Desde que retornara a seu apartamento na sexta-feira passada, não saiu mais. Já estamos na quinta-feira seguinte e Glória continua reclusa, sem sair de casa para nada senão buscar na portaria do prédio a comida que pede pelo telefone. E só.

Havia sido desligada do trabalho na sexta: no final da tarde daquele dia, seu chefe a chamara em uma sala de reunião e, dali a pouco mais de dez minutos, ela viu-se desempregada. Trabalhava como secretária executiva naquela empresa de importação e exportação, há quase quinze anos. Felizmente, não tinha ninguém mais para sustentar além dela mesma: o dinheiro da indenização haveria de poder garantir seu sustento, pensava; não sabia dizer ao certo, contudo, por quanto tempo.

Naquele dia, sentiu-se arrasada. Depois da fatídica reunião com seu agora ex-chefe, voltou para aquela que, por tantos anos, havia sido sua mesa de trabalho, recolheu alguns pertences, nada muito numeroso, e andou a passos rápidos e constrangidos

(parecia então pisar em solo estrangeiro)

até o banheiro feminino. Ali, trancou-se em uma das cabines, sentou-se sobre a tampa do vaso sanitário, e pôs se a chorar como há anos não chorava, fazendo um grande esforço para que a imensa dor emocional que sentia não fosse traduzida em gritos ou lamentos altos. Chorou baixinho. Uma hora depois, quando já ninguém mais estava no escritório, afinal era sexta e todos iam-se embora mais cedo ou trabalhavam de casa, ela abriu a porta da cabine e, com o rosto inchado e os olhos injetados de sangue devido ao choro, ajeitou a roupa e partiu para seu apartamento, onde, desde então, há quase uma semana, Glória encontra-se reclusa.

Há tempos e, mais ainda, depois de completar sessenta e cinco anos de idade, vinha passando por sua cabeça que talvez estivesse se aproximando o dia de parar de trabalhar. Muito embora gostasse muito de seu trabalho, tinha consciência de que, mais dia menos dia, a idade pesaria e aqueles comentários que, não raro, chegavam até ela pela rádio corredor da empresa, de que estaria velha demais para a função que desempenhava, resultariam em sua demissão.

Só não esperava ver-se demitida justo no mês de seu aniversário, na verdade dois dias depois. No dia em que completara seus sessenta e cinco anos, o pessoal do trabalho havia preparado uma comemoração, como faziam para todo mundo, com bolo, Coca-Cola, velinhas e todo mundo cantando para ela um parabéns a você. Ficara tão emocionada. Estava presente todo mundo de seu setor, inclusive seu chefe, o mesmo que, dois dias depois, a chamaria numa sala de reunião e a demitiria.

Bastante econômico com as palavras no dia a dia, ele havia sido ainda mais lacônico no dia em que mandara Glória para casa. Dissera-lhe apenas que a empresa estava passando por algumas restruturações e que, nesse processo, demissões eram necessárias, naturais e esperadas. Vai ver nem eu mesmo fique, ele disse, e olhando em retrospecto, parece a Glória que ele dissera aquilo só para amenizar o peso na consciência dele por estar mandando-a embora.

Glória tinha em casa uma caixa cheia de fotografias que, ao longo dos anos, tirou ao lado do pessoal da empresa, em comemorações as mais diversas. Por todo esse tempo, considerou-os família. Não mais. Desde que saíra da empresa, não recebeu nem sequer uma ligação de nenhuma daquelas pessoas, nem ao menos para dizer-lhe Vai ficar tudo bem ou Estou aqui caso precise de algo. Nada. Bando de ratos e ratazanas, ia pensando enquanto reduzia a pedacinhos todas aquelas fotos. Depois de terminar de destruir aquelas fotografias, levou os pedacinhos a que as reduzira ao já então volumoso saco de lixo, que seguia sem ser descartado desde sexta-feira.

Não demorou para os vizinhos do andar começarem a sentir o mal cheiro que saía do apartamento de Glória, devido ao acúmulo de lixo ali dentro. Dona Helena, a senhora viúva que era vizinha de porta de Glória, começou a estranhar não apenas o mal cheiro, mas também não ver nem ouvir mais Glória sair ou entrar, nas raras vezes que tinha que buscar a comida que os entregadores deixavam na portaria. Foi avisar o síndico, Seu Zé, e pedir a ele Vai bater lá na porta dela e ver se tem alguém em casa, já que ela mesma não tivera resposta ao tocar a campainha do apartamento de Glória. Quando Seu Zé foi lá, viu as contas acumuladas na soleira da porta e sentiu o mal cheiro nauseabundo que saía por entre as frestas da fechadura. Chamou Ô Dona Glória, bateu, chamou de novo Ô Dona Glória. Ao ouvir Seu Zé chamando lá fora, Dona Helena saiu à porta para acompanhar o que acontecia. Nada de Glória vir atender. Por alguns minutos, os dois ficaram em silêncio em frente à porta do apartamento de Glória, sob o olhar misericordioso de uma Nossa Senhora de gesso que a ornava, escondendo o olho mágico.

Seu Zé chamou a polícia e, quando os policiais chegaram, outros vizinhos haviam se juntado a Seu Zé e Dona Helena na frente da porta do apartamento de Glória. Uma dupla de policiais, dois homens fortes, bateram à porta e chamaram Dona Glória, Ô Dona Glória. Nada de ela vir atender. Ao fundo, vindo de algum apartamento próximo, ouvia-se o choro insistente de um bebê. Já temendo pelo pior, os policiais pediram aos vizinhos que se afastassem e arrombaram a porta do apartamento de Glória.

Para surpresa e choque de todos, que devido ao mal cheiro nauseante que o apartamento há dias exalava, esperavam pelo pior, algo como um corpo em decomposição, o apartamento estava completamente vazio, limpo, prístino, todo branco como uma nuvem de um dia ensolarado. Nem Seu Zé nem Dona Helena nenhum outro vizinho tinha visto qualquer movimento de mudança. Tudo muito estranho, pensaram todos. As mulheres até se benzeram, fazendo o sinal da cruz sobre seus peitos.

Caminharam todos em passos de procissão até o fundo do apartamento. Foi quando chegaram ao quarto que era de Glória que o maior espanto os tomou de assalto. Em meio ao cômodo vazio, viram uma caixinha de música, com uma bailarina a girar na ponta dos pés, tocando uma melodia de ninar como que acionada por uma pilha de energia infinita.

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