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A padaria
Elemento típico de muitas
(quiçá todas)
as padarias paulistanas, a catraca também recebia os clientes que visitavam a padaria do bairro para onde Dalva ia, todas as manhãs, a fim de comprar pão e, quando o dinheiro dava, alguns frios. Nunca ia sozinha: estava sempre acompanhada de sua filha, Teresa, uma menina de cinco anos de idade que, aproveitando-se de seu tamanho diminuto, passava por debaixo da catraca, burlando assim a contabilidade da padaria sobre o número de clientes que a frequentavam.
Numa manhã nublada de sábado, quando ainda poucos clientes estavam dentro da padaria, Teresa
(ou Teresinha, como alguns gostavam de chamá-la)
chegou sozinha e, como de hábito, passou por debaixo da catraca na entrada da padaria.
Depois de cruzar a pequena selva de pernas que separava a entrada do balcão, ela finalmente chegou até onde costumava ficar Seu João, o velho padeiro que, desde menino, trabalhava naquele estabelecimento que herdou de seu pai, que por sua vez herdara de seu pai, o avô de João.
Ao ver Teresinha se aproximar do balcão, Seu João perguntou à menina:
– Os mesmos 4 pãezinhos de sempre?
E então ouviu dela:
– Minha mãe está deitada na cama, sem conseguir se mexer nem falar.
Assustado, Seu João mandou avisar que:
– Ô Dirceu, olha aqui o balcão para mim que preciso ir ajudar Dona Dalva.
Pegou Teresinha pelo braço e saíram os dois pela mesma catraca que a menina havia passado por debaixo, há pouco, quando chegara à padaria.
Poucos minutos depois, ele e Teresinha chegaram à casa onde a menina morava mais sua mãe, Dona Dalva.
Esbaforido, Seu João entrou pela porta da frente sem bater e se deparou com Dalva sentada à mesa, toda ela generosamente arrumada para o café da manhã. Dalva vestia a camisola com que dormira à noite e tinha o rosto amarrotado de quem acabara de acordar e se levantar da cama, sem nem ao menos passar pelo toalete para se lavar ou mesmo pentear os cabelos.
Ainda assim, Seu João suspirou aliviado por ao menos ver que Dalva não estava deitada na cama sem conseguir se mexer, como Teresinha lhe dissera. Com um olhar ainda sonolento e lânguido, Dalva então lhe perguntou:
– Seu João, aceita um café?
Seu João bem quis dizer sim e aceitar o café que Dalva estava lhe oferecendo – há anos, ele nutria uma paixão platônica por ela. Mas declinou ao ver que a xícara do café trazia o logotipo de uma padaria concorrente, justo aquela cujo dono era um antigo e grande desafeto dele. Disse então:
– Obrigado, Dona Dalva.
E continuou:
– Só vim me certificar que a senhora estava bem.
E, por fim,
– Vou chegando.
Querendo dizer
– Vou indo.
Em seguida, sentindo-se como que apunhalado no peito, levantou-se e partiu, sem nem ao menos se despedir da menina Teresa.
Ao retornar à sua padaria, pediu que trocassem a catraca da entrada por uma que não permitisse a ninguém passar por debaixo. Embora Dona Dalva nunca mais tenha ido à padaria dele, nem tampouco Teresinha, o faturamento daquele estabelecimento sofreu um incremento nada desprezível depois daquela simples medida de troca da catraca.
Para celebrar a conquista, Seu Dirceu mandou fabricar algumas xícaras com o logotipo da sua padaria. Em cada uma das centenas de xícaras que ele distribui aos seus clientes mais assíduos, como uma retribuição pela fidelidade, pode se ler, em letras douradas sobre um fundo branco, o nome da padaria dele, “Padaria Dona Dalva”, rodeado por um pãozinho em formato de coração.
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A fofoca
Sua primeira tarefa do dia era varrer a calçada de tijolinhos que tinha em frente de sua casa. Em dias sem chuva, quando o sol acabara de despontar no horizonte, com o ar ainda trazendo o frescor que ganhara na noite anterior, Rita ia para a frente de sua casa, munida de uma vassoura, e punha-se a varrer a poeira sem fim que aqueles tijolinhos da calçada teimavam acumular. Além da poeira, sempre havia folhas, bitucas de cigarro e outras coisas que o povo jogava ali quando passava ou então que era trazido para a frente da casa dela pelo vento.
Mas Rita não cumpria essa rotina porque tinha alguma mania de limpeza ou mesmo uma simples preocupação com a aparência externa da casa: sua intenção ao ir tão cedo para aquela calçada era espionar o movimento das casas vizinhas logo pela manhã: ver se, dentre aqueles que saiam ou chegavam pela vizinhança, havia alguém que causasse estranheza, levantando suspeita de algum caso extraconjugal: possivelmente um amante ou uma amante. Isso ou qualquer outra fofoca digna desse nome.
Rita conhecia bem toda a vizinhança, sabia de cor quem era casado com quem, se tinham ou não filhos e quantos, quem eram os filhos, se namoravam ou não. Trazia em sua cabeça um verdadeiro dossiê sobre seus vizinhos. Aposentada, viúva e morando sozinha, esse era um momento muito importante, pois era nele que Rita recolhia material para ter assunto pelo resto do dia, que podia ser mais movimentado ou mais tedioso e parado, a depender do que Rita conseguia apurar ao varrer sua calçada, com um olho na vassoura e outro na vizinhança. Para ela, um dia bom era aquele em que ela conseguia apurar uma fofoca grande ou várias pequenas. Nem todo dia era assim. Naquela cidade pequena, embora falar da vida alheia fosse um hábito comum, a rotina pacata raramente trazia algo que pudesse servir de matéria prima a essas conversas.
Dia desses, logo cedinho como de hábito, Rita varria sua calçada quando o olho que ficava rondando a vizinhança, tal como um farol, observou o movimento de um homem estranho, aparentando uns cinquenta anos, que ela nunca vira antes, saindo da casa de Dona Jurema, que ficava logo do outro lado da rua. Assim como Rita, Jurema também era uma viúva e morava sozinha. Diferentemente de Rita, porém, Jurema nunca tinha abandonado o luto: vestia-se toda de preto da cabeça aos pés desde o falecimento de seu marido, há quase quinze anos.
Como quem não quer nada, Rita foi ter com o homem – precisava apurar melhor o que acabara de ver, pois quanto mais concretude tinha uma fofoca, melhor ela ficava. Fofocas com base apenas em impressões não rendiam muita conversa.
O homem mal acabara de tomar seu rumo pela calçada, logo após deixar a casa de Dona Jurema, quando foi abordado por Rita, que sem mais delongas lhe perguntou:
— O senhor é parente de Dona Jurema?
Se o homem já caminhava apreensivo, ter ficado repentinamente sob o olhar inquisitório de Rita e receber dela aquela pergunta tão inusitada, deixou-o ainda mais assustado. Só restou ao homem responder:
— Estava cuidando de um entupimento na pia da cozinha dela.
Resposta que, aos ouvidos experientes de Rita, soou totalmente falsa e nada convincente. Então ela insistiu:
— Mas a essa hora?
Sem disfarçar a impaciência, o homem não respondeu – simplesmente virou as costas e saiu caminhando numa quase corrida, a fim de fugir de Rita e de suas perguntas. Mesmo sem dizer a verdade, fosse qual fosse, com esse comportamento o homem havia dado a Rita material suficiente para uma boa fofoca. Na cabeça dela, Jurema não havia aguentado segurar mais o luto e se entregara à luxúria levando para casa um amante, justamente o homem que, sorrateiramente, havia saído pelo portão há pouco e que dissera a Rita que estava cuidando do conserto de um entupimento de pia.
Ao retornar para sua casa, Rita correu para o telefone e começou a ligar para as vizinhas a fim de comentar o que acabara de presenciar. Passou a manhã toda a fazer ligações. Ligou para Dona Helena, Dona Fátima, as Marias – a mulher do médico e, também, a outra, mulher do dentista –, Dona Teresa, Dona Ermengarda, Dona Marta, entre outras. Para todas elas, narrou a mesma história, recebendo, do outro lado da linha, expressões de espanto e incredulidade. Naquela cidade, Jurema era tida como mulher correta, direita. Ninguém ali podia conceber que ela pudesse ter um amante, ainda mais sem ter tido abandonado o luto.
Atendendo a pedidos para melhor apurar a fofoca, Rita foi visitar Jurema na tarde daquele dia. Fritou uns bolinhos de chuva e, levando-os em uma tigela coberta com um guardanapo branco, chegou a casa de Jurema e chamou:
— Dona Jurema.
A casa de Jurema era uma típica casa de viúva: com um jardim mal cuidado na frente, sem muita decoração e com a tinta da fachada já bastante desgastada.
Na segunda vez que Rita chamou:
— Jurema.
Dona Jurema veio atender, toda vestida de preto, com seus cabelos compridos e brancos, soltos, conferindo-lhe a aparência de uma feiticeira de contos de fada.
Ao ver que Rita trazia os bolinhos de chuva que tanto gostava, Jurema convidou-a para entrar e tomar um café:
— Ô, Dona Rita. Quanto tempo. Entre, vamos tomar um café.
Faltou dizer:
— E por o papo em dia.
Mas essa mensagem era desnecessária: estava sempre implícita em qualquer encontro que contasse com a presença de Rita.
Enquanto Jurema passava um café novo, bem quentinho, Rita colocou o cesto de bolinhos de chuva sobre uma mesa forrada com uma toalha de fuxicos. Sentou-se em uma das cadeiras de madeira que estavam ao redor da mesa e ficou a observar Jurema preparar o café. Quando Jurema terminou o preparo e veio servir o café a Rita, logo ouviu desta:
— Ô, Dona Jurema, fiquei preocupada hoje de manhã.
Intrigada, Jurema quis saber o porquê:
— O que aconteceu, Rita?
No que Rita respondeu, visivelmente excitada pela adrenalina daquele momento:
— Logo pela manhã, enquanto eu varria a calçada em frente de casa, vi um homem estranho saindo daqui de seu portão.
E, caprichando na atuação, continuou:
— Nunca o tinha visto aqui na cidade e, por isso, fiquei preocupada com a senhora.
Falseando a impressão que tivera a respeito daquele encontro com o homem pela manhã, completou:
— Podia ser um assaltante, sei lá. Deus me livre!
Jurema ouviu o relato de Rita e, sabendo da fama de fofoqueira da mulher, não deu muita trela. Limitou-se a responder:
— Vixi Maria, Rita. Não sei de homem nenhum. Tem certeza que ele estava aqui?
No que Rita respondeu:
— Absoluta.
Reforçando com um aceno positivo da cabeça.
E então Jurema concluiu:
— Deve ter sido sua imaginação. Como você sabe, desde que João faleceu, eu não larguei o luto. Jamais receberia outro homem em casa.
E então reforçou:
— Isso seria uma afronta à memória de meu primeiro, grande e único amor.
Percebendo que Jurema não ia ceder, Rita foi entretendo ela com outros assuntos até que, num momento de distração de Jurema, Rita foi até o quarto dela e viu, jogada sobre a cama toda desarrumada, uma cueca samba canção. Diante daquilo, Rita deu-se por satisfeita: já tinha material mais do que suficiente, em sua cabeça, para alimentar a fofoca que pretendia levar ao conhecimento da cidade toda.
A fofoca depois ganhou proporção tão grande que, ao final daquele dia, chegou ao conhecimento de Jurema, que, ao saber do que Rita espalhava a seu respeito pela cidade, foi a casa dela tomar satisfações.
Ao chegar a casa de Rita, bateu palmas e chamou:
— Dona Rita!
Evitando dizer simplesmente Rita, pois queria deixar clara sua irritação.
Depois de chamar maus umas duas vezes, Rita veio finalmente atender ao chamado. Abriu a porta de casa e, de camisola, foi até o portão receber Jurema.
— A que devo essa honra?
Perguntou Rita, no que Jurema de pronto respondeu sacando um revólver de dentro do sutiã e desferindo um tiro à queima roupa bem no meio da testa flácida de Rita, que então caiu para trás tendo metade de seus miolos espalhados para fora da cabeça. No silêncio daquela tarde quente e modorrenta, o som do tiro acabou sendo ouvido pela cidade toda. Como ninguém ali nunca ouvira um barulho como aquele, julgaram ser tudo menos um tiro. Ninguém se importou.
Jurema colocou o revólver de volta no sutiã, por entre os peitos, e tomou o rumo de sua casa, deixando o corpo de Rita jogado ali, sem vida, com a cabeça toda explodida pelo tiro que acabara de levar.
No dia seguinte, Dona Teresa, uma das vizinhas para a qual Rita contara a respeito do misterioso homem que havia visto deixando a casa de Jurema, passou pela frente da casa de Rita e, ao ver seu corpo ali jogado, com a cabeça estraçalhada, soltou um grito de pavor, grito que, de tão alto, foi ouvido pela cidade toda. Poucos segundos depois, uma multidão a consolava enquanto, com espanto e terror, viam o corpo morto de Rita jogado na frente da casa.
Não demorou a surgirem boatos de que Rita pudesse ter sido morta por aquele homem que ela vira sair da casa de Jurema. Afinal, que homem era aquele? Perguntavam-se sem resposta.
A fonte mais confiável de esclarecimento parecia ser Jurema, e foi para a casa dela que a multidão seguiu logo depois que a ambulância recolheu o corpo de Rita. Bastava cruzar a rua.
Lá chegando, Dona Helena, a mulher que assumira a liderança do grupo, chamou:
— Dona Jurema.
E, não obtendo resposta, chamou de novo:
— Dona Jurema.
E mais uma vez, agora mais alto:
— Dona Jurema!
Mas Jurema não veio atender. De fato, não estava ali. Tinha ido ao mercado comprar mantimentos para a semana. Ao voltar, deparou-se com a multidão ainda aglomerada em frente a sua casa.
Dona Helena, nem nem esperou Jurema chegar. Foi até ela para oferecer ajuda com as sacolas do mercado. Enquanto caminhavam em direção à multidão, perguntou:
— Está sabendo que Dona Rita foi assassinada a sangue frio na frente da casa dela?
Fingindo nada saber a respeito, Jurema respondeu:
— Não pode ser! Jura?
E continuou:
— Vai ver foi aquele homem que vi saindo da casa dela hoje pela manhã. Mas na hora pensei que Rita pudesse estar recebendo uma visita qualquer, não alguém que fosse lhe retirar a vida.
De repente, na cabeça de Dona Helena, Dona Fátima, as Marias – a mulher do médico e, também, a outra, mulher do dentista –, Dona Teresa, Dona Ermengarda, Dona Marta e todas as outras pessoas que integravam a multidão, tudo passou a fazer mais sentido: Rita havia sido morta pelo seu próprio amante. O mesmo homem que, no dia anterior, ela dissera ter visto visitando Jurema.
— Que história maluca!
— Que absurdo!
— Deus nos livre!
Exclamaram por entre a multidão. Depois se dispersaram e foram para suas respectivas casas. A partir dali, como as águas de um lago que voltam a ser plácidas pouco depois da queda de uma pedra, a vida voltaria ao seu estado de suspensão naquela pequena cidade.
A calmaria só não atingiu Jurema, pois, sem ter quem mais a vigiasse, como Rita fazia, passou a receber seu amante em casa com mais frequência. Desde então, só veste luto para sair. Dentro de casa, principalmente quando acompanhada de seu amante, anda praticamente nua.
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Asas sem ninho
Nunca tinha estado em meio a uma multidão como aquela, com todo mundo vestindo fantasias exuberantes ornadas com plumas, lantejoulas, muito dourado e prateado, caminhando com passos ritmados ao som de uma potente bateria.
Era a primeira vez de Manuela em um desfile de escola de samba. Sentia-se inebriada pela alegria que a circundava, embora não estivesse ali para desfilar, mas a trabalho: integrava a equipe de garis encarregada da limpeza da avenida. Era a única mulher em um grupo de trinta homens, todos, assim como ela, trajando o uniforme cor de laranja da companhia de limpeza para a qual trabalhavam.
Da arquibancada, o público que acompanhava o desfile julgava ver ali, naquele grupo de garis, mais uma ala da escola de samba, cujo samba enredo homenageava reis e rainhas de tempos passados.
Com a mesma maestria com que, com a vassoura, varria a sujeira deixada pelos sambistas na avenida, Manuela sambava. No gingar de suas pernas, ritmadas pela bateria, brotava uma enorme alegria, que crescia e desabrochava feito flor.
Ao final do desfile daquela escola de samba, foram para ela os aplausos do público, que ali então elegia uma nova rainha do samba.
Quando o dia amanheceu, findou o expediente de trabalho dela e de seus colegas garis. Cada um a seu modo, voltaram para suas respectivas casas. Estavam exaustos. Manuela ficou. Foi remexer, por entre o lixo, restos de fantasias deixados pelos foliões. Encontrou de tudo, mas depois de uma seleção com base na memória da música que mais havia lhe comovido naquela noite, selecionou um par de asas angelicais, puídas pelo uso, e uma coroa de lamê dourado. Vestiu as asas nas costas e pôs a coroa sobre a cabeça. E foi ornamentada assim, que ela seguiu para sua casa, na distante periferia da cidade, onde, ao chegar, ainda teve que cozinhar o café da manhã para seus irmãos e lavar a louça antes de poder se deitar e descansar. Fez tudo isso sem tirar as asas das costas e a coroa da cabeça. Dormiu então o dia inteiro, indo acordar somente quando o despertador tocou, avisando da chegada da hora de voltar ao trabalho, para onde seguiu de ônibus, ainda trajando sua fantasia da noite anterior. Fantasia que, ao chegar ao trabalho, pediram-lhe para retirar. Por regra do empregador, os funcionários só podiam trabalhar vestindo o uniforme laranja que trazia, no peito, o logotipo da empresa.
Resignada, ela pegou as asas e a coroa e guardou em um armário no vestiário feminino, que ela, sendo a única mulher empregada, não dividia com mais ninguém. Enquanto seus colegas de trabalho partiam em direção à avenida onde, mais uma vez, passariam a noite a limpar a sujeira deixada após a passagem das escolas de samba, Manuela ficou ali, sozinha, no vestiário. De repente, não viu mais sentido naquela alegria que, como um fogo fátuo, tão rapidamente viria quanto depois desapareceria. Asas sem ninho. Mas se isso não for o Carnaval, então o que seria? Refletiu.
Movimentada por essa reflexão, tomou coragem, levantou-se e acompanhou seus colegas de trabalho para a avenida, a fim de cumprir seu ofício de varrer e limpar.
Varreu, limpou, mas também sambou. Ao final dos desfiles de cada escola de samba, era sempre ela a mais aplaudida. Chegou até a dar entrevista para uma emissora de televisão. Na imagem transmitida a tantos lares, pôde-se ver Manuela no seu traje laranja da empresa de limpeza, trazendo no alto da cabeça uma coroa de lamê dourado e, penduradas nas costas, asas de penas puídas, ambas peças que ela recolhera do lixo no dia anterior. Contrariando a política da empresa, ela havia cumprido sua jornada de trabalho vestindo sua fantasia de restos de lixo. Tão dura era sua realidade de vida, que mesmo a mais precária fantasia, como era aquela que Manuela vestia, conseguia fazê-la mais suportável de viver. Afinal, pensou com alegria, não é para isso mesmo que serve o Carnaval?
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Luiza e Manuel
Casados há mais de trinta anos, chegava a ser difícil imaginar Luiza sem Manuel e vice-versa, tão grudados um ao outro ambos viviam.
Seu único filho, João, já não morava mais com os pais, de modo que tinham a casa só para si mesmos. Livres, passavam os dias ali dentro, pelados, a cuidar dos afazeres domésticos, que não eram muitos: a casa era pequena e não exigia muita manutenção. O tempo livre, passavam a assistir televisão ou lendo, tudo muito prosaico.
Só quando precisavam sair de casa ou quando recebiam alguma visita, duas situações muito raras, é que vestiam roupas. Fora isso, estando frio ou calor, andavam nus.
Era uma manhã nublada, dessas em que o céu parece estar de mau humor, ranzinza, de tão fechado que está seu semblante. Luiza acabara de por a mesa para o café da manhã e foi chamar Manuel, que àquela hora ainda estava no banheiro, tomando seu banho matinal.
— Manuel, o café está pronto.
Ela avisou.
— Vem.
Ela chamou, sem muito entusiasmo.
Mas Manuel demorou a responder. Lá do banheiro, ouvia-se apenas a água do chuveiro a cair dentro do box.
— Manuel?
Ela perguntou, já esboçando um semblante de preocupação. Luiza foi então em direção ao banheiro e, lá chegando, abriu a porta e entrou sem bater, deparando-se com Manuel, não tomando banho como o chuveiro ligado dava a impressão de estar, mas sentado sobre o vaso sanitário a olhar o seu celular.
— O que você está fazendo?
Ela quis saber.
Manuel, sorrindo, mostrou a ela uma foto que estava guardada no celular, uma foto antiga que ele encontrara em seus arquivos de imagens.
— Olhe isso.
Ele disse.
Luiza apertou os olhos para poder enxergar o que Manuel mostrava na tela de seu celular. A foto era do casamento do casal, uma foto antiga, portanto, na qual ele estava vestindo um fraque com duas longas aberturas traseiras, à semelhança de asas de gafanhoto; e ela com um vestido de noiva com muitas camadas de véus e tules brancos, parecido com uma rosa gigante, os dois de mãos dadas diante da porta da igreja, enquanto tentavam se proteger de uma chuva de arroz que caía sobre suas cabeças, lançada pelos convidados que os esperavam ali fora, logo depois de terminada a cerimônia matrimonial.
Na foto, o então jovem Manuel e uma Luiza ainda na flor da idade sorriam para um futuro que, no instante capturado pela imagem, era uma terra virgem, como um vasto descampado prestes a ser conquistado e explorado.
— Parece que foi ontem.
Disse Manuel, sem tirar os olhos da foto, no que Luiza concordou com um meneio da cabeça. E, por alguns instantes, pareceu-lhes mesmo que tinha sido ontem aquele momento retratado naquela imagem de quase trinta anos atrás, guardada no celular de Manuel. Era como se os anos de casados, que viveram juntos, não fossem nada senão as últimas vinte e quatro horas que os separavam da manhã do dia anterior.
– Como o tempo passa rápido.
Disse Luiza, esboçando um olhar algo cansado.
– Passa mesmo.
Confirmou Manuel, enquanto fechava a tela do celular e se levantava.
Ao ficar em pé, Manuel pôde olhar-se no espelho do banheiro e, por sobre a superfície embaçada pelo vapor do chuveiro, viu a sua imagem refletida junto a de Luiza. Diferentemente da foto do casamento, em que estavam vestidos a rigor, ali diante do espelho, ambos estavam nus, seguindo hábito cultivado em anos recentes, depois que seu filho deixara a casa dos pais.
Como uma metáfora do tempo que se esvai, o chuveiro continuava ligado despejando litros e litros de água diretamente sobre o ralo dentro do box do banheiro.
(como o tempo passa rápido)
— Desliga esse chuveiro, Manuel.
Ordenou Luiza.
— A gente não é sócio da companhia de água.
Justificou.
Manuel fechou o chuveiro, fazendo cessar o desperdício de água, e então seguiram para a cozinha onde tomaram seu café da manhã, como sempre faziam, fiéis à rotina dos dias que seguiam a passos lentos, surpreendendo-os, vez em quando ou quase sempre, com a sensação de que o tempo não passava, sentimento que parecia ainda mais marcante em dias nublados como aquele que então apenas se iniciava, certamente um longo dia.
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Carolina
Bastava fevereiro se aproximar para que seu estado de humor, em geral sujeito a poucas variações, apático mesmo, sofresse um abalo, baixando até quase o ponto de uma verdadeira melancolia. Tal ocorria porque, junto com fevereiro, tradicionalmente também chegava o Carnaval.
E, para Carolina, os Carnavais eram datas tristes como, para muitos, são os Natais e os aniversários da morte de entes queridos: ao longo dos anos, ela sofreu as maiores perdas de sua vida sempre nesse feriado: primeiro foram seus pais; dois anos depois, seu primeiro marido, e, anos mais tarde, foi-se o segundo.
Aos 73 anos, viúva por duas vezes, sem filhos, sozinha, ela passa os dias do Carnaval a olhar, do alto da diminuta janela de sua quitinete, os bloquinhos de foliões que desfilam lá na rua, alguns andares abaixo daquele de sua morada.
Gosta de dizer para si mesma, em pensamento, que no seu tempo de moça jovem, tudo era muito diferente e melhor.
De fato, naqueles idos anos, a lei de então não obrigava ninguém a ser feliz, como faz a lei atual, cuja vigilância, fazendo uso de táticas de uma blitz policial, cresce exponencialmente nessa época do ano. Não por outra razão, para muitos o Carnaval é uma época tão obrigatoriamente festiva e alegre: estão apenas a cumprir a lei.
Receosa de ver-se privada de sua liberdade, de ser presa em flagrante por desobediência a essa lei, Carolina prefere então passar esses dias a salvo na segurança das quatro paredes de sua quitinete, onde ao menos é livre para sentir-se triste.
Está feliz assim.
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A estação de trem
Desativada há anos, a antiga estação de trem ficava às margens da cidade, numa periferia distante situada para além do cemitério municipal. As suas plataformas, que outrora foram repletas de gente a chegar e partir, encontram-se vazias. Ao invés do apito do trem e do burburinho dos passageiros, ouve-se apenas o sopro do vento, que, em tom de sussurro e sob testemunho das aranhas que habitam os cantos do telhado, diz aos poucos desavisados que por ali aparecem:
— Perigo.
sobre quão perigoso é estar ali, dado que o local, bastante degradado após anos de abandono, não oferece segurança nenhuma àqueles que o visitam. A poeira, os buracos, o mato alto e a água suja empoçada criam ambiente propício para cobras, aranhas, ratos e pessoas desabrigadas.
Um dessas pessoas é uma mulher de nome Isabel, que vive ali numa das plataformas, sob uma barraca precária de panos sujos, desde quando a estação foi desativada.
Há 10 anos, quando o derradeiro trem dali partiu, levando seu único filho dentro do último vagão, aquele destinado à segunda classe, ela, em pé sobre a plataforma, ficou a acenar com um lenço que trazia na cabeça, o mesmo com que também enxugava as lágrimas que, em profusão, desciam pelos cantos de seus olhos. O filho partia para tentar a vida em outra cidade, maior e distante, com a promessa de que
— Um dia eu volto, mãe.
um dia voltaria.
Desde então, todavia, nunca mais voltou.
Refém da esperança de que ele um dia cumpriria sua palavra de voltar, Isabel permaneceu ali esperando por todos esses anos. Para isso, largou tudo para trás: casa, marido, pai, mãe, irmãos. Ninguém entendia o porquê, mas para ela isso não importava: ficava naquela estação de trem como se estivesse ali condenada à prisão.
Isabel vivia à base dos restos de alimentos que recolhia do lixo deixado ao redor daquele lugar pelo serviço de coleta da cidade. Para beber, ia até o riacho que passava ao lado da estrada de terra ao fundo da estação de trem. Fazia as suas necessidades onde e quando sua vontade ditava.
Abandonada pelos pais quando ainda era uma criança de pouco mais de 4 anos, Isabel foi criada por sua avó, seguindo uma criação muito simples, como eram aquelas que se davam às crianças, pobres como ela, em sua época, na cidade onde nasceu.
Quanto teve Lourenço, seu primeiro e único filho, jurou a si mesma que nunca o abandonaria, como fora abandonada por seus pais. Pena, para ela, que Lourenço não fizera a mesma promessa em relação à própria mãe.
Às vezes, quando, à maneira dos passageiros de outrora, o vento cruza, apressado, as plataformas da velha estação, é possível ouvir Isabel chorando baixinho. Em meio ao choro, ela reza: tem fé de que um dia seu filho vai voltar.
Certa noite, uma luz, forte como a de um farol, irrompeu o breu que envolvia a estação, seguindo a linha do trem. Vinha de longe e, rapidamente, foi chegando cada vez mais e mais perto. Ao presenciar aquela cena, Isabel sentiu seus olhos serem injetados por lágrimas, enquanto seu coração batia em disparada: para ela, aquela luz era a da locomotiva do trem que trazia seu filho de volta.
À medida que foi se aproximando, a luz foi se revelando não como a luz da locomotiva do trem, como pensava Isabel, mas a de um carro alegórico que trazia, em cima de sua carroceria, um trem feito de madeira e isopor. Da janela daquele trem de fantasia, acenava um homem vestido como um maquinista. A cada vez que ele puxava a cordinha da cabine da locomotiva, ouvia-se um apito alto e agudo.
Junto com o trem, chegou o som de uma potente bateria de escola de samba, que por sua vez puxava, à maneira do Flautista de Hamelin, um cordão de centenas de sambistas, todos fantasiados de multicoloridos maquinistas. Seguindo o ritmo compassado da bateria, carro alegórico e sambistas avançavam na direção de Isabel, que, como se estivesse hipnotizada, acompanhava aquilo tudo sem mexer um músculo, com os olhos fixos e brilhantes como de um gato que, ao cruzar a estrada à noite, é surpreendido pelos faróis de um carro.
Depois de anos de tristeza e resignação, tudo aquilo lhe parecia tão estranho, mas ainda assim tão espetacularmente belo.
Minutos depois, fez-se novamente silêncio na estação de trem abandonada: o carro alegórico e os sambistas já iam longe, bem distante dali, deixando para trás muito lixo, não do tipo orgânico e fétido em cujo meio Isabel, nos últimos anos, acostumara-se a viver, mas sim restos de festa e alegria: serpentinas, confetes, plumas e restos de paetês, cujas cores e brilhos eram então realçados pelas luzes, tépidas mas ainda assim vibrantes, que o sol da manhã lançava sobre a antiga estação de trem.
Vendo tudo aquilo espalhado pela estação e pelos trilhos do trem, Isabel se lembrou que, quando menino, Lourenço, festeiro como ele só, gostava de ir às matinês de Carnaval, vestindo fantasias diversas, que variavam conforme o tema da festa ou mesmo seu desejo de se destacar, mas sua preferida era justamente a de maquinista de trem. Ao voltar dos bailes de Carnaval, ele trazia grudado ao corpo suado restos de serpentinas, confetes, plumas e paetês similares àqueles que Isabel então via, ao seu redor, jogados ao chão. De repente, seu olhar para aqueles restos de festa e alegria mudou, e ela passou a ver ali a realização do tão aguardado retorno de seu filho que partira há 10 anos. No fundo, sabia que não era verdade que ele tinha voltado, mas se permitiu, ao menos por um instante, breve como o apito de um trem, deixar-se levar por aquela fantasia, afinal, era Carnaval.
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a mãe
A mesa de jantar, no centro da sala ao lado da cozinha, costumava receber a família para as refeições do dia a dia: pai, mãe e três filhos sentavam-se ao seu redor, e ali tomavam os cafés da manhã, almoçavam e jantavam.
Depois de preparar as refeições, a mãe punha a mesa estendendo sobre ela uma toalha com motivos florais, sobre a qual dispunha os pratos, os talheres e os guardanapos. Finalizava a arrumação com a colocação dos alimentos.
Depois de terminarem de comer, saíam todos da mesa para cuidar de outros assuntos, enquanto a mãe ficava ali, afinal era ela a encarregada única de terminar de lavar a louça, secar e guardar, num ciclo que se repetia ao menos três vezes ao dia, todos os dias da semana. Além de cuidar das refeições, era a mãe que cuidava da limpeza da casa, das roupas, das compras do mês, da educação dos filhos, cumprindo assim uma jornada de trabalho que não tinha intervalo. Era a primeira a acordar e a última a ir dormir.
Com o passar dos anos, os filhos foram crescendo e, aos poucos, indo embora da casa dos pais. Formaram-se, casaram-se e se foram. A casa foi ficando vazia.
Quando o pai faleceu, a mãe ficou morando sozinha naquela casa que, antes tão pequena, parecia ter se tornado maior com o tempo, fazendo ainda mais presentes as ausências que a vida e a morte trouxeram ao longo dos anos.
Mesmo sem ter ninguém mais a quem cuidar senão ela mesma, a mãe continua a agir como se a casa estivesse cheia, como de fato fora outrora. Prepara as refeições, põe a mesa, lava a louça, limpa a casa, lava as roupas, faz as compras do mês, procura se manter ocupada.
Todavia, sem ter mais a quem servir, não vê sentido para sua vida.
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A vida é um sopro
Vistas de longe, as luzes da cidade pareciam estrelas tristes, com seu brilho amarelado como os sorrisos das gentes com quem, todos os dias, Ana cruzava pelos corredores do escritório onde trabalhava como secretária.
Era madrugada de domingo para segunda, quando o ônibus em que ela estava, depois de fazer o desvio da estrada principal, tomou a estrada secundária que daria direto na cidade. Ana voltava das férias em sua cidade natal e, na manhã daquele dia, voltaria ao trabalho. Embora tivesse ficado fora por quase um mês, parecia-lhe que tudo passara tão rápido.
Quando criança, sua mãe sempre lhe dizia:
— A vida é um sopro.
Volta e meia, para ilustrar, dizia isso e, em seguida, soprava uma flor de dente-de-leão que colhera no quintal, fazendo-a se dissolver no vento.
— Está vendo?
Perguntava a mãe, enquanto cada florzinha do dente-de-leão voava para um lugar diferente, tomando os rumos mais distintos.
Para sua mãe, de fato, a vida tinha sido breve como um sopro: morreu ainda jovem, quando Ana não tinha mais que 5 anos de idade. Órfã da mãe, ela acabou sendo criada por seu pai, Orlando. Foi graças a ele que ela conseguira estudar e ter, enfim, condições de deixar a sua cidade natal e seguir para a cidade grande, a fim de buscar uma vida melhor. A mesma cidade para a qual ela voltava depois de ficar fora de férias por quase um mês.
Muitos anos atrás, quando, ainda jovem, esperava o ônibus na rodoviária que a levaria da sua cidade natal para a cidade grande, foi-lhe inevitável comparar aquela rodoviária, com toda a gente que estava ali esperando ônibus para vários destinos, com uma flor de dente-de-leão, que a partir de um sopro, lança suas florzinhas ao vento para seguirem, cada uma delas, um destino. Também aquelas pessoas seguiriam por destinos variados, não só de viagem, mas de vida mesmo. Muitos que ali estavam, mesmo morando naquela cidade tão pequena, ela nunca tinha visto. Outros, depois de embarcarem, ela jamais veria de novo.
Ao enfim chegar a seu apartamento, onde vivia sozinha, Ana sentou-se por alguns instantes no sofá, enquanto olhava ao redor os móveis e objetos que há dias não via. Tudo era tão familiar e estranho ao mesmo tempo.
Pouco depois, algumas horas apenas, Ana teria que estar a caminho do trabalho, onde novamente encararia os seus colegas com seus sorrisos amarelos, virem na direção dela e a cumprimentarem pelo retorno dizendo:
— Bom retorno.
Depois de perguntarem, só por perguntar:
— Como foi de férias?
Tudo dito por entre cumprimentos de mãos débeis e beijos à distância. Às vezes, nem isso.
Ana não aguentava mais trabalhar naquele lugar, mas infelizmente, em sua idade, de quase se aposentar, conseguir um outro trabalho, um trabalho qualquer que fosse, era algo quase impossível.
Tentando reunir forças e coragem, ela tomou um banho, se trocou e partiu, indo em direção ao ponto do ônibus que a levaria até o escritório onde trabalhava, no centro.
Ao chegar lá, os sorrisos amarelos, que então lhe pareceram ainda mais amarelos, vieram ao seu encontro para cumprimentá-la dizendo:
— Bom retorno.
Depois de perguntarem, fingindo interesse:
— Como foi de férias?
Apesar de ser o primeiro dia de trabalho, após quase trinta dias de férias, Ana sentia-se muito cansada, afinal, viajara de ônibus a madrugada toda sem conseguir dormir direito. Mal havia ocupado seu lugar na mesa de trabalho, foi chamada a comparecer à sala da diretoria. Fez um muxoxo de chateação e seguiu para onde havia sido chamada. Lá, depois de cumprimentos protocolares, ouviu de seu chefe que, devido a uma reorganização interna, ele não mais a via como integrante da equipe.
— Não há espaço para você nessa nova estrutura.
Friamente, entregou-lhe um papel para ela assinar e, depois que ela assinou, despediu-se agradecendo pelos anos de serviços prestados.
Ana trabalhara naquela empresa por quase 30 anos. Não só ela, mas também muitos dos sorrisos amarelos foram desligados naquele mesmo dia.
Enquanto esperava pelo ônibus que a levaria de volta para casa, foi-lhe inevitável lembrar-se, sob lágrimas, de Seu Orlando, seu pai, a lhe dizer:
— Nem tudo são flores nesta vida.
ou
— A vida é como uma rosa: bela e perfumada, mas ao mesmo tempo cheia de espinhos.
Vendo toda aquela gente ali ao redor dela, no ponto de ônibus, gente que ela nunca vira e, muito provavelmente, não mais veria depois de tomarem seus rumos, lembrou-se da flor de dente-de-leão a espalhar suas florzinhas pelo mundo quando sua mãe a soprava.
( — A vida é um sopro)
Lembrou-se também do dia em que partira de sua cidade natal para vir à cidade grande; lembrou-se dos quase trinta anos que passara trabalhando no escritório que acabara de a demitir.
Enquanto sua mente vagava por essas memórias e lágrimas escorriam de seus olhos, chegou o ônibus que ela esperava. Por sorte, conseguiu um assento livre. Sentou-se ali logo na frente do veículo, de onde, olhando pela janela, acompanhava as cenas que se desenrolavam pelas ruas por onde o ônibus passava. Ruas que, por anos, ela cruzara, indo e voltando do trabalho. Tudo lhe parecia tão familiar. Tudo mesmo, exceto por uma multidão de bailarinas metidas em vestidos de tule rosa que, à maneira militar, marchavam sobre as pontas dos pés por uma rua, carregando em seus braços, cada uma delas, uma arma de grosso calibre.
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De ti sem mim
Ela julgava que seu casamento deveria ser tido como bem-sucedido, pois, passados 20 anos desde a cerimônia em que ela, diante do padre, dissera sim a Lourenço, e este dissera sim a ela, o casal conseguiu adquirir um apartamento próprio, nada muito grande, apenas o suficiente para acomodá-los mais a família de maneira confortável; tiveram dois filhos, que já estão quase saindo da “saia da mãe”, como se diz; puderam construir, cada um deles, sua carreira própria: ele é advogado, ela é manicure e trabalha em um salão de beleza. Não raro, dos salários de ambos sobra algo ora para economia, ora para alguma extravagância; cada um tem seu carro próprio – o dela foi ele quem deu; conseguem viajar algumas vezes por ano, sem muito sacrifício financeiro, inclusive para o exterior. O casamento é abençoado e estimado pelos pais dele e dela, gente conservadora e temente a Deus. Tudo, enfim, parece perfeito, mas apenas quando visto de longe.
De dentro, sob os olhos de Catarina, a esposa, a relação com Lourenço parece uma sessão lenta de tortura. Ela não se lembra quando foi a última vez em que fizeram amor; de fato, mal se lembra o que é isso. Para piorar, desconfia que ele tenha uma amante (quiçá várias). Já pensou em contratar até um detetive para investigar, mas diante do medo do que poderia descobrir, prefere conceder-lhe o benefício da dúvida. Afinal, um casamento de 20 anos não se joga pela janela por qualquer coisa. Ele é homem, reflete, e homens são assim mesmo. Além disso, o que diriam seus pais, seus sogros, seus filhos, suas colegas de trabalho, a vizinha de porta do apartamento, todo o condomínio, se acaso descobrissem que ela tem sido traída pelo marido? Não descarta a hipótese de que, mesmo inocente, venha a ser julgada e condenada como se culpada fosse. Foi você quem procurou, ou você não fez por merecê-lo, diriam apontando o dedo para seu nariz. Seria queimada no inquisitório tribunal da família e amigos. Há dias, esses pensamentos a perseguem e, para dormir, tem apelado para substâncias vendidas apenas com prescrição médica, que consegue facilmente por meio de uma amiga pediatra. Começou ingerindo algumas poucas gotinhas; hoje, quase engole um frasco por semana e, ainda assim, dorme mal.
O desgaste físico e emocional já se faz visível em seu rosto, cabelos e corpo: olheiras, fios ressecados e sobrepeso. Tudo isso só vem piorar a sua fraca autoestima fazendo-a cair ao chão. Chão sobre o qual caminha quase se arrastando.
Quando ele chega em casa depois do trabalho, ela vai ao encontro dele ali mesmo na porta para dar-lhe as boas-vindas com um beijo que tenta acertar a boca, mas que acaba na bochecha dele após ele desviar o rosto. Catarina investiga com o olhar e o nariz se ele traz no corpo ou na roupa alguma pista de traição: uma marca de batom no rosto, por exemplo, ou um perfume feminino a envolver seu pescoço. Está paranóica. Cansado e visivelmente incomodado com aquela atenção toda da mulher que ele atura todos os dias, há anos, ele mal a cumprimenta e vai se sentar no sofá onde, com um copo de whisky na mão passa algumas horas sentado a assistir séries na televisão.
Quando o sono dela chega, enquanto ele segue na sala assistindo televisão por mais algum tempo, ela vai dormir sozinha e, na cama, fica virando de um lado para o outro até conseguir cair no sono, por efeito dos remédios. Mesmo dormindo, o desejo continua vivo dentro dela, o que a faz sonhar diversas vezes o mesmo sonho: ela está na cama, uma cama qualquer que não a dela, e faz amor com um outro homem, não aquele com quem está casada. Acorda suada e assustada. Naquela noite, depois de sonhar que fazia amor com um colega de trabalho, um cara bem mais novo que ela, quase a idade de seus filhos, ela acordou gritando o nome dele, do cara, e com isso acordou Lourenço. Sentindo-se traído, o marido quis saber com quem ela anda saindo. Ela diz que foi apenas um sonho. Ele não acredita. Ela jura e chora. Ele dá de ombros e vira as costas. Brigam a noite toda. Mal o dia amanhece, ele vai embora, levando consigo tudo que pode e xingando alto, para deleite dos vizinhos do prédio. Em posição fetal sobre a cama, ela passa aquele dia todo chorando. Ao se levantar, já bem tarde naquele dia, vê um envelope deixado à frente da soleira da porta da sala, com seu nome escrito. Corre até ele na esperança de que seja alguma mensagem de Lourenço. Sim, é a caligrafia dele. Ela abre o envelope sem muito cuidado para não rasgá-lo e lê a mensagem que o marido lhe escrevera. Em algumas poucas linhas, ele diz a ela o quanto ele se sentiu mal com a traição e que buscará na justiça todos os seus direitos sobre o patrimônio do casal. Incrédula, depois de ler a mensagem, ela começa a rir histericamente. E foi rindo assim, que ela foi resgatada, horas depois, pelos paramédicos, e levada de ambulância até o hospital. Há dias, está internada ali sob acompanhamento de uma médica especializada. Sobre a parede atrás da cabeceira de sua cama, onde há dias ela segue deitada e medicada, há um crucifixo com a figura do Nazareno nu e ensanguentado. Catarina passa o dia todo a observar aquela figura de madeira, pensando em como seria bom se ele fosse de carne e osso, descesse daquela cruz, se deitasse ao lado dela e, ali mesmo naquela cama de hospital, a possuísse.
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Copo vazio
Na feira que acontecia todas as quintas, ocupando três quarteirões da rua principal do bairro, sempre havia muito burburinho de pessoas que iam até ali para comprar alimentos frescos, ou mesmo para simplesmente ver o movimento e fofocar. Quem quisesse encontrar preços mais em conta, chegava mais tarde, lá pela hora do almoço, horário a partir do qual os feirantes baixavam os preços na tentativa de zerar os produtos das barracas. Nem sempre funcionava para eles, mas os clientes comemoravam os preços mais baixos, ainda que, por outro lado, a variedade de produtos não fosse a mesma que aquela do início da feira.
Maria Helena gostava de ir à feira bem cedo para dar uma geral nos produtos que estavam à venda, ver o que ela queria levar, mas de fato só levava mais tarde, na hora da xepa, quando os feirantes baixavam os preços, tornando-os mais condizentes com o dinheiro que ela recebia mensalmente da aposentadoria. Vez ou outra, não sempre, sobrava para alguma extravagância como, por exemplo, comer um pastel e tomar um caldo de cana. Mais comum era ela voltar para casa com a sacola preenchida apenas pela metade.
De seu falecido marido, que trabalhara a vida toda na construção civil, um homem rude, porém de modos muito corretos, sempre ouvia:
– Há que se ver sempre pela perspectiva do meio cheio.
Referindo-se a situações da vida em que, metaforicamente ou não, o copo encontrava-se preenchido apenas pela metade.
Era o jeito dele de cultivar algum otimismo, mesmo diante de tantas dificuldades. Às vezes funcionava, como quando ele, ao se deparar com o diagnóstico de uma doença terminal, que, segundo o médico, o levaria a óbito em, no máximo, dois meses, olhou para Maria Helena e, sorrindo, disse-lhe:
– Pense pelo lado positivo.
E, diante do olhar incrédulo dela, esclareceu-lhe:
– Pelo menos vou parar de peidar.
E então complementou:
– Assim você vai conseguir dormir melhor daqui pra frente.
De fato, com a morte de Luiz, seu marido, Maria Helena passou a dormir melhor. À época, não se sentiu nem um pouco culpada pela alegria que tomou sua mente quando conseguiu dormir sem o incômodo do ronco e, pior, dos peidos que seu marido emitia continuamente todas as noites, tornando desafiante a simples tarefa de respirar dentro do quarto do casal.
Naquele dia, lá na feira, na barraca de legumes do Seu João que ela frequentava havia mais de dez anos, o próprio Seu João veio perguntar-lhe como andava a vida, pergunta que muitas vezes a faziam de maneira desinteressada, apenas para jogar conversa fora. Mas no caso de Seu João, não. A pergunta tinha um propósito absolutamente alinhado às palavras proferidas: ele estava sinceramente preocupado com o bem-estar de Maria Helena, pela simples razão de que nutria um amor platônico por ela.
Como a cordialidade de sempre, Maria Helena respondeu-lhe:
– Ô, Seu João, estou que nem essa sacola de feira.
E então esclareceu:
– Nem cheia nem vazia.
E diante da indagação de Seu João, feita apenas por meio de um frisar de sobrancelhas, Maria Helena concluiu:
– Ando meio triste.
Vendo ali uma oportunidade de ser um ombro de apoio, Seu João quis saber dela:
– Mas por quê, Dona Maria?
– Ah, sei lá.
Ela respondeu, não dando muita pista do que ia em sua mente nem em seu coração.
O feirante então convidou-a para um pastel e um caldo de cana, na barraca dos japoneses a poucos passos dali, convite que foi prontamente aceito por Maria Helena, afinal ela nem tinha tomado café da manhã: estava faminta.
Lá chegando, ao perguntar-lhe que sabor de pastel que ela queria, João ouviu dela algo completamente inusitado. Disse-lhe Maria Helena:
– Quero me casar de novo, sabe?
E prosseguiu:
– Tenho pensado muito nisso ultimamente, dado que ando me sentindo muito sozinha.
Ainda ela:
– Além disso, não tem sido fácil fechar as contas do mês só com o que ganho de aposentadoria. Os preços têm subido muito.
Vendo ali a deixa que precisava para dizer a ela o que ele sentia, João soltou um:
– Quer se casar comigo?
Dito de joelhos, diante de uma Maria Helena incrédula com a cena que se desenrolava diante de si.
Um tanto assustada, ela não conseguiu proferir outra resposta senão:
– Tem de queijo?
Na verdade, uma pergunta que ela dirigiu ao pasteleiro japonês que, ali ao lado dela e de João, aguardava pelo pedido dos dois.
Constrangido pelo fora que levara, João tirou a carteira do bolso e, como prometido, pagou pelo pastel de queijo e pelo caldo de cana pedidos por Maria Helena. Ele mesmo não comeu nem tampouco bebeu nada.
Quando Maria Helena chegou à metade do copo de caldo de cana, olhou para João e, do nada, disse-lhe:
– Aceita?
João, pensando que aquela pergunta era a aguardada resposta para a proposta que ele fizera a ela poucos minutos antes, gritou de alegria, grito que, de tão inesperado e alto, acabou assustando Maria Helena a ponto de fazê-la derrubar ao chão o copo de caldo de cana que então estava pela metade, esvaziando-o por completo.