua cama, a olhá-la com uma ternura distante, Julia perguntou-lhe:

— Qual o seu nome?

A essa pergunta, sucedeu-se uma longa pausa.

Julia então caiu no sono por efeito do chá de boldo, que de fato nada tinha dessa erva: havia nele uma mistura de cogumelos que poderia ser letal, a depender da quantidade consumida. Era o mesmo chá que ela tomara no dia anterior o que acabou por causar-lhe o mal-estar à noite. A faxineira tinha deixado o chá pronto dentro de uma garrafa térmica posta sobre a bancada da cozinha, com um bilhete avisando Julia que era o chá que ela pedira para fazer. Diferentemente daquele tomado no dia anterior, o de agora tinha uma quantidade letal de cogumelos.

Julia ainda conseguiu juntar forças para novamente perguntar à faxineira:

— Qual o seu no…?

Mas antes mesmo de conseguir completar a pergunta, desfaleceu… ou morreu?

Por coincidência ou não, foi nesse momento que tocou o telefone celular que Julia deixara na mesinha ao lado da cama. Num gesto impensado, a faxineira o atendeu.

— Alô, é a Julia?

Alguém perguntou do outro lado da linha.

— Ela mesma.

Respondeu-lhe a faxineira, com os lábios e os olhos a sorrirem, pois finalmente alguém naquela casa a chamara por um nome.

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