Logo de manhã, ao acordar, pegou o seu celular e leu a notícia de que os metroviários estavam em greve. Se seu ânimo para sair para o trabalho já não era dos maiores, ficou ainda mais desanimada, pois podia antever os transtornos pelos quais passaria para poder chegar à casa de família onde cumpria jornada como babá de um bebê de dez meses, filho único de um jovem casal recém-casado.

Sua patroa gostava que ela chegasse bem cedo, a tempo de assumir os cuidados da criança antes de ela sair para trabalhar. Para atender ao pedido da patroa, Adelaide procurava chegar por volta das sete da manhã, o que a forçava a sair da casa dela bem mais cedo, não depois das cinco e meia, pois, para além disso, atrasaria demais sua chegada ao trabalho, colocando-a sob a mira certa das reclamações da patroa.

Mas naquele dia seria mesmo impossível chegar no horário: com a greve dos metroviários, Adelaide teria que se espremer em ônibus ou lotações, que por certo estariam apinhadas de gente, tudo gente simples como ela, que levava para o trabalho a comida de casa, para não ter que comer na rua, um luxo definitivamente fora do alcance daquelas pessoas todas, a não ser que lhes fosse possível comer algo barato, que coubesse na fome e na falta. Para Adelaide, também isso era impossível: a casa onde trabalhava ficava em um bairro nobre da cidade, cercado de restaurantes finos, nos quais uma garrafa de vinho ou um prato qualquer podia custar mais que seu dia inteiro de trabalho.

Ela mesma já havia se deparado com pedidos de comida recebidos pelos seus patrões, que ia buscar no portão da casa, cujas notas não raramente registravam preços que deixavam à mostra a pornográfica desigualdade social do mundo.

Ao chegar à estação do metrô, como previsto, Adelaide encontrou os portões fechados, com um aviso colado às grades, escrito à mão, onde se lia: “Em greve”. Ela correu para pegar alguma das muitas lotações que se aglomeravam ali na frente, mas tamanho era o número de pessoas a se espremerem que ela mal podia se mexer. As vans de lotações, embora numerosas, mal davam para atender as pessoas que ali estavam, desesperadas para encontrar um meio de transporte que lhes permitisse chegar aos seus destinos.

Às seis e meia da manhã, Adelaide ainda lutava com a multidão para embarcar em alguma van, à semelhança de peixes que se debatem correnteza acima. Com certeza, se conseguisse chegar, chegaria atrasada. Já podia ouvir sua patroa vir reclamar Ô Deda

(era assim que a patroa a chamava)

Ô Deda, seu horário de chegar é às sete.

E a depender do horário em que ela enfim chegaria, além de ouvir o Ô Deda, seu horário de chegar é às sete, ainda teria de ouvir da patroa que Se fosse para chegar tão tarde, pelo menos poderia ter me avisado com antecedência.

Mas, naquele dia, Adelaide, ainda que quisesse, não tinha como avisar: saiu de casa num corre tão grande que acabou se esquecendo de levar seu celular. Além disso, não tinha de memória o número da patroa, de modo que nem teria como ligar para ela, ainda que fosse do orelhão.

Somente às oito da manhã que Adelaide conseguiu enfim embarcar numa van super lotada. Dali umas duas horas, chegaria ao trabalho.

A van seguia pelas ruas congestionadas da cidade, esquivando-se com dificuldade como quem cruza uma multidão, e despejando gente e trazendo gente para dentro ao longo do caminho. Pelos semáforos e cruzamentos, vendedores de balas, de guardanapos, de mapas, homens se oferecendo para limpar os para-brisas, guardas a ameaçarem multas, ladrões de celular, meninos raquíticos a levantarem placas de “estou com fome”, “preciso de ajuda”, “estou desempregado”, gente a correr para seus compromissos, gente apressada, gente pobre, pobre gente que precisa espremer a vida apertando-a entre as paredes estreitas das necessidades mais básicas.

A muitos quilômetros dali, Teresa, a patroa de Adelaide, havia acordado há pouco. Dormira tarde naquela noite, pois tinha saído para jantar com o marido, de modo que só foi conseguir se levantar quando o relógio marcava oito da manhã. Logo que notou a ausência de Adelaide, pôs-se a tentar ligar para o telefone dela, a fim de saber seu paradeiro. Tentou umas três, quatro vezes e, em todas elas, a ligação caiu na caixa postal. Teresa tomou seu café, enquanto acompanhava na televisão o noticiário de um canal estrangeiro sobre determinada guerra, greve e protestos que aconteciam em terras distantes e também notícias do mercado e da bolsa de valores. Nada sabia do que ocorria na própria cidade.

Teria de esperar a chegada de Adelaide, pois não tinha com quem deixar o bebê para ir trabalhar. Adelaide só foi chegar por volta das dez horas daquela manhã. Ao abrir a porta da casa, deu de cara com uma Teresa irritada pelo atraso e pela falta de notícias sobre seu paradeiro. Com o olhar cansado, ainda teve de ouvir da patroa Ô Deda, já te disse que seu horário de chegada é às sete, não? e quase aos gritos complementar Já são dez horas! e por fim ameaçar Se continuar assim, vou ter que descontar de seu salário.

Adelaide estava cansada demais até para responder e, via de regra, para evitar conflitos, preferia mesmo o silêncio a argumentar, fosse com sua patroa, fosse com qualquer pessoa. Não era de seu feitio, como sua mãe costumava lhe dizer quando ela era criança, já naquela época antevendo que a filha carregaria pela vida afora aquele traço de personalidade. Depois que Teresa saiu para o trabalho, Adelaide sentou-se, cansada, diante da televisão e, com o bebê no colo, ficou a assistir as notícias no telejornal a respeito da greve dos metroviários, que então ainda seguia sem solução.

Um repórter surge na tela para narrar sua versão dos fatos, tendo ao fundo um aglomerado de pessoas a tentar embarcar nas diversas vans que estão no local. Lá atrás, é possível ver Adelaide em meio aos que lutam para entrar numa dessas vans. Em determinado momento, sem saber que está sendo filmada, ela olha para a câmera, e a imagem de seus olhos tristes é transmitida pela televisão pelo país afora. Algumas de suas vizinhas, amigas e conhecidas, logo em seguida, enviam-lhe mensagens pelo celular dizendo que a haviam visto na televisão. Ela só veria as mensagens à noite, ao retornar para sua casa. Adelaide mesmo, ainda que também estivesse assistindo aquela reportagem, não a reconheceu na imagem transmitida. A realidade daquela mulher da imagem gravada de manhã, lutando para subir em uma van lotada, parecia tão distante daquela que agora estava sentada naquele enorme sofá, a compor a decoração daquela elegante sala de tevê da enorme casa da patroa. Vai ver era porque nem pareciam habitar o mesmo mundo.

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