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Farley Menezes

  • De passagem por essa vida

    fevereiro 4th, 2016

    Estou sentado à mesa de uma cafeteria, bem próxima de casa. É de manhã, e enquanto bebo o primeiro café do dia, vou olhando umas fotos de família, que trago dentro de uma caixa de sapatos. São várias fotografias muito antigas, algumas já bastante danificadas pela corrosão do tempo e dos elementos. Seleciono uma delas e coloco sobre a mesa.
    Na mesa ao lado, a poucos metros da minha, há uma senhora bastante idosa. Somos os únicos clientes do estabelecimento. O olhar dela está direcionado ao vazio – é um olhar carregado de uma solidão tal, que parece até pesar sobre suas costas frágeis, a ponto de fazê-las curvarem-se, à maneira de uma cariátide.

    Lembra-me o tipo de olhar que já por tantas vezes notei nos olhos dos porteiros dos grandes prédios residenciais de São Paulo – falo daqueles prédios mais antigos, que ainda não escondem esses homens por detrás de vidros escurecidos.

    (estes devem sentir-se ainda mais solitários)

    Faz frio, mas, apesar disso, a senhora na mesa ao lado está vestida apenas com um leve vestido de chita, que mal lhe cobre boa parte das suas pernas e braços.

    Intrigado, tomo o último gole de café que ainda sobrava no fundo da xícara, aproximo-me dela e, depois de cumprimentá-la:

    – Bom dia.

    Pergunto-lhe:

    – A senhora não está com frio?

    e então ofereço-lhe:

    – Gostaria de um café ou um chá bem quente?

    Como as folhas de uma árvore em um dia sem vento, a velha senhora continua imóvel; seu olhar, ainda fixo no vazio. Mas seus olhos agora parecem estar mais brilhosos do que quando a notei há instantes. Logo descobri a razão: lágrimas.

    Posiciono-me à frente dela, de modo a ocupar, com o meu corpo, o vazio que ela contempla. Noto, enfim, meu reflexo nas pupilas de seus olhos, ou pelo menos penso ver-me dentro deles. Pergunto-lhe:

    – Qual o nome da senhora?

    no que ela levanta ligeiramente sua cabeça, olha-me bem de frente, como quem nos olha de uma fotografia, e responde-me:

    – Arlete.

    numa voz baixa, cansada, que parece ter chegado às suas cordas vocais depois de peregrinar, sozinha, por longas distâncias e por tempos imemoriais.

    – Prazer.

    digo-lhe.

    – O meu nome é Serafim.

    E, enquanto meus olhos continuam detidos por aquela figura, os olhos de Arlete, por sua vez, voltam a emular os olhos de uma estátua.

    Penso em quanto ela faz recordar-me de minha avó, que em seus últimos anos de vida olhava-me sem me notar, pois o Alzheimer fizera com que ficasse sem memória, de modo que, aos olhos dela, eu ou qualquer outra pessoa da família éramos sempre estranhos, recém-chegados ao seu convívio. Esquecidos por sua memória, já devíamos estar mortos para ela há muito tempo.

    No dia em que ela veio a falecer, o primeiro pensamento que tive, ao saber de sua morte, foi imaginar que horrível solidão deveria ser morrer daquela maneira, sentindo-se cercada por estranhos, em um mundo onde a falta de memória eliminara de seu convívio todos que ela conhecia: família, amigos.

    (que morte não é solitária?)

    Essa lembrança faz meus olhos marejarem.

    (– Como a senhora está, vó?

    – De passagem por essa vida.)

    Pego um lenço que trago no bolso da calça e enxugo os olhos. Uma lágrima cai sobre a foto que eu havia retirado de dentro da caixa e colocado sobre a mesa, molhando-a um pouquinho. A imagem do mar, na foto molhada pela lágrima, parece agora ganhar movimento, cheiro.

    Na minha frente, Arlete ainda está envolta, como minha avó vivera em seus últimos anos de vida, na invisível redoma do Alzheimer, isolada de tudo e todos ao seu redor.

    Ao menos suas lágrimas parecem ter cessado de escorrer. Forçando um pouco meus olhos, consigo notar o tracejado que as lágrimas, ao secarem, deixaram nos seios de sua face. São marcas sutis, ainda mais se comparadas às rugas que vincam a pele de seu rosto. Ambas, por certo, são testemunhas das mesmas dores; de todas as dores que, à maneira de um cinzel, esculpiram aquele ser diminuto, curvado, sentado à minha frente, cujo olhar, de tão distante, parece separado de mim por uma fronteira de muitos anos.

    Sinto-me tão pequeno diante de toda a história que deve comportar essa mulher. Imagino como seria fascinante se pudéssemos colocar uma agulha de vitrola para correr sobre os sulcos de sua pele vincada e ouvir tudo que estaria registrado naqueles baixos relevos.

    A casa dela, provavelmente, deveria ser repleta de retratos dispostos pelas paredes, em álbuns ou mesmo em caixas. Sempre gostei de explorar a casa das pessoas mais velhas, ouvir suas histórias e, deleite supremo, vasculhar aquelas caixas de fotografias antigas, como esta que trago comigo. Aprecio reparar no que vestiam, como eram os locais que hoje conheço em épocas passadas. Sobretudo, gosto de olhar fundo nos olhos dos retratados, e procurar naqueles olhos um enredo para aquelas imagens. Nem sempre consigo: nem todos os olhos têm algo a nos dizer: alguns tanto testemunharam, que lhes falta mesmo meios para contar tudo que viram.

    É este o caso dos olhos de Arlete, e quando, mais uma vez, volto meu olhar para bem dentro dos olhos dela, percebo que aos poucos eles começam novamente a verter lágrimas.

    Quando menino, perguntei a uma professora de química se as lágrimas de tristeza tinham a mesma composição química das lágrimas de alegria. A professora, uma mulher de olhar frio e distante, não soube me responder. De seus lábios, quase imóveis, instalados naquele rosto que, de tão inexpressivo, mais parecia a parede lateral envidraçada de um edifício, ouvi apenas um:

    – Desconheço.

    Bem seco, ríspido até.

    Olhando em retrospectiva, hoje creio que ela mal sabia o que eram lágrimas. Foi minha avó que, em sua enorme sabedoria e generosidade de mulher simples, quando por mim também questionada a respeito, disse-me um dia, a fim de explicar-me seu entendimento:

    – Não saberia lhe dizer, meu filho, se as lágrimas de tristeza e de alegria teriam composições químicas distintas, mas certamente têm composições emocionais bem diferentes.

    E isso bastou para mim. Eu era então uma criança ingênua, um menino.

    Tomo as mãos de Arlete com as minhas e passo a acariciar a pele muito macia e fina dos seus dorsos, cheios de pintas senis.

    (como as mãos de minha avó)

    – Dona Arlete?

    chamo-a, intensificando as carícias sobre suas mãos.

    – Por que a senhora está chorando?

    pergunto-lhe, enquanto vejo escorrer aquelas lágrimas,

    – Aconteceu algo?

    que novamente descem de seus olhos, preenchendo os vincos da pele de seu rosto.

    Fui um menino sensível, chorão. A pele de meus sentimentos talvez fosse frágil demais para as tantas cercas cheias de pregos e espinhos que a vida forçou-me a cruzar desde muito jovem.

    (vida severina)

    Ao contrário, hoje, já velho, sinto como se as minhas lágrimas tivessem secado em definitivo. Vai ver é um prenúncio do momento, quiçá próximo

    (daqui a nada)

    quando eu mesmo não serei nada senão um conjunto de pele e ossos secos.

    Peço um outro café. Enquanto o garçom vai buscá-lo, volto a observar Arlete e seus olhos distantes, como se estivessem a mirar o horizonte diante do oceano.

    Minha avó foi criada durante toda a sua vida no interior. Nunca havia visto o mar, a não ser em fotografias. Na primeira vez em que finalmente pisou na areia de uma praia e aproximou-se do mar, sentiu-se desequilibrada pelo repuxo das águas. Recordo-me de vê-la então voltar as costas para o mar e, com um olhar de pânico, retornar para junto de nós. Mais tarde naquele dia, consegui convencê-la a voltar para a água, junto comigo. De mãos dadas, fomos até o ponto onde ficamos submersos até a cintura e dali voltamos. Ao abrigo do guarda-sol, ficamos eu e ela a conversar sobre a vida, pelo resto daquela tarde. O olhar de pânico dera lugar a um olhar cheio de ternura

    (um olhar-abraço)

    como que depositário de um amor generoso, sentimento que nela prevalecia, apesar de a sua vida

    (vida severina)

    ter-lhe tantas vezes querido impor outros sentimentos.

    Minha avó era cheia de histórias para contar, algumas divertidas, mas a maioria era carregada de muito sofrimento.

    (agrada-me chorar, afinal temos lágrimas pra quê?)

    De qualquer forma, eu passava horas a ouvi-la. Com um sentimento de pesar, dou-me conta agora que todas essas histórias iam deixando de ser narradas à medida que suas testemunhas foram morrendo. Sendo eu o último dessas testemunhas, também as histórias de minha avó, que trago comigo, deixarão de ser contadas quando eu partir dessa vida. E então não haverá mais ninguém para, por exemplo, contar-lhes a respeito do que vem registrado na foto que depositei sobre a mesa à minha frente: uma fotografia em preto e branco, que eu e minha avó tiramos naquele dia de praia. Nela, ambos estávamos a olhar de frente para o mar e para a lente do fotógrafo. Eu estou a sorrir, e ela

    (toda curvadinha em seu vestido de chita)

    tem um olhar distante. Nos seus olhos, vendo a imagem agora com atenção, noto que haviam lágrimas.

    No verso da fotografia, a inscrição: “1965”, seguida de “minha mãe Arlete e meu filho Serafim”, escrita por minha mãe, a identificar os personagens, o tempo e o lugar: “na primeira ida de ambos à praia”, registrados por meio daquela velha fotografia.

      

  • Eva

    janeiro 21st, 2016

    Logo daqui a uma hora, será oficialmente amanhã: outro dia. Digo “dia” apenas para fins de calendário, pois, ao que parece, a noite é quem ainda me fará companhia pela madrugada adentro, até que os primeiros raios de um sol incerto(vai que o dia de fato amanhece nublado…)

    venham iluminar a janela do meu quarto, como uma luz avistada ao final de um longo e escuro túnel.

    (mas quando nos deslocamos dentro de um túnel, vamos ao encontro da luz – aqui estou parada: a luz é que vem ao meu encontro; ela é que está no controle – não eu. Isso deveria me tranquilizar?)

    Serei eu quem essa luz encontrará, ou será aquele.., aquela

    (ou aquilo?)

    que ao final desta longa noite, feita ainda maior

    (é-nos tão relativa a perspectiva do tempo)

    pelas horas em vigília, sobrar de mim?

    Durante o dia, o silêncio é-me tão raro,

    (quase inexistente de fato)

    à noite, embora ele me circunde, esteja ao meu redor, quando sofro de insônia ele não está dentro de mim. É como se meu corpo fosse mergulhado em um mar de águas escuras e calmas, deixando minha cabeça

    (que não silencia)

    à mostra, por sobre a superfície, a lutar para manter-se à tona, à semelhança da cabeça de um náufrago, que, à noite, olha fixamente as estrelas no firmamento, acreditando, com certa resignação,

    (eis que não lhe resta mais nada em que acreditar: a morte está à espreita, pode senti-la bem próxima, como quando alguém toca-nos no ombro)

    que aquela será a última imagem que verá em vida.

    Quem dera eu poder silenciar minha mente, submergir neste mar: adormecer. Mas minha mente e o sono

    (esse mar)

    parecem imiscíveis.

    Houve um tempo, num passado não tão distante, em que o amanhecer era-me anunciado pelo canto dos pardais, que, mal o sol nascia, vinham fazer festa no cipreste que existia aqui em frente à janela do meu quarto.

    (derrubaram-no)

    Hoje o dia chega sem festa – apenas os ruídos da cidade vêm despertar-me.

    (adormeci?)

    Ainda há pouco, antes de deitar-me, enquanto banhava-me, ao abaixar-me para pegar o sabonete, que caíra no chão do box do banheiro, notei as marcas que o elástico da meia-calça havia deixado na parte superior da pele de minhas coxas.

    (pareciam cicatrizes

    (em brasa)

    provocadas por ferro quente)

    Podia-se ver, no baixo relevo encarnado,

    (que se assemelhava a uma ferida aberta)

    perfeitamente, os contornos barrocos da renda que ornamentava o elástico da meia-calça.

    Peguei o sabonete, com ele enchi a bucha de espuma e iniciei uma vigorosa esfregação, seguindo todo o contorno das marcas deixadas pelo elástico da meia-calça, em volta de minhas coxas. Queria livrar-me daquelas marcas, mas tudo que consegui foi torná-las ainda mais evidentes sobre a minha pele. Doíam como uma tatuagem recém-feita.

    (à dor emocional veio juntar-se a dor física)

    As lágrimas do chuveiro, misturadas às gotas de meus olhos, caiam sobre o piso frio do banheiro, reproduzindo o som que muito me lembrava o da chuva

    (fria)

    que caía sobre a cidade, no final daquela tarde em que,

    (encharcada)

    após ter enfrentado todo o longo itinerário percorrido pelas duas conduções que eu tomara para ali estar, tendo antes pensado em desistir,

    (a todo momento pelo caminho)

    bati à porta da clínica médica e pela última vez respondi:

    – Mário.

    Ao perguntarem-me, lá de dentro:

    – Quem é?

    Ali, naquele lugar, decorado de maneira impessoal, fria,

    (além de minha sombrinha, que tinha uma vareta quebrada, e que lá esqueci)

    deixei todas as minhas economias. Para trás, também ficaram um passado, uma história, uma identidade, que, à toda evidência, não se mostravam verdadeiros

    (legítimos)

    perante quem eu me sentia de fato.

    Quando tive alta, no dia seguinte àquele em que lá chegara, vesti-me com a única troca de roupa que levara comigo, dentro de um saco de lixo de plástico preto. Parada ali diante do espelho, no quarto de repouso da clínica, não vi mais refletida quem eu era.

    (e quem eu era?)

    Quando, nesse dia, a enfermeira entrou no quarto, vestindo um uniforme branco, que quase não contrastava com sua pele alva como um papel de arroz, trazendo-me o prontuário com o qual eu teria alta, chamou-me:

    – Senhor Mário?

    No que fiquei alguns segundos, minutos… não sei dizer,

    (é-nos tão relativa a perspectiva do tempo)

    a fitá-la, sem saber o que responder.

    Não que meu nome tivesse mudado: continuava a chamar-me Mário. Contudo, mais do que nunca, alguém chamar-me por esse nome afigurou-se-me descabido, algo ofensivo até.

    Após alguns segundos, minutos… não sei dizer,

    (é-nos tão relativa a perspectiva do tempo)

    pedi-lhe:

    – Pode me chamar de Eva.

    A enfermeira então assentiu com a cabeça, silenciosamente,

    (o silêncio impalpável daqueles que não estão mais entre nós)

    e entregou-me o prontuário.

    Assinei-o, terminei de me vestir

    (um bustiê, uma saia plissada, meia-calça, sandálias de salto alto e, na cabeça, uma diadema)

    e saí pela porta como que a renascer, trazendo no rosto a expressão serena de quando morremos.

    (e não a expressão de medo de quando nascemos)

    Já em casa, após o banho, tendo desistido de livrar-me das marcas em minhas pernas, deitei-me: precisava descansar. Mas se no tempo em que estivera internada na clínica, graças aos sedativos que me foram prescritos, eu conseguia adormecer com facilidade, dormir agora parece uma batalha. Sinto-me amedrontada como uma criança abandonada à noite em um parque infantil deserto, a observar um carrossel que gira desgovernado. É minha cabeça a girar, penso.

    (não reconheço o olhar dos cavalinhos: parecem perdidos, distantes, como o olhar das gentes na multidão)

    Minha cabeça dói, meus músculos doem, meus ossos também. Após ter tentado, em vão, várias posições para dormir, eis que ao deitar-me de bruços, pelo menos consigo aliviar o incômodo que me causavam as grandes asas de borboleta, feitas de acrílico púrpura, salpicado de bolinhas brancas, que me foram implantadas no alto de minhas costas, por entre as omoplatas.

    A julgar pela luz do sol que entra pela janela, está a amanhecer, já é outro dia. Não sei quem sou.

    (ou o que restou de mim)

    Sei apenas que não sou mais quem eu era.

    (e quem eu era?)

    Os ruídos da cidade invadem meu quarto, assim como antes o invadia o canto dos pardais.

    (adormeci?)

    Abro a janela, miro o sol a nascer por detrás dos prédios e resolvo estrear minhas novas as as.
      

  • janeiro 11th, 2016

    …despertado por uma canção de ninar,
    passou o dia a sonhar acordado…

       

  • Dordolhos

    dezembro 31st, 2015

    Aos dias seguiam-se noites, e a estas seguiam-se outros dias, num ciclo que parecia não ter mais fim. Dentro daquele pequeno cômodo, cercado de paredes de tijolos por todos os lados, exceto pela parede de vidro bem à sua frente, Dordolhos chegava a perceber algo dessa alternância entre dias e noites, mas não pela simples variação entre luzes e sombras e vice-versa. Havia, de fato, períodos de maior luminosidade em que, para o outro lado da parede de vidro, acorria um grande número de pessoas; e outros em que estas sumiam de todo, e a única movimentação que Dordolhos podia então acompanhar, na escuridão que se formava ao seu redor, era a de um senhor que volta e meia passava caminhando do lado de fora daquela parede de vidro, com uma lanterna acesa na mão. Quando ele vinha, mirava a luz da lanterna através da parede de vidro, fazendo-a percorrer o chão escuro daquele cubículo, até encontrar com os pés de Dordolhos, e dali fazia-a regressar. Homem e lanterna depois seguiam pelo corredor, deixando para trás treva tamanha, capaz mesmo de tornar indistintas, aos olhos de Dordolhos, as quatro paredes – três de tijolos e uma de vidro – que a envolviam. Nem ela nunca soube dos olhos dele, nem ele chegou a algum dia saber dos olhos dela. Dordolhos não era seu nome de batismo – na verdade, ignorava-o. Na sua infância, certa vez, acometida por uma grave conjuntivite que demorou semanas para sarar, acabou apelidada de Dordolhos pelos meninos de seu bairro, e o apelido logo depois apoderou-se de seu nome, e assim, como Dordolhos, ela passou a ser chamada daí em diante.

    Única filha de um pai pedreiro e de uma mãe dona de casa, Dordolhos viu-se órfã de ambos, ainda muito menina. Seu pai e sua mãe morreram em condições até hoje não explicadas. Saíram uma noite para ir ao culto da igreja, deixando a pequena Dordolhos em casa, na companhia de sua avó materna, Dona Eulália, e nunca mais voltaram. Ao acordar na manhã seguinte àquela noite, a menina procurou por seus pais e foi avisada por sua avó, em prantos, que eles haviam partido para um lugar distante e que demorariam a voltar. Passaram-se então dias, meses e depois, finalmente, anos, num tempo tão longo que lhe pareceu não ter mais fim, e nada de seus pais retornarem. 

    Na manhã seguinte ao desaparecimento de seus pais, com seus olhos fixos, a mirarem o nada através da janela do barraco, e tendo seus cabelos ligeiramente balançados por uma brisa morna que por ali entrava, Dordolhos viu seu ser tomado por um sentimento de abandono, de solidão. Com o passar do tempo, resignou-se.

    Graças à solidariedade de alguns vizinhos e de Dona Eulália, que acabou por adotá-la, a menina sobreviveu. Dias depois do desaparecimento de seus pais, Dordolhos já estava morando com sua avó, no barraco em que esta residia, localizado num bairro não muito distante daquele onde a menina antes vivera com seus pais. O desaparecimento destes era, aliás, assunto proibido na casa de sua avó e mesmo naquele bairro. O silêncio, tal qual um sudário que encobre um cadáver, cobria a verdade por trás do misterioso sumiço, impedindo que lhe acessassem.

    Certo dia, quando Dordolhos já era mulher adulta, uns homens vieram bater à porta do barraco onde ela ainda morava com sua avó. Ficaram pouco tempo e em seguida partiram, levando Dona Eulália com eles. Nem ela nem sua avó esboçaram nenhuma reação: era natural desaparecer: não se sabia de ninguém que tivesse morrido por aquelas bandas: as pessoas simplesmente desapareciam.

    Mas ao contrário do sol, quando ao final do dia, põe-se no horizonte, para no dia seguinte ressurgir do lado oposto do mesmo horizonte, não havia retorno para aqueles que dali desapareciam – simplesmente nunca mais voltavam e deles jamais sabia-se notícia alguma.

    Então, depois de levarem sua avó, Dordolhos passou a morar sozinha no barraco. Seu sustento tirava dos bordados que fazia e depois vendia para suas vizinhas. Nunca chegara a desbravar a cidade para além dos limites do seu bairro, uma enorme favela que crescia sem parar, às margens de uma movimentada rodovia, que cruzava uma área da cidade tida por nobre.

    Anos depois, numa manhã de inverno, em que um forte nevoeiro baixara sobre o bairro, atrasando o surgimento do sol e com isso aumentando a sensação de frio e desamparo dos moradores daquela comunidade, Dordolhos, então já uma velha, acordou assustada ao som de marretas e bate-estacas. Ignorando a presença dela ali dentro, uns homens puseram uma das paredes do barraco abaixo e, no seu lugar, instalaram uma grande vidraça, que, tal qual uma vitrine, foi limpa e polida com esmero. Todas as demais saídas do barraco, basicamente uma janela e uma porta, foram vedadas com tijolos. Só um pequeno orifício, suficiente apenas para a passagem de um prato de comida, foi deixado aberto na parede. Depois desse ocorrido, através dele, de fato, três vezes ao dia, e uma vez à noite, alguém que Dordolhos não conhecia nem sequer pelas mãos, uma vez que estas estavam sempre envoltas em luvas cirúrgicas, fazia passar por ali um prato de comida e alguma bebida, em geral apenas água.

    À frente da vidraça que substituíra uma das paredes do barraco, agora passam homens, mulheres, crianças e velhos, todos a depositarem olhares curiosos, entediados, cheios de pena ou mesmo aversão, sobre aquela mulher velha, sentada encolhida do outro lado da parede de vidro, que, pela perspectiva deles, de lá de fora, não era nada senão mais uma mercadoria exposta numa vitrine, assim como tantas outras do grande ‘shopping center’ construído no entorno do barraco de Dordolhos, e que por fim acabou aprisionando-a, ali dentro, como um animal enjaulado, fazendo dela, depois disso, uma atração para os frequentadores do grande centro de compras, os quais, olhando através daquela vitrine, tinham a oportunidade de ver o exemplo vivo de um ser humano excluído.

      

  • Ao fim e ao cabo

    junho 22nd, 2015

    Ao apoiar o tronco sobre o parapeito da janela do seu apartamento, no quinto andar, Aldo deitou o olhar sobre a rua lá embaixo, tomada de pessoas a irem para todas as direções e virem de todos os lados. Nenhum rosto lhe era familiar: uma multidão de anônimos, que Aldo acompanhava com os olhos. Aqui e ali, ora um, ora outro, ele selecionava, em meio à multidão, um alvo para o qual apontava o revólver que trazia na mão direita. Primeiro, mirou uma mulher que caminhava com uma criança ao colo, mas, mal tinha lhes apontado a arma, perdeu-as de vista. Depois, seu alvo foi um jovem com ar de parvo, com um boné virado para trás sobre a cabeça, que caminhava apressado por entre aquele mar de gente, que por fim também acabou por engoli-lo, fazendo-o sumir do alcance do olhar e da mira do revólver de Aldo. Estes então foram ao encontro da figura de uma senhora, bastante idosa, que caminhava pé ante pé, com uma bolsa pendurada ao braço. A velha senhora parou em um ponto da calçada, em frente ao cruzamento, a fim de aguardar a abertura do sinal para os pedestres. Enquanto esperava, ela olhou ao seu redor e para o céu, seguindo à risca o velho hábito de conferir se o tempo ia bem ou se haveria risco de chuva para dali a mais tarde. 

    Nisso, seus olhos encontraram-se com os de Aldo e, logo em seguida, com a arma que ele empunhava, a mirar-lhe bem no meio da tes

    Créc!

    Ouviu-se um clique partindo da arma e depois 

    Créc!

    outro e 

    Créc!

    mais outro: Aldo tentava atirar, sem êxito. O revólver insistia em falhar.

    Acreditando que, ao sacudir a arma, na vã tentativa de dispará-la, Aldo estava a acenar para ela, a velha senhora retornou um gentil aceno para ele. Ao fazê-lo, ela trazia no rosto o esboço de um sorriso terno e doce como o de um bebê. 

    Bam!

    O revólver enfim disparou.

    No mesmo instante, o sinal do cruzamento abriu, e as pessoas que ali esperavam seguiram adiante.

      

  • Madrugadas sem orvalho

    junho 7th, 2015

    Maria era o seu nome de batismo, aquele que, junto ao seu sobrenome, estava registrado em seus documentos. Contudo, no seu local de trabalho, no caixa à entrada dos sanitários da rodoviária, nenhum  dos clientes que por ali chegavam interessava-se por saber o nome dela, que assim passava incógnito mesmo ela trazendo ao peito um crachá com sua identificação. À toda evidência, aqueles clientes mal davam pela própria existência de Maria, pois sua presença ali nem tampouco era percebida para além da função que desempenhava: receber, das mãos dos usuários dos banheiros feminino e masculino, aquelas uma ou duas moedas que, invariavelmente, completavam o módico valor necessário para que pudessem fazer uso dos mictórios lá dentro, a fim de dar satisfação às suas necessidades mais básicas, e não raras vezes, quando ali chegavam, já bastante urgentes.

    Ela trabalhava no turno da madrugada, período de menor movimento na rodoviária e, por conseguinte, nos sanitários. Para distrair-se, passava as horas a tricotar uma blusa de lã, a qual, uma vez pronta, Maria cuidava de desfazê-la por completo, e depois novamente tricotá-la, e assim por diante, num ciclo sem fim, repetido semana após semana, tendo por produto final e efêmero sempre uma blusa do mesmo modelo e cor que a anterior.

    Em geral, por faltar condicionamento de ar àquele recinto, Maria não sentia necessidade de usar, quando no trabalho, nenhum tipo de abrigo contra o frio, daí que o ato repetitivo de tricotar e, depois de pronta, desmanchar a blusa era-lhe não mais do que um passatempo, a auxiliá-la a tornar suportáveis aquelas longas e, em geral solitárias, horas noturnas passadas ali no caixa à entrada dos sanitários. Esse objetivo sobrepunha-se ao de fabricar um artigo de vestimenta que pudesse ser-lhe útil. Embora, de fato, tivesse muito poucas roupas, estas eram-lhe suficientes para abrigar seu corpo. Em sua idade, não detinha vaidade para vestir-se para outra função senão simplesmente proteger seu corpo da nudez e, eventual e muito raramente, também do frio.

    Contudo, numa noite em que por ali baixou um frio que, à Maria, pareceu demasiado intenso e inesperado, dado que era novembro, portanto um mês de clima normalmente quente, ela acabou pega desprevenida, e assim, para aquecer-se, vestiu a blusa que tinha acabado de finalizar, e que ainda nem tivera tempo de iniciar o desfazimento. Nisso, seu crachá de identificação acabou encoberto, algo que era contra as regras da empresa que a empregava, mas cuja infração tinha remotas chances de ver-se acusada, dado que, durante as madrugadas, Maria em geral e praticamente trabalhava sob sua única supervisão.

    Era uma blusa de lã comum, num azul-marinho que realçava os cabelos grisalhos de Maria, conferindo-lhes uma aparência um pouco mais viçosa para aqueles fios, em geral tão opacos quanto a vida daquela de cuja cabeça pendiam.

    Alta madrugada, um senhor aproxima-se do balcão e, assim como faziam todos que para ali iam, deixa cair sobre a mão direita de Maria uma moeda, no exato valor necessário para franquear-lhe o acesso ao banheiro masculino.

    Quando a mão direita de Maria ainda estava a sentir a fisgada do frio metal na pele da palma de sua mão, um:

    – Qual o nome da senhora?

    surgiu da boca do homem, aquecendo os ouvidos de Maria. Surpresa, ela levantou a cabeça, que vinha em geral cabisbaixa, e viu diante de si um distinto senhor de meia idade, cujos cabelos, grisalhos assim como os dela, vinham presos em um rabo de cavalo que descia até o meio de suas costas, formando o efeito como de uma pluma, daquelas que Maria via aplicadas a exuberantes fantasias de Carnaval, cujos desfiles, em fevereiro, ela acompanhava pelo pequeno aparelho de televisão, em geral ligado para a audiência de ninguém, ali sobre o balcão. Ante o silêncio de Maria, mas ainda interessado na resposta, ele:

    – O nome da senhora?

    voltou a indagá-la, desta vez modulando a voz para um tom ainda mais brando, que a ela pareceu aconchegante como o deitar da cabeça sobre o travesseiro ao final do dia.

    (no caso dela, ao final da noite)

    Como que hipnotizada, Maria continuava a depositar um olhar lânguido por sobre aquele homem, de cuja cabeça brotava aquele exuberante rabo de cavalo de fios grisalhos. Finalmente, após alguns instantes de torpor e paralisia, conseguiu responder-lhe, num quase balbucio:

    – Meu nome… obrigada.

    Resposta que, num primeiro átimo de segundo, causou ao homem algum espanto, dado ser um tanto inusitada diante da pergunta que ele havia posto. 

    (ela chama-se Obrigada?)

    Perguntou ele, a si próprio, mentalmente.

    (estranho)

    Superado o estranhamento inicial do homem diante da resposta de Maria, ele, candidamente,

    – Prazer.

    apresentou-se a ela:

    – Meu nome é Gonçalo.

    E eis que aquele homem, que até instantes atrás era para Maria apenas o frio do metal de uma moeda a cair sobre a palma de sua mão direita, tornou-se depois uma voz, daí foi-se materializando na figura de um senhor de meia idade, e então, finalmente, para a de um senhor de meia idade com um enorme e exuberante rabo de cavalo, a prender longos fios de cabelos grisalhos à sua cabeça, agora tinha um nome:

    ‘Gonçalo’

    que, se não era um nome que Maria considerava propriamente bonito, tornou-se sensual

    (a sensualidade de um anjo)

    na voz grave, porém cândida, daquele senhor à sua frente.

    Gonçalo sorriu para ela e adentrou o sanitário masculino, onde ficou por alguns minutos. Passados estes, estava ele novamente diante do balcão à entrada, onde Maria havia-o recebido. 

    Nem ela nem mais ninguém estava lá: terminado seu turno, Maria partira mesmo antes daquele ou daquela que a substituiria naquele posto chegar para ocupá-lo no turno seguinte.

    (ela não era obrigada)

    Havia sobre o balcão, e isto Gonçalo notou, logo antes de dali partir, um pedaço de papel higiênico, daqueles ordinários que eram dados aos usuários daqueles sanitários, mas que chamou-lhe a atenção pois no papel vinha escrito seu nome: Gonçalo. Ele então tomou o papel nas mãos e, ao abri-lo, viu, numa caligrafia esforçada, uma mensagem que, como toda mensagem escrita, carregava um pouco da impossibilidade de uma palavra falada, a dizer-lhe:

    ‘Obrigada por perguntar-me meu nome’

    seguida, logo abaixo, de uma assinatura em letra minúscula:

    ‘maria’

    a informá-lo que Maria era, portanto, o nome da mulher que, antes ali, gentilmente o recebera.
      

  • As rosas não falam

    abril 29th, 2015

    Seus cabelos grisalhos, que no passado chegaram a ser totalmente brancos, ostentavam agora exuberantes tons e sobretons de roxo e viviam presos em um coque, no alto da cabeça, que, visto a uma certa distância, lembrava um botão de rosa, imagem que determinadas percepções costumam associar a uma vida ainda por ser vivida. 

    Diz-se, metaforicamente:

    – Aquela criança ainda é como um botão de rosa. Um dia há de desabrochar, tornando-se, enfim, um adulto bem sucedido.

    Mas a dona daqueles cabelos em tons e sobretons de roxo, presos em um coque no alto da cabeça, estava bem distante de lembrar algo próximo de uma vida ainda por desabrochar, pois, aos 88 anos, Milagres era, sim, exemplo típico de uma vida às voltas com o seu crepúsculo. Julgava mesmo ter vivido até demais, pois, quando ainda bebê, chegara a ser desacreditada por um médico que, pegando nas mãos de sua mãe, pondo-as juntas e elevando-as à altura dos olhos, como numa prece, comunicou-lhe, numa voz solene e fria:

    – Creio eu que sua filha deverá viver só mais uns dois dias.

    No que a mãe de Milagres, ao ouvir isso, olhou o médico fixamente nos olhos, desviando-os por ligeiros instantes para olhar a pequena criança, magra devido à desidratação, deitada no Moisés. Então respondeu-lhe, sem dizer palavra nenhuma, fazendo uso apenas da silenciosa linguagem universal das lágrimas, que diz muito sobre nossas alegrias, ou, no caso dela, enorme tristeza, sem por vezes recorrer a palavra nenhuma.

    Passados os dois dias previstos pelo médico, para a sobrevida da pequena Milagres, a morte não veio buscá-la, nem o fez depois. Contra todas as expectativas, ao menos aquelas do médico, Milagres sobreviveu e cresceu 

    (desabrochou) 

    para tornar-se uma jovem robusta, cuja alegria de viver em nada parecia trazer o registro daquele passado que quase lhe surrupiara o futuro.

    Aliás, foi graças, em parte, a essa alegria, que Milagres conquistaria Antenor, homem de 40 anos com quem ela viria a se casar aos 30 anos, idade em que a maioria das mulheres de sua família já estava casada, tendo inclusive dado à luz ao segundo ou terceiro filho, daí porque, à época, antes de Antenor aparecer na vida de Milagres, sua mãe, tias e primas consideravam que ela já estava fadada a viver solteirona pelo resto da vida.

    Seguindo a tradição dessas mulheres de mesmo sangue que o seu, Milagres, mesmo aos 30 anos, casou-se virgem. Uma vez casada, porém, a alegria que cultivava no seu modo de viver foi aos poucos minguando, pois Antenor punha-se a chorar todas as vezes em que iam para a cama. Acabava então no colo de Milagres, que aí o acolhia à maneira de uma Pietà. Isso desde a noite de núpcias. No tempo em que viveram juntos e casados, nunca falaram a respeito das causas desse comportamento. Acabou que o mistério sobreviveu a Antenor, pois este, vitimado por um repentino ataque cardíaco, veio a falecer dois anos após o casamento com Milagres. Ela, traumatizada pela experiência, nunca mais voltou a se casar e nem a estar com nenhum outro homem.

    De rabo de ouvido, escutou uma vez suas primas a cochicharem que ela:

    – É um botão de rosa que murchou antes de desabrochar. 

    Fazendo uma maldosa referência à situação de Milagres, que unia viuvez e virgindade em uma mesma pessoa.

    A bem da verdade, Milagres nunca mais quis estar com nenhum outro homem por sentir-se em débito

    (e portanto culpada)

    com uma regra soberana das mulheres de sua família, a qual obrigava, cada uma delas, a casar-se cedo 

    (o que ela já não tinha cumprido)

    e viver com o mesmo homem até a morte separá-los, e daí em diante, se acaso a sobrevivente fosse a mulher, nunca mais se casar, vivendo como uma solitária viúva até morrer.

    Felizmente, para Milagres, Antenor não deixou apenas saudade, mas também uma grande herança, que permitiu a ela viver com razoável conforto mesmo após a partida dele.

    Mas se a herança era grande, também o era a saudade que ela sentia de Antenor. Para lidar com ela e também com a solidão, Milagres espalhava fotos deles dois juntos por toda a casa. Com o mesmo fim, procurava manter sua rotina a mais próxima possível de quando seu marido ainda era vivo. À noite, por exemplo, como alguém que continua a caminhar com o guarda-chuva aberto mesmo depois de cessada a chuva, Milagres continuava a dormir do mesmo lado da cama de casal, o direito, que sempre ocupara quando Antenor ainda era vivo. Nunca foram de dormir entrelaçados: Antenor era um homem calorento; Milagres era friorenta, mas preferia aquecer-se na manta Parahyba a buscar o calor junto ao corpo de seu marido.

    No lado da cama que Antenor antes ocupava, há agora um pequeno declive, deixado ali, como uma sequela na estrutura do colchão, pelo peso do seu corpo. No meio daquela depressão, há uma arca, dentro da qual estão depositadas as cinzas de Antenor. Aquele lado da cama era, portanto, para Milagres, como que um altar fúnebre em memória do falecido.

    Tinha sido o último desejo de Antenor, ainda em vida, ser cremado após a morte e ter suas cinzas jogadas por sobre um campinho de várzea, a alguns quarteirões da casa onde moravam, mas Milagres, que nunca tinha gostado de ver Antenor deixá-la sozinha, todos os domingos pela manhã, para ir àquele campinho jogar bola com seus amigos, decidiu não atender essa segunda parte do pedido. Não cumprir o último desejo em vida de Antenor, para após sua morte, de certa forma, ajudara Milagres a ver finalmente cumprido o seu próprio, único e singelo desejo: ter Antenor ali ao lado dela também nas manhãs de domingo.

    Certo dia, logo cedo, ao despertar, Milagres estendeu seu braço direito para o lado, jogando-o sobre a parte da cama, que antes era ocupada por Antenor, e nisso, fez tombar a pequena arca com as cinzas, no que estas acabaram espalhando-se sobre aquele local do lençol onde havia o declive.

    As cinzas de Antenor, esparramadas ali sobre o lençol, naquela parte onde o colchão formava um baixo relevo do tamanho do seu corpo, lembraram a Milagres o pó de café que ficava depositado no fundo do coador de pano utilizado por sua avó materna. 

    Na sua infância, quando de férias, Milagres costumava passar alguns dias na casa da avó. Juntas, acordavam bem cedo, logo que os galos da vizinhança começavam a cantar, como se quisessem, com seu canto, despertar o sol de seu sono.

    Enquanto punha a mesa, Milagres via sua avó preparar o café, ficando inebriada pelo aroma que tomava conta da cozinha. O cheiro daquele café preparado em coador de pano acabou registrado em sua mente, por toda a vida, como o cheiro das férias que, em sua infância, passava no interior.

    Do pó de café, uma vez utilizado, sua vó fazia adubo, jogando-o por entre os xaxins das samambaias, que ornamentavam a ampla varanda na frente da casa dela. Milagres, dali do entreportas, acompanhava tudo com curiosidade. Sua avó uma vez disse-lhe:

    – O pó do café faz com que elas cresçam mais frondosas.

    Assim, em poucas palavras, de modo muito objetivo, como era de seu hábito, a avó justificou o porquê de jogar o pó usado do café dentro dos xaxins das samambaias.

    E, de fato, as samambaias de sua avó tinham mesmo uma vitalidade surpreendente: pareciam estar ali desde os primórdios da Terra.

    Despertada dessas lembranças, que por instantes tomaram sua mente de assalto, e de volta ao presente, Milagres, com certa indiferença, conseguiu, enfim, recolher as cinzas de Antenor, envolvendo-as no lençol. Levantou-se e, com o lençol enrolado a envolver as cinzas, caminhou até a janela do quarto. Lá, debruçou-se sobre o peitoril e, com os braços estendidos para fora, sacudiu as cinzas, que, ante a completa ausência de vento, acabaram por ir-se depositarem sobre o solo do que um dia tinha sido um jardim, e onde agora havia apenas terra nua, ressequida, sem nenhuma vegetação.

    Depois do falecimento de Antenor, Milagres foi abandonando, um pouco mais a cada dia, a idéia de cuidar de qualquer vida que não a sua própria. Nesse processo, foi-se desinteressando, entre outras coisas, por cultivar o jardim de rosas, de variadas cores, que alegravam a entrada da casa quando Antenor ainda era vivo, no que sempre recebia a ajuda do marido, que, aliás, parecia nutrir maior amor por aquelas flores que por sua esposa. Com o abandono, as roseiras foram cedendo lugar ao mato e, num ano de muito pouca chuva, tudo secou de vez, restando ali nos canteiros apenas palha seca. Nem mesmo desta resta agora vestígio.

    Não se sabe ao certo, mas não seria de todo absurdo especular que a adubação proporcionada pelas cinzas de Antenor, ajudada pelas chuvas frequentes que, a partir daquele dia, começaram a cair ao final das tardes, como que por um milagre, após um ano de muita seca, fizeram as roseiras voltarem a nascer, vestindo de verde aquela terra novamente. Em pouco tempo, surgiram os primeiros botões e, logo em seguida, as roseiras estavam floridas, sem que para isso tivesse sido necessária qualquer interferência de Milagres, outra que não ter jogado ali as cinzas do seu falecido marido, e depois lá esquecê-las. 

    Um senhor que passava por ali, em frente à casa de Milagres, todas as manhãs, no caminho para o seu trabalho, ao notar as roseiras frondosas, no meio das quais rosas multicoloridas floresciam, que em poucos dias haviam dominado a frente da casa, e como apreciador de flores que era, certa vez, numa manhã ensolarada, tomou coragem e tocou a campainha da casa de Milagres. Estava curioso para saber quem era a responsável 

    (assumia que fosse uma mulher)

    por tão belas rosas a florirem naquele jardim.

    Tocou a campainha uma, duas, três vezes e ninguém atendeu.

    Pensou:

    (– Vai ver ainda dorme.)

    Depois, disse baixinho:

    – Não quero incomodar o sono de ninguém.

    E, em seguida, continuou seu caminho, como quem diz:

    – Volto outro dia.

    E, de fato, assim o fez. No dia seguinte, no mesmo horário, nova tentativa na campainha: uma, duas,

    – Pois não?

    no segundo toque, Milagres enfim atendeu.

    – Bom dia.

    Disse-lhe o homem, no que ela, com a voz rouca de quem acabara de acordar, respondeu:

    – Bom dia. Em que posso ajudá-lo?

    E ele, nervoso:

    – Eu passo aqui nesse horário, diariamente, e dias atrás notei essas rosas incríveis aqui no jardim em frente à casa da senhora.

    – Rosas!?

    – Sim. Rosas lindas, multicoloridas como uma colcha de retalhos.

    Milagres desconhecia que aquelas rosas a que o senhor ao seu portão se referia existissem. Na sua vida reclusa, pouco saía à porta da frente e, quando o fazia, a fim de ir ao banco ou para comprar algo no mercado, ou os dois, caminhava cabisbaixa

    (como uma flor murcha)

    indiferente a tudo e a todos ao seu redor.

    – Queria dizer-lhe apenas que a senhora está de parabéns. Essas rosas em seu jardim são uma injeção de alegria nessa vizinhança tão triste.

    Um tanto sem jeito, Milagres agradeceu-lhe:

    – Obrigada. 

    E, algo intrigada, perguntou:

    – Qual o nome do senhor?

    E ele respondeu:

    – Antenor.

    Mal o homem terminara de pronunciar o: 

    – Antenor.

    Milagres sentiu sua alma, de um instante para o outro, como que a crispar-se, e um rubor subiu pelo seu rosto, tingindo-o de um vermelho vivo.

    – E a graça da senhora?

    Ele perguntou, e ao ouvir a pergunta, Milagres, ligeira, desligou o interfone, ajeitou o penhoar sobre os ombros, fechando-o na parte dianteira de seu corpo, e correu em direção à porta da frente, abrindo sua portinhola a fim  de, com os próprios olhos, certificar-se de que seus ouvidos não lhe tinham pregado uma peça: ter ouvido o nome de seu saudoso e falecido marido da boca daquele homem desconhecido, com quem falara ao interfone, afigurava-se-lhe como algo um tanto inusitado, irreal até, ainda mais porque, mesmo através do interfone, a voz daquele homem soava demasiado semelhante à voz de Antenor.

    Olhando pela portinhola, pôde ver de fato, iluminadas por um sol ainda sonolento

    (sem galos a cantarem para despertá-lo do sono)

    as roseiras, cujos caules, grossos e cheios de espinhos, terminavam em rosas das mais variadas cores

    (como uma colcha de retalhos)

    Chamou:

    – Antenor?

    E nada

    – Antenor?

    nem ninguém apareceu.


     

  • Tafetá

    março 5th, 2015

    Desde menino, sua autorização para chorar já tinha sido cassada.

    – Homem não chora.

    dizia sua mãe, reprimindo-o em tom grave, sempre que naquela época ele, fazendo bico com a boca, ameaçava cair em lágrimas, qualquer que fosse a razão. Mas há muito ele deixara de ser um menino. Ainda que seu nome de batismo, Maximiliano Pedro Pereira, tenha sido utilizado até o início precoce da idade adulta, e permanecesse em seus documentos, nada mais naquela figura, agora idosa, ali sentada envolta em um penhoar de seda, lembrava Maximiliano Pedro Pedreira: este continuava a existir apenas nos documentos. No dia a dia real, não mais. Em seu lugar, surgiu Tafetá. Dona Tafetá, senhora Tafetá, ou apenas Tafetá, não lhe importava, desde que o passado masculino fosse mantido à distância, guardado, ao abrigo de olhares ansiosos por julgarem e condenarem o que se lhes apresentasse diferente. Importava-lhe apenas o presente e sua atual condição não-masculina, embora também não totalmente feminina. O suficiente, porém, para conferir-lhe um salvo-conduto para chorar o quanto quisesse ou precisasse. E munida deste, Tafetá então chorava.

    Ali, onde então a encontramos, no pequeno quarto que, trancado, fedia à solidão por todos os lados, havia uma janela em cuja vidraça podia-se avistar uma paisagem campestre, com campos e colinas em sobretons de verde, encimadas por um céu de um azul redundante. Tafetá estava sentada numa cadeira de balanço, de frente para a tal janela. Fazia demasiado calor dentro do quarto e, para refrescar-se, levantou-se e caminhou até a janela. Ao abri-la, revelou à sua frente um enorme paredão de cimento, num tom de cinza chumbo, pesado, que contrastava fortemente com o azul e os tons de verde do adesivo a imitar a paisagem campestre, que estava colado aos vidros da janela.

    Uma vez aberta, além da visão da parede de cimento logo ali, a um palmo, talvez, de distância, a janela também permitia a entrada de diversos fragmentos de conversas dos moradores dos demais conjugados de quarto e sala daquele gigantesco treme-treme: um aglomerado de pequenas quitinetes, onde residiam milhares de almas. Ao odor de sua solidão vieram juntar-se inúmeros outros odores, de tantos outros solitários como ela, todos morando ou de passagem por ali. Após respirar fundo, trazendo para dentro dos pulmões essa miríade de cheiros e fedores, sentiu-se menos solitária. Seu choro cessou e, então, fizeram-se mais evidentes, para seus ouvidos, os sons que chegavam de fora: eram crianças a chorarem alto, e adultos, baixinho. Cães a ladrarem (choravam? riam-se?). 

    Do nada, um pardal entrou voando pela janela, indo pousar sobre o espaldar da cadeira de balanço sobre a qual, antes, Tafetá estava sentada. Por alguns instantes, ficou a olhar, arisco, para Tafetá que, de súbito, fechou a janela, deixando ela e o pássaro isolados do mundo lá fora pelos vidros adesivados com a imagem campestre.

    Talvez por ter pensado ser verdadeira aquela imagem no vidro da janela, o pardal, num vôo incisivo, arremeteu-se contra ela com toda a força. Enxergara ali, provavelmente, uma rota de fuga da figura de Tafetá, que para a pequena ave bem poderia parecer ameaçadora. Tão forte fora o choque do pardal com o vidro da janela, que este chegou a trincar. O pardal, por sua vez, caiu sobre o piso laminado, a imitar madeira, e, tal qual aquele balão que avistamos ao longe, no formato de um pontinho no céu, e depois nada, também o passarinho: duas convulsõezinhas

    (um pontinho de vida)

    e depois nada: já morto estava.

    Tafetá não se apiedou do pássaro: tanta gente ela havia perdido ao longo de sua vida, mortas ou mesmo desaparecidas. Acabou criando assim um mecanismo emocional de auto-defesa, aprimorado e, enfim, cristalizado, quando da morte violenta de sua mãe, vítima de um latrocínio até hoje sem culpados identificados. A morte, para ela, equiparava-se em ubiquidade aos pardais.

    Recolheu a ave com uma pazinha, jogou-a dentro de um saco plástico de supermercado que fazia as vezes de saco de lixo, amarrou-o e arremessou-o janela afora. 

    Tafetá trabalhara toda a sua vida em uma guarita, na portaria de um grande edifício residencial, numa área nobre da cidade. Ali, sob o anonimato do vidro fumê, acompanhava a entrada e saída de moradores e visitantes que, embora passassem ao seu lado na guarita, não a viam nem percebiam sua presença ali dentro. Bastava-lhes, aos moradores e visitantes, que os portões do prédio fossem abertos ante sua simples aproximação: sendo a função bem cumprida, em nada lhes importava quem a cumpria. Dentro daquela pequena guarita, claustrofóbica, ninguém a via, mas ela via todo mundo, não apenas por estar do lado oposto do vidro fumê, mas também por meio dos pequenos monitores à sua frente, conectados a câmeras espalhadas por todo o condomínio. Dali Tafetá via sem ser vista.

    Demitiram-na no dia em que teve de sair para abrir manualmente o portão para uma moradora. O portão enguiçara e não atendia ao comando de Tafetá de lá de dentro da guarita. A tal moradora, irritada com o defeito e a demora do mecanismo, mas sobretudo assustada e incomodada com a figura de Tafetá, quando esta saíra da guarita a fim de, manualmente, abrir-lhe o portão, foi depois aos gritos pedir ao síndico:

    – Demita imediatamente aquela aberração!

    De certa forma, felizmente para Tafetá, apenas a parte em que a mulher gritou:

    – Isso aqui é um condomínio familiar!

    chegou aos seus ouvidos: ingenuamente, entendeu que estava a ser demitida por faltar-lhe o requisito para integrar um ambiente assim, já que não tinha família nenhuma: era sozinha no mundo. 

    Passados quase três meses desde esse episódio, tempo de duração de seu seguro-desemprego, Tafetá ainda não havia encontrado nenhuma outra colocação no mercado de trabalho formal. Vivia de pequenos biscates, fazendo faxina, como diarista, em algumas residências durante a semana. Mas o soldo do emprego de carteira assinada na guarita fazia-lhe falta. Morava de aluguel, e este encontrava-se em atraso há pelo menos dois meses. Tafetá estava na iminência de ser despejada.

    Um toque na campainha do pequeno conjugado de quarto e sala, e depois ouviu-se um:

    – Seu Pedro?

    e logo em seguida um novo toque da campainha, desta vez mais demorado.

    Tafetá levantou-se da cadeira de balanço, ajeitou o penhoar e foi ver quem batia à porta. Espiou pelo olho mágico e não viu ninguém.

    – Seu Pedro?

    A voz insistia.

    – Você está em casa?

    Intrigada, Tafetá abriu a porta e viu que, salvo pelo lixo depositado ali no corredor por algum de seus vizinhos, não havia mais nenhum sinal de vida humana ali fora.

    Fechou a porta, tomou uns comprimidos que guardara dentro de um frasco sobre o pequeno aparador, e voltou a sentar-se em sua cadeira de balanço, de onde continuou a fitar a janela. Mas a ao invés da paisagem campestre colada aos seus vidros, via através dela o paredão cinza do lado de fora: a janela estava aberta: provavelmente cedera ao impulso da corrente de ar que invadira o pequeno conjugado quando da abertura da porta.

    Pela janela vinha uma luz fraca, como a de um abajur. Era, na verdade, o resquício da iluminação pública que por ali entrava, luz que, lá fora, no pouco que iluminava, apenas confirmava quão em trevas o entorno vivia mergulhado.

    A luz atravessava o quarto de Tafetá e ia beijar a mão do Papa João, numa foto dele, bastante desbotada, presa à parede. O Papa, na foto, abençoava uma criança

    (uma menina? um menino?)

    que segurava a mão de uma senhora

    (talvez fosse sua mãe)

    ambas numa incontida felicidade, estado de espírito que contrastava com o ar sisudo e solene da família de Tafetá, retratada em uma foto emoldurada, presa à parede um pouco abaixo da foto do Papa, como se deliberadamente colocada ali para também receber as bênçãos do pontíficie. No foto da família: sua mãe, seu padrasto, o pequeno Maximiliano Pedro Pedreira: Tafetá, à época ainda… um menino? uma menina?

    (difícil dizer apenas pela imagem da foto) 

    Uma lágrima brotou do canto do seu olho direito. Não desceu pelo seio de sua face: ficou ali alojada, como se resistisse a cumprir seu desígnio, o fim de todas as lágrimas: chorar.

    Somente quando recebeu o impulso de outra, que vinha em seu encalço, foi que a primeira lágrima conseguiu descer, seguindo caminho até evaporar-se ao lado do direito da boca de Tafetá 

    (– Isso aqui é um condomínio familiar!)

    que naquele instante estava a emitir seu derradeiro suspiro. Tal qual aquele balão que avistamos ao longe, no formato de um pontinho no céu, e depois nada, também Tafetá: um suspiro

    (um pontinho de vida)

    e depois nada: apenas um pardalzinho morto.

    

  • Os outros também somos nós

    fevereiro 26th, 2015

    Quem de longe observasse aqueles dois homens, sentados sobre o banco da praça da igreja matriz, portando chapéus-coco sobre as cabeças e gesticulando efusivamente, poderia ser levado a crer, vendo à distância, que estavam a discutir e que seria portanto uma questão de mais hora menos hora para entrarem em briga corporal, chegando, assim, às chamadas vias de fato.

    Bastaria, contudo, aproximar-se para ver que, além de nada dizerem, os dois homens estavam na verdade distantes de algo mesmo próximo de uma desavença: ambos eram mímicos e ensaiavam uma apresentação que pretendiam fazer logo mais, num cruzamento próximo dali: eram artistas mambembes: viviam disso.

    Uma menina, vestida de bailarina, aproximou-se deles, com o olhar intrigado, como o de quem vela um sono alheio e intranquilo. Ficou por alguns instantes a observá-los, e eles, indiferentes, continuaram seu ensaio de mímica.

    A menina levantou seu pequeno corpo, apoiando-o sobre as pontas de seus pés e, sob a regência de uma música que tocava apenas em sua imaginação, começou a dançar passos de balé. Os mímicos nem ao menos a notaram, ou, se notaram, não demonstraram, pois continuaram firmemente concentrados em seu ensaio.

    Frustrada, a menina fez cessar a música em sua mente e com isso também parou de dançar.  De maneira quase irrefletida, passou então a imitá-los. Ora imitava um, ora outro, e assim conseguiu tirá-los daquela espécie de transe em que estavam metidos, fazendo-os finalmente percebê-la ali diante deles. 

    O mímico um, sorrindo, olhou para a menina e cumprimentou-a:

    – Olá, garotinha.

    Mas em resposta: 

    – …

    recebeu apenas o silêncio.

    Mímico dois então interferiu com um:

    – Como vai você, minha pequena?

    E novamente:

    – …

    nada retornou da menina, a não ser um olhar estatelado, como se surpresa, ou assustada, ou ambos, por ver-se diante de mímicos que falavam.

    Lembrou-se de sua mãe a adverti-la, pouco antes em sua casa, enquanto punha seu vestido para sair à rua:

    – Não vá falar com estranhos, menina.

    Algo que sua mãe sempre lhe dizia, ao menor sinal de que a menina fosse sair de casa, mesmo sabendo da inutilidade, ou até crueldade de tal advertência, uma vez que dirigida a alguém que, como a menina, nada podia falar: era muda.

    A estes três personagens: mímico um, mímico dois e a menina-bailarina, foi juntar-se uma mulher-placa, daquelas que, de um modo desumano, servem de suporte humano a anúncios publicitários, ficando prostradas pelas esquinas da cidade, sendo, quando muito, notadas em sua publicidade; raramente ou nunca em sua humanidade. Mas ali, aquela mulher-placa, miúda, tão pequena quanto a menina-bailarina, talvez até menor, a depender do ângulo do qual se olhava, havia sido enfim notada, fato que a deixou surpresa, assustada, ou ambos, tão acostumada havia sido à invisibilidade durante toda a sua vida.

    Mas a placa que envolvia o corpo da mulher-placa, tapando-a tanto na parte da frente quanto atrás, não tinha anúncio nenhum: estava em branco, cor esta que, involuntariamente, servia ao propósito de mimetizar sua pele, muito alva, e que se não fosse a placa estaria totalmente exposta, pois, debaixo dela, estava nua. Isso, a nudez da mulher-placa, a placa também não anunciava, mas era possível de se notar, tanto que, como já se disse, notaram-na a menina-bailarina e os mímicos um e dois. Este último estalou os dedos de ambas as mãos diante dos olhos dos demais, quebrando o incômodo silêncio que por instantes se fizera entre eles. Quis assim chamar-lhes a atenção, pois queria dizer-lhes algo. Mas ao invés de dizer em palavras, como àquela altura já era sabido que podia fazer, disse-lhes o que pretendia dizer sob a forma de gestos. Mímico um olhou-o de esgueio, questionando-o, também em gestos, sobre a mensagem que mímico um quisera transmitir.

    Ao notar, contudo, a incompreensão de mímico um sobre o significado de seus gestos, mímico dois desistiu deles e propôs em alto e bom som:

    – Que tal se trabalhássemos juntos?

    Ante tal indagação, cada um dos demais, a seu modo, respondeu com uma outra questão:

    – Como assim?

    Com efeito, essas palavras foram proferidas apenas pela mulher-placa, ainda assim bem baixinho: era bastante tímida e em geral muito calada. A menina-bailarina, por sua vez, indagou com um gesto do seu olhar; ao passo que mímico um, com gestos de suas mãos e braços. Mas tão simultâneas foram todas estas manifestações para dizer:

    – Como assim?

    que pareceram, todos os três, ter respondido em coro.

    Horas mais tarde, numa movimentada esquina da cidade, a mulher-placa, novamente prostrada, já não tinha mais sua placa em branco, nem ela estava mais nua: usava o vestido da menina-bailarina. Sobre a placa, havia uma grande flecha vermelha desenhada a giz, que apontava para a menina-bailarina dançando ali ao lado, completamente nua, exceto pelo par de chapéus-coco, emprestados pelos mímicos, cobrindo-lhe suas vergonhas de cima e de baixo.

    Hipnotizados por essa cena, ignorando por completo o anúncio da mulher-placa, que assim mais uma vez via-se invisível, os motoristas que paravam no cruzamento para aguardar o semáforo abrir, não percebiam a aproximação silenciosa dos mímicos um e dois. Estes, à maneira de gatos de tocaia, seguiam silenciosos para as laterais dos carros e, aproveitando-se da distração de alguns motoristas que, mesmo cientes da violência da cidade, mantinham as janelas de seus carros abertas, anunciavam, com as mãos imitando revolveres, gritando em alto e bom som:

    – É um assalto!

  • O grito

    janeiro 29th, 2015

    Demorei-me a entender e, quando finalmente o consegui, demorei-me ainda mais na tentativa de aceitar, e esta na verdade foi em vão, pois minha mente recusava-se a concluir como verdadeiro aquilo que meus ouvidos ouviram.
    Não sou de falar alto. A bem da verdade, mesmo falar, falo pouco e baixinho. Às vezes, só eu sou capaz de me escutar. Sempre preferi ouvir, não apenas o que os outros têm a dizer, mas também aquilo a que chamam voz interna: sou um excelente ouvinte.
    Incomodam-me sobremaneira os gritos e, se eu tenho que gritar, o transtorno é-me absoluto. Mas ali, naquelas circunstâncias, tive de fazê-lo e, assim, gritei muito e muito alto, e foi isso que custei a entender e, depois, a aceitar. Não me lembro o que gritei, pois o grito escapou-me de um modo tal, que não deixou vestígio em minha memória das palavras que usei para traduzir, sob a forma de grito, seja lá o que fosse que me impelia a gritar ali naquele momento: nem isso me lembro. Talvez a memória do grito, em si, ocorra-me ainda apenas porque minha garganta preserve o ardor e a rouquidão que o grito deixou quando de mim saiu. Estou apenas especulando. Não tenho certeza de nada. Recuso-me a tê-la: um ato de contracultura até nesse mundo em que tantos são tão seguros do que dizem, do que fazem, do que pensam…
    Será mesmo assim? Na certeza, duvido.
    Se já falava baixo, agora, com a rouquidão, minha voz mal se faz ouvir, mesmo que eu queira fazê-la alta, não consigo. Meu timbre de voz, grave, se antes servia a outros propósitos, nunca serviu para me ajudar a falar alto. Gritar, então, nem pensar: aquele grito foi, com todo efeito, uma exceção. E agora menos ainda, o que também me livra de ser envolvido em algo que, a meu ver, representa um dos maiores vícios de nossa época, que elegeu o grito como instrumento predominante de comunicação (comunicamo-nos?). Ao que parece, adotaram-no como a voz, por excelência, do espírito de nossos tempos. Talvez (especulo), isso ocorra com os tempos que correm por faltar-lhes, justamente, alma.
    Há de fato muito ruído no mundo. Tanto que, talvez, se um dia os pássaros pararem de cantar, nem vamos mais nos dar conta disso. Alguns hão mesmo de pensar que não perdemos nada, pois nunca tiveram a chance de desfrutar desse, tão simples e ao mesmo tempo tão único, prazer ao longo de toda uma vida, vida esta, toda ela, abafada pelos sons de gritos. Uma vida sem a sedução do sussurro, sem o encanto da melodia (inclusive a dos cantos dos pássaros), sem o frescor delicado do orvalho, uma vida, enfim, sem sutileza nenhuma: crua e bruta. Tanta gritaria a nos surrupiar o silêncio necessário para nossos exames de consciência. Haveria poesia no grito? Apenas perguntando, pois também para isso não tenho respostas. E ainda que as tivesse, elas provavelmente não seriam conclusivas… e, mesmo se fossem minimamente conclusivas, não seriam definitivas… e, enfim.
    Quando gritei, senti-me como de volta ao meu estado mais primevo: quando, gritando, rasguei o ventre da minha mãe ao nascer. Naquele momento, chorava também, mas o choro, ao contrário do grito, sempre foi meu companheiro, desde meu nascimento. Contudo, ele, tímido, prefere não aparecer muito em público. Costuma revelar-se apenas para mim, quando ficamos, eu e ele, juntinhos e a sós. Já chegamos ao mundo fazendo ambas as coisas: gritando e chorando. Talvez, com esse gesto, estávamos a querer que ele, o mundo, ouvisse-nos, reparasse em nossa chegada, percebesse-nos. Como nos faltavam palavras para verbalizar esse momento (éramos bebês, afinal), gritávamos e chorávamos, ou gritávamos em meio a lágrimas, ou chorávamos alto, gritando. Gritos, em geral, de algum modo servem ao propósito de nos socorrer em nossa eventual (ou, em alguns casos, nem tão eventual assim: vai ver continuamos sendo bebês) incapacidade de falar, dialogar, fazer-nos ser ouvidos, compreendidos. E amados? Talvez sim, talvez não. Não sei. E digo-lhes isso com tranqüilidade. Confesso-lhes: é-me tão mais sereno duvidar. Se essa consciência tivesse me alcançado antes, quem sabe (estou a duvidar) eu não teria gritado como gritei. Gritar, parece-me, intoxica-nos. Pode ser. Eu provavelmente estava mesmo intoxicado quando gritei. Mas do quê? Respondo-lhes, dizendo bem baixinho: não sei.

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  • Há conversas das quais não regressamos

    dezembro 30th, 2014

    Era alta madrugada e, exceto por uma única janela, todas as demais daquele velho edifício estavam apagadas: os moradores, àquela hora, dormiam sonos intranquilos, em uma quase vigília: avizinhava-se mais uma manhã de segunda-feira.
    Sob aquela solitária luz, num tom de sépia, que se avistava na fachada encardida do prédio, lá dentro do apartamento no décimo andar, Eulália, sentada de maneira comedida sobre o sofá de corvim, olhava em silêncio para Doralice, que, sentada de um modo displicente em uma poltrona de tecido puído, do outro lado da sala, esforçava-se para não errar os pontos do seu tricô; vez ou outra, era vencida nesse seu esforço por um sono que lhe pesava sobre as pálpebras, puxando-as para baixo, como o fazem as gotas de orvalho sobre as folhas da relva nas manhãs frias e úmidas de Maio. A separar as duas amigas, além de um enorme e denso
    (quase palpável)
    silêncio, apenas uma mesinha de centro, sobre a qual repousava um vasinho com margaridas de plástico, algo amareladas pelo tempo. Eulália e Doralice viam-se ao menos uma vez por semana, alternando os encontros ora no apartamento de uma, ora no da outra. Há mais de uma década elas cumpriam à risca essa rotina: era a forma que haviam encontrado de tornar suportável a velhice: compartilhar experiências a respeito de vidas que foram tão distintas. Nos encontros dos últimos anos, em pauta, uma predominância repetitiva de assuntos ligados aos percalços da idade avançada: o abandono dos filhos, as doenças da terceira idade, a saudade dos entes falecidos, dos maridos: ambas eram viúvas.
    Havia um momento, nessas oportunidades, a partir do qual as duas, quase simultaneamente, ficavam em silêncio e assim permaneciam até uma ou a outra, dependendo do lar de qual delas servia de recinto para o encontro, decidir-se por ir embora, o que poderia ocorrer dali a minutos ou horas: para isso não havia regra. Adentrar esse silêncio era a forma tácita, e muito própria delas, de darem por encerradas as conversas daquele encontro, forma esta que fora aperfeiçoada de uma maneira tal, que assim vinham agindo, quase inconscientemente, há muitos encontros. Logo, uma vez instalado esse silêncio, as únicas palavras que as amigas
    (dali a minutos ou horas)
    trocariam naquele dado encontro seriam palavras corteses de despedida, ditas sob o foco de olhares tristes, do tipo daqueles que lançamos a um amigo que parte, sendo grandes a chances de que não mais
    (talvez nunca mais)
    possamos reencontrá-lo na mesma pessoa da qual nos despedimos, ou que não reencontremos de fato.
    Tal não ocorreria novamente nessa madrugada em que as vemos juntas. Após algumas horas ali quietas, eis que Doralice, deixando de lado as agulhas de tricô e tendo um semblante cansado, haja vista o avançado da hora, anunciou seu desejo de ir-se embora:
    – Acho que já vou chegando, Lália.
    Era como Doralice chamava Eulália.
    – É cedo, Dorinha.
    Assim Eulália chamava Doralice.
    – Vou passar mais um café para você. Quer mais uns biscoitinhos de nata?
    Feita a oferta à Doralice, Eulália então ignorou um quase inaudível:
    – Não, obrigada.
    da amiga, e saiu caminhando, um pouco atrapalhada com suas pantufas, no sentido da cozinha. Com tal gesto, ela havia quebrado o protocolo de comportamento que, para aqueles encontros com Doralice, firmara-se ao longo dos anos: pela primeira vez, o silêncio não havia sido a deixa para a despedida, fato que deixou Doralice um tanto perdida, transtornada até.
    (– O que essa louca ainda quer comigo? Preciso ir embora. Já está quase amanhecendo o dia.)
    Pouco depois, já na cozinha, Eulália depositava água fervente dentro de um coador de pano, preenchido com umas três colheres de sopa de café, de onde subia um vapor impregnado com o inebriante aroma dessa bebida quando feita na hora. Eulália, ali, relembrava seus tempos de menina, no interior, quando acordava junto com sua avó, ainda bem antes do alvorecer, e ficava a vê-la preparar o café, em um coador similar àquele que então utilizava, enquanto galos cantavam lá fora, anunciando que dali a logo mais um novo dia nasceria.
    (embora nenhum galo estivesse a anunciá-lo, mais um dia estava de fato surgindo, como denunciava a luz esmaecida do sol nascente a iluminar os vidros foscos do vitrô da cozinha)
    Eulália sempre teve uma grande admiração por sua avó, pela determinação que esta, ao longo da vida, demonstrara para criar os três filhos
    (dentre os quais, o pai de Eulália)
    cuidar de seu avô, administrar com competência e austeridade um orçamento enxuto, sempre colocando suas necessidades pessoais em último plano, o que, não raras vezes, fazia com que estas fossem abortadas ainda em seus primeiros instantes de gestação na mente pouco fértil de amor próprio da sua avó.
    – O cobertor é curto, Lália.
    (a avó, a justificar-se, cabisbaixa)
    Perdia vigor, a admiração de Eulália por sua avó, quando esta era vista sob a mira exclusiva deste foco. Revoltava-a ver a mágoa profunda que essa sujeição às prioridades ou mesmo aos caprichos dos outros membros da família lhe causava. Era como se sua avó vivesse presa a um casamento de conveniência, conveniente para todos, menos para ela.
    – A vida da gente que é mulher é assim mesmo, minha filha.
    (resignava-se a avó, desviando o olhar)
    Desde muito cedo, vendo tudo isso, Eulália decidira-se por agir diferente com relação à sua própria vida. Tornara-se para ela uma questão de honra dar esse salto geracional em relação à sua avó, já que sua mãe, mesmo se o quisesse, nem sequer teria tido a chance de tentá-lo, pois faleceu ainda adolescente, logo após ter dado à luz a então pequena Eulália.
    Mas a vida, sempre ela, como sói ocorrer com todos, tinha outros planos para Eulália, bem diferentes daqueles que esta planejara e, dentro dos estreitos limites de seu mundo, até sonhara. No final, aquela menina que estufava o peito para falar de seus anseios feministas e sua ideologia libertária, acabou reproduzindo em sua vida adulta a mesma submissão aos interesses do marido e dos filhos
    (todos homens)
    que tanto condenara em sua avó paterna.
    (– A vida da gente que é mulher é assim mesmo.)
    Diferentemente de Eulália, Doralice conseguira trazer para o plano real e aplicar na prática cotidiana os anseios feministas e a ideologia libertária que, no caso de sua amiga, não conseguiam fazer a migração do plano teórico para o prático, eis que este, diante do extenuante acúmulo de dificuldades da vida, acabou tornando-se árido, completamente inóspito a qualquer elemento que não dissesse respeito à mera, estrita e mais básica sobrevivência. Eulália, velha, era a imagem de um galho seco, esturricado.
    Já Doralice, não. Ao longo de sua vida, desta fez o que bem entendeu, vivendo-a de modo pleno e intenso. Foi generosa com todos, mais ainda com si mesma. Era uma hedonista. Mesmo idosa, mantinha um porte altivo, olímpico, destacado pela elegância heráldica com que sempre se apresentava. Por conta desses atributos, Eulália nutria por ela uma inveja demasiadamente tóxica.
    Mesmo a força dessa personalidade não foi, todavia, capaz de livrar Doralice de cair na mesma vala comum do destino solitário em que também jazia Eulália. Nesse aspecto, eram iguais. Verdade é que, salvo pela companhia de uma para a outra, e vice-versa, sofriam de uma enorme solidão, do tipo daquela que oposicionistas argentinos, feitos prisioneiros pelo regime militar, experimentaram ao serem libertos em meio à multidão que comemorava a vitória da Argentina na Copa do Mundo de 78. Assim como ninguém ali os ouviu gritar por socorro, ninguém dá ouvidos às duas amigas, nem tampouco as vê: tornaram-se invisíveis.
    Eulália a oferecer o café para Doralice:
    – Eis aqui seu café. Aproveita que está quentinho.
    Que com a costumeira gentileza, agradeceu-lhe:
    – Muito obrigada, Lália.
    (– Velha inútil. Fazendo-me esperar esse tempo todo!)
    – De nada, Dorinha. Foi um prazer.
    (– Seria de fato um prazer se eu pudesse…
    – Pegue mais uns biscoitinhos.
    … nunca mais ouvir sua voz.)
    Tendo Doralice ingerido o café
    (rejeitou cordialmente os biscoitinhos)
    fez-se novamente um enorme e denso
    (quase palpável)
    silêncio entre elas, um silêncio, contudo, diverso daquele que por anos serviu para prenunciar o momento da partida ao final dos encontros semanais, pois, desta vez, ele não seria quebrado
    (dali a minutos ou horas)
    por palavras corteses de despedida.

  • Sem dúvida, talvez

    dezembro 16th, 2014

    Há semanas não se levantava da cama: era a primeira vez em dias que se dirigia à sala: nesse período de reclusão, limitara seus movimentos ao seu quarto, ao banheiro e à cozinha: os cômodos do apartamento que lhe ofereciam o essencial para manter-se viva: sobreviver.
    Debruçada sobre o parapeito da janela, Gilda avistava o sol a nascer ao longe, com seus fachos de luz a brotarem por entre os vãos dos prédios, erguendo-se, tépidos, como os braços de um bebê polvo que pede colo.
    Sentia-se aliviada, pois chegara a pensar que nunca mais veria o sol, que nunca mais veria o dia.
    (que nunca mais)
    Lá fora, as ruas paulistanas rapidamente eram tomadas pela multidão, cujos indivíduos iam para lá e para cá, com olhares vazios e andar apressado, como que pastoreados feito ovelhas pelos cães nervosos das contas a pagar. Era em geral nesse horário, quando a maioria das pessoas saía para o trabalho, que Gilda costumava chegar em casa, vinda de seu trabalho. Ao entrar em seu apartamento, despia-se, tirava a maquiagem, pendurava a peruca no mancebo atrás da porta do banheiro, tomava um banho e ia para sua cama, onde divertia-se a brincar um bocadinho com Mumu, sua gatinha. Depois, vencida pelo cansaço, colocava a gata para dormir em um cantinho do quarto, sobre uma almofada, envolvia sua cama com o dossel e, por fim, adormecia.
    (– Acho que ela morreu.)
    A luz do sol que entrava pela janela da sala contrastava com o acinzentado de seus olhos. Com pesar, lembrava-se de, naquela noite, duas semanas atrás, ter gritado muito alto, um grito que, apesar de alto, apesar de transportar a mensagem clara de uma dor lancinante, apesar de ter sido gritado uma
    – Socor
    duas
    – roooooo!
    três vezes
    (– Acho que ela morreu.)
    em uma rua cheia de gente passando, apesar de tudo isso, o grito de Gilda, naquela noite, não foi ouvido
    (fingiram não ouvir?)
    dele não se soube: acabou abafado, quiçá mesmo silenciado pela indiferença da metrópole que, com alguma contradição, quanto mais seres humanos comporta, mais desumana torna-se.
    Logo após, ouviu-se um longo acorde de violoncelo e então ela perdeu a consciência, ficando seu corpo caído de um lado; sua longa peruca loira jogada dois metros adiante, com mechas de um vermelho vivo
    (– Ela está sangrando!)
    de sangue.
    (– Vamos embora daqui!)
    Acordou com os pingos de uma chuva gelada cravejando, como estilhaços de caco de vidro, seu corpo seminu e seu rosto, ambos bastante feridos.
    Um hiato na memória a partir daí … … … (– Chamem uma ambulância. É uma emergência.) … … … … … …  (– Dói aqui?) … … … … … (– Amanhã ele deve ter alta.) … … … … …
    (– Trouxe seu café da manhã, João.)
    Passaram-se dias em que ela mal conseguiu abrir os olhos, tão inchado estava seu rosto
    – Vem Mumu
    a ponto de mesmo Mumu não a reconhecer quando Gilda, após ter alta do pronto-socorro, retornou a seu apartamento.
    Por mais acostumada que Gilda estivesse a ser vista com estranhamento, olhada com desconfiança, observada ao longe, por olhos temerosos, como se fosse uma fera enjaulada, a ter dedos indicadores apontados em sua direção, seguidos de risos de escárnio, o fato de não ser reconhecida por Mumu pegou-a de guarda baixa, o que acabou por tornar mais pesado o sentimento de rejeição que, por toda a sua vida
    (– Larga essa boneca, João!)
    Gilda havia enfrentado, e este sentimento, por sua vez, naquele instante envolveu-a e, tal qual uma rocha formada pela lava vulcânica ao esfriar, fez dela, por semanas, um fóssil de seu próprio ser, até que, nessa manhã, antes do sol raiar, Mumu, com suas patinhas almofadadas, driblou o dossel que envolvia a cama, e foi brincar com uma tirinha de gaze que ainda cobria o último ferimento no rosto de Gilda, que aos poucos foi assim d e s (um bocejo) p e r t a n d o.
    Gilda abriu seus olhos, olhou para dentro dos olhos de Mumu e viu ali refletido seu rosto, já quase são. Foi quando, do nada, sentiu uma saudade invadi-la, do tipo daquela que nos toma quando olhamos para nossas fotos de infância, em que a criança que fomos aparece ao lado de nossos pais, avós. Riu-se aliviada, um riso nervoso. Daí então desatou a chorar, soltando gritos guturais que acabaram por assustar Mumu: a gatinha saiu em disparada para fora do quarto, desvencilhando-se do dossel, que ali permanecia mantendo Gilda ao abrigo do mundo exterior e de suas hostilidades. Chorou a plenos pulmões, como quando nascera, rompendo o útero de sua mãe.
    (– É um menino?)
    Novamente em meio a lágrimas, era chegada a hora de renascer.
    (– Sem dúvida, talvez.)
    Vendo ali, diante de si, do lado de fora da janela do apartamento, toda a vibração de uma grande cidade, os olhos de Gilda enfim voltaram a brilhar: brilhavam como sóis.

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  • Faz-me falta tua ausência

    dezembro 3rd, 2014

    Sentados lado a lado diante da televisão, acompanham, com olhos entorpecidos de cansaço e sono, as cenas da novela. As mentes de ambos trazem pensamentos dispersos, que ora pousam nas imagens projetadas no ecrã, ora nas lembranças do passado. Ali, naquela pequena casa, residiam sozinhos desde a partida do casal de filhos: primeiro, o filho primogênito, que um dia, há muito anos, desapareceu: dele nunca mais se teve notícias; depois, a filha mais nova, que, mancomunada com um sujeito nada confiável, um dia foi embora da casa dos pais sem deixar recado – nem mesmo deles se despediu. Até onde se sabe, vivia na mesma cidade, se bem que suas poucas ligações e suas ainda mais, e cada vez mais, raras visitas aos pais fizessem parecer que ela residia em alguma terra muito distante.

    – Quando você vem nos visitar?

    Perguntou-lhe Celina na última vez que Maria Clara, a filha, ligou para a casa dos pais. No que Maria Clara respondeu que dali a duas semanas chegaria, o que, de fato, não se concretizararia nem dali a duas semanas nem nunca mais: as duas semanas tornaram-se três, quatro, depois meses, e nada de Maria Clara aparecer. Nesse período, nem tampouco se preocupou em justificar a sua prolongada ausência. Antes desse sumiço, quando de suas raras ligações, limitava-se a perguntar à Celina, sua mãe, num tom seco:

    – Está tudo bem com você e o pai?

    E ao ouvir a resposta de Celina, que invariavelmente após o

    – Sim.

    enveredava por uma cantilena de reclamações sobre a sua saúde e a do marido, que em tudo contradiziam a afirmação anterior de Celina de que tudo ia bem, Maria Clara, sempre impaciente, encerrava a conversa com um displicente:

    – Cuidem-se. Amo vocês.

    e desligava antes de Celina

    – Também te amamos, minha fi

    terminar sua despedida.

    No porta retratos, sobre a mesa de canto ao lado do sofá, ao alcance das mãos de Celina, a foto da família: ela, Antero – seu marido –, o filho primogênito e Maria Clara. Estão todos juntos ao redor do bolo de aniversário do primeiro ano de vida de Célio, o primogênito. Lá se iam pelo menos uns 30 anos desde o dia em que aquela foto havia sido tirada, na festa de aniversário de Célio, uma celebração feita de modo muito simples, pois as condições da família não permitiam, menos ainda na época, grandes dispêndios para além do essencialmente ligado à sobrevivência.

    – Fazemos ao menos um bolo para a data não passar em branco.

    Celina, jovem e vistosa na foto, sorri em direção à câmera. Há mais vida no olhar dela, retratada na foto, do que no olhar da Celina de carne e osso de hoje: este abatido, lasso, desesperançado.

    Ao seu lado no sofá, Antero cochila, deixando escorrer uma baba branca por um dos cantos da boca. Ele em nada lembra o homem com o qual Celina, há trinta e um anos, havia se casado: um ano antes do nascimento de Célio. À época, quando Celina e Antero eram bastante jovens, ele a conquistara com sua voz pausada, que fazia contraste com a firme determinação dele para vencer na vida, outro predicado que, então, também lhe serviu para angariar a confiança e, sobretudo, o amor de Celina. No entanto, com o passar dos anos, a voz pausada de Antero foi aos poucos silenciando: as muitas dificuldades pelas quais ele e Celina, juntos, passaram pela vida, para poder criar Célio e Maria Clara, com aquilo que julgavam ser o mínimo de dignidade para seus filhos, agiram em Antero como, sobre o lustro, age a poeira que vai se depositando por cima de uma mesa de jantar, ao redor da qual, outrora, a família sentava-se, todos reunidos, para fazer suas refeições.

    Uma lufada de vento entra pela janela e faz dançar a cortina de chintz, ao mesmo tempo em que agita as plumas de avestruz que, dentro de um vaso de latão, decoram um dos cantos da sala. Era com aquelas plumas que Célio costumava brincar: colocava-as às costas, por dentro do calção, de modo a imitarem a cauda do Garibaldo, no que era logo repreendido por Antero, com um tapa no traseiro seguido de um:

    – Vira homem!

    dito em voz grave, e não na sua habitual voz pausada.

    Chorando, Célio então corria para o seu quarto, que dividia com Maria Clara, para onde Celina, em seguida, ia em seu socorro, secar suas lágrimas e oferecer-lhe consolo com sua voz calma e suas mãos sedosas

    – Beba essa água com açúcar, filho. Vai te ajudar a se acalmar.

    que, para ele, assemelhavam-se às mãos do padre Olavo, quando estas, sediosas, desciam em direção às partes íntimas de Célio, a fim de acariciá-las, o que o menino consentia, uma vez que, na sua idade, então 10 anos, a resultante entre as forças da culpa e do desejo favoreciam este último com folga. Os dois encontravam-se com regularidade quase diária, até que um dia acabaram pegos em flagrante atrás da sacristia da igreja de São Pedro, por Antero, que, suspeitando dos sumiços diários de Célio, sempre no mesmo horário: no final da tarde, resolvera investigar. Desde esse episódio, nunca mais nem padre Olavo nem Célio foram vistos na cidade.

    A noite avançava e, em seu progresso, seguia encontrando Celina e Antero ali, sentados no sofá. Antero dorme; Celina continua acompanhando, com olhos ainda mais entorpecidos de cansaço e sono, as cenas projetadas na televisão.

    (não sabe mais dizer se são cenas de uma novela)

    Celina olha para Antero e, vendo-o dormir, aos poucos acaba também caindo no sono. E assim
    (adormecidos?)
    seguem madrugada adentro, numa noite que para eles não teve
    … fim.

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  • Parece que vives sempre de uma gaiola envolvida

    dezembro 2nd, 2014

    É final de tarde, a noite se avizinha, e como ocorre todos os dias, sem distinção entre dias úteis, sábados, domingos ou feriados – havendo mesmo uma predileção por estes últimos, pois neles o movimento de clientes é maior –, Antônio e Conchita estacionam seu carrinho de pipoqueiro em frente a um dos últimos cinemas de rua de São Paulo – na rua Augusta. O cinema dispõe, em seu hall de entrada, de um pequeno comércio que, entre outros comes e bebes, também oferece pipocas à venda, mas muitos clientes preferem adquiri-las do simpático casal de pipoqueiros, lá fora, talvez por acreditarem que as pipocas feitas por eles, posto que preparadas em um antigo carrinho de pipoqueiro, sejam mais saborosas. São pessoas para as quais o dedo da tradição está sempre a indicar um caminho mais conhecido, confortável, e, portanto, para elas, mais desejável.
    Se nada no modo de preparo e na aparência das pipocas, ou mesmo em relação ao carrinho de pipoqueiro em si, mudou ao longo de 40 anos – tempo em que Antônio e Conchita estão casados e, juntos, à frente do negócio –, tal não se pode afirmar em relação ao casal, pois ambos mudaram muito e já se encontram bastante fragilizados por idades relativamente avançadas: Antônio tem 75 anos; Conchita, 70.
    Tanto o carrinho de pipoqueiro quanto as pipocas parecem orientados por um relógio muito próprio, que parou em determinado momento do passado, permanecendo estanque em um tempo que já não mais existe.
    (Processo este que lhes acomete com naturalidade, ao contrário do que se nota quando voltamos os olhos para a lanchonete do outro lado da rua – decorada com motivos dos anos 50 –, e a barbearia situada dentro de uma galeria de lojas no quarteirão de baixo – que também busca naquela década inspiração para sua decoração. Por serem fruto de um esforço deliberado – e por vezes até afetado – de representar um tempo passado, a lanchonete e a barbearia acabam, por fim, colhendo artificiosos pastiches como resultado.)
    Em 40 anos de parceria afetiva e profissional, Antônio e Conchita nunca esboçaram nenhum sinal de descontentamento de um em relação ao outro, ou vice-versa – nunca nem mesmo brigaram. Falavam-se pouco, é verdade. Embora Conchita fosse muito extrovertida e falante, com Antônio a comunicação dava-se predominantemente em planos silenciosos: olhares, gestos.
    Assim, não se sabe ao certo por qual motivo, naquele frio final de tarde de outono, por volta das 18h,
    (horário em que, no passado, os homens punham-se a fazer seus exames de consciência)
    quando Antônio e Conchita há pouco tinham estacionado o carrinho de pipoqueiro em frente ao cinema, enquanto Conchita servia uma primeira cliente com um saco grande de pipocas, virou-se para Antônio e, numa delicadeza de rendas, perguntou-lhe:
    – Tonho,
    Assim ela carinhosamente o chamava.
    – você é feliz comigo?
    Antônio estava então a pensar na morte da bezerra, enquanto seus olhos passeavam pelo vai e vem de pessoas que, apressadas, subiam e desciam a rua, entravam e saiam do cinema.
    – Tonho?
    Olhou para Conchita e ela insistiu:
    – Diga-me: você é feliz comigo?
    Conchita colocara essa questão a Antônio, sabendo de antemão que o efeito poderia ser o mesmo de uma flecha lançada contra um alvo de um côncavo infinito, tal qual um buraco negro. Antônio era um homem muito calado. Mas Conchita precisava dar voz àquela sua angústia, mesmo que essa voz, ao final, pudesse terminar ficando sem o eco de uma resposta qualquer de Antônio, que, não se sabe dizer se deliberadamente ou não, poderia deixar a pobre esposa a falar sozinha, tal como esses loucos que andam por aí, pelas ruas, esbarrando a miséria emocional de seus solilóquios nas muralhas da indiferença das gentes e da cidade.
    Talvez, contudo, por força do efeito surpresa trazido pelo inesperado da questão, Antônio esboçou uma reação, perguntando a ela, com surpreendente calma:
    – Como assim, Conchinha?
    Era o apelido carinhoso com o qual a chamava.
    Conchita então servia mais uma senhora, que aparentemente tinha a mesma idade dela. Ao entregar-lhe o saco de pipocas, Conchita agradeceu-lha com um apressado:
    – Obrigada!
    E retomou:
    – Antônio,
    Desta vez com a voz mais pausada.
    – … vivemos juntos há 40 anos e nunca lhe perguntei isso, pois sempre me pareceu que você fosse feliz comigo,
    Conchita media as palavras com bastante cuidado.
    – … mas ultimamente tenho notado você distante.
    – Eu!?
    – Sim, você! … sentimentalmente ausente. E todo aquele carinho, afeto, cordialidade e… desejo que costumava ter para comigo parecem
    Hesita por alguns instantes antes de finalizar.
    – … perdidos.
    Antônio, naquele instante, olhava de soslaio para uma rapariga alta, feita ainda mais alta pelo efeito dos sapatos de salto agulha que calçava, de abundantes cabelos descoloridos – que mais pareciam um chumaço de palha pronto para ser incendiado –, com ombros largos, que descia pela calçada falando ao celular com um timbre de voz forte de barítono, abafando o zum zum zum dos demais pedestres que passeavam por ali. Quando Antônio voltou os seus olhos para Conchita notou, envergonhado, o olhar de desaprovação dela. Disse-lhe então:
    – Conchinha,
    O olhar de Conchita deixou de lado o tom de reprovação e ganhou a languidez do olhar de uma namoradeira de gesso. Seus cabelos desgrenhados e grisalhos teimavam em cair sobre seus olhos, e cada vez que ela os afastava, aproveitava para enxugar – e assim disfarçar – pequenas lágrimas que começavam a deles brotarem, teimando em descer pelos seios pálidos de sua face, numa tristeza de noite infinita.
    Um jovem casal aproximou-se do carrinho de pipocas. Ele pediu um saco de pipocas grande. Ela tentou convencê-lo que a média seria suficiente. Acabaram por fim discutindo e não levando nenhuma das opções. Homens e mulheres, até nisso tão distintos.
    – vê essas pipocas que vendemos aqui há tantos anos?
    Conchita olhou para um resto de pipocas que sobejava dentro do carrinho – pareciam frias e murchas, como cravos brancos há muito abandonados sobre um túmulo.
    Havia naquele instante menos gente na calçada em frente ao cinema. As sessões das 18h30 já tinham começado, levando para dentro das salas de projeção boa parte dos que por ali ainda circulavam. O entorno estava tomado da melancolia de uma última janela que à noite se apaga na fachada de um velho edifício no centro da cidade.
    – Sim…
    Ela fez que entendeu – ao menos se esforçou. Estava confusa. O cheiro das pipocas, que sempre lhe pareceu algo inebriante, naquele início de noite tinha sobre ela um efeito entorpecente.
    O tempo parecia suspenso, como se estivesse a aguardar o movimento da batuta do regente de sua orquestra para seguir em frente com sua desarmônica sinfonia – a sinfonia da vida –, pautada pela nota altissonante do caos.
    Antônio prosseguiu:
    – Foi com a venda delas que conseguimos nos manter e criar nossos filhos.
    – Oh, Antônio.
    (parecia comovida)
    – E hoje temos um casal de filhos exemplar, não é mesmo?
    Ele perguntou já sabendo que a resposta dela não poderia ser outra senão:
    – Sim, são um homem e uma mulher exemplares.
    – Temos nossa casa própria, nosso carro, e tudo isso foi construído com a venda dessas pipoquinhas,
    Exceto pelo modo carinhoso com o qual a chamava:
    – Conchinha.
    Antônio não era homem de usar diminutivos. Conchita, portanto, estranhou o:
    – pipoquinhas…
    – que há anos são preparadas e vendidas da mesma forma.
    Perdida, sem saber aonde Antônio queria chegar com aquela cantilena toda sobre as pipocas, Conchita, ansiosa:
    – Tonho, responda-me simplesmente: você é feliz comigo?
    Um periquito azul, que havia acabado de fugir de um realejo que ficava ali na esquina de cima, onde há anos cumpria pena oferecendo, às pessoas, esperança dentro de papelotes, foi visto, naquele ato, voando rente às cabeças de Antônio e Conchita. Seu dono, um senhorzinho de boina de feltro verde na cabeça, com a fralda da camisa para fora do cinto, vinha correndo atrás dele, desembestado, mas logo viu-se forçado a desistir da perseguição quando, desolado, acompanhou com os olhos seu pequeno detento de plumas azuis desaparecer, livre, mimetizado pelo azul do céu.
    – Conchinha, você para mim é como essas pipocas: a certeza de continuidade. Sei que amanhã, salvo se morrermos um ou outro (ou ambos), estaremos aqui a vender essas mesmas pipocas, ganhando de forma justa nosso dinheirinho,
    (o diminutivo de novo)
    – e isso para mim é a melhor síntese de felicidade: viver sem surpresas. A mesma esposa, a mesma rotina, no mesmo local. Assim tem sido há 40 anos e assim continuará sendo. Por quantos anos mais?
    Tendo o olhar perdido, Conchita suspirou um:
    – Não sei…
    E Antônio por fim sentenciou:
    – Deus queira que por muitos ainda, minha Conchinha.
    Ele então abraçou o rosto dela com as suas mãos em concha e beijou sua testa, produzindo um estalinho, ouvido apenas por eles dois, tal como um segredo de alcova.
    Diante das palavras de Antônio, Conchita sentiu-se sufocada – percebeu-se de um instante para o outro
    (num estalinho)
    como um passarinho na gaiola, que há 40 anos ficara presa a um homem e a uma rotina de trabalho e de vida. Vislumbrou, como que numa epifania, o quão diminutos e restritos
    (inexistentes?)
    tinham sido seus horizontes nesse tempo todo. Os diminutivos que Antônio utilizara naquela conversa então lhe fizeram sentido – um sentido triste e melancólico, como um domingo à noite.
    (por acaso, era mesmo domingo à noite)
    Conchita olhou a cidade a seu redor, viu o quanto ela mudara e comparou com o quanto ela permanecera sendo a mesma pessoa
    (apenas bem mais envelhecida)
    fazendo a mesma coisa, na companhia do mesmo homem.
    (até o uniforme branco que ambos usavam, parecido com uma sobrepeliz, era o mesmo nesses anos todos)
    Aquilo tudo a despertou para a vida tediosa e sem esperança de mudança que tinha vivido e ainda vivia. A única possibilidade de mudar seria, como o próprio Antônio mencionara em suas palavras, morrer ele ou ela, ou ambos.
    (Parece que vives sempre de uma gaiola envolvida)
    Num gesto de rompante, Conchita jogou o guardanapo com o qual limpava as mãos, sujas do óleo das pipocas, sobre o carrinho de pipoqueiro, e saiu pisando duro, rua abaixo, sem olhar para trás,
    – Conchinha!?
    deixando Antônio a falar sozinho.
    Logo mais à frente, duas esquinas depois, Conchita encontrou-se com o velhinho do realejo. Ele estava lá, parado, enxugando, com a fralda da camisa, as lágrimas que vertiam de seus olhinhos castanhos, ternos como olhos de bebê: chorava a perda de seu periquito azul. Conchita apiedou-se dele e o abraçou, trazendo a cabeça do velhinho para o conforto dos fartos seios dela.
    No dia seguinte, vestida de colombina, enquanto o velhinho do realejo tocava o seu instrumento, no mesmo local do dia anterior, Conchita, presa ao carrinho dele por uma corda de tule púrpura, atada a uma coleira de miçangas coloridas, dançava e oferecia, às pessoas, esperança dentro de papelotes. Estes, que até o dia anterior eram simples e não contavam com nenhum tipo de ornamento, vinham então acompanhados, cada um, de um cravo de papel crepom vermelho.
    Na frente do cinema, logo mais ali abaixo, não se via mais Antônio, não se via mais o carrinho de pipoqueiro, ambos aos quais ela estivera presa por tanto tempo. Conchita, vendo aquele espaço vazio em frente ao cinema, perguntou em pensamento:
    – O que será deles?
    Depois se desinteressou e nisso um sorriso de margarida desabrochou em seu rosto.
    Sentiu-se finalmente livre, e a emoção a levou a tentar um rodopio, que acabou sendo frustrado pela corda de tule púrpura atada à coleira de miçangas coloridas que a mantinha presa ao carrinho de realejo.
    (Parece que vives sempre de uma gaiola envolvida)

    N. do A.: O título “Parece que vives sempre de uma gaiola envolvida” foi extraído de versos do poema “Mulher vestida de gaiola”, de João Cabral de Melo Neto.

  • Muitos acabaram varridos pra baixo do tapete a que chamam terra pelas vassouradas dos anos

    junho 18th, 2014

    Depositadas dentro daquela velha caixa de papelão, que cheirava a passado, de modo um tanto desorganizado, a misturar várias camadas de tempo, inúmeras fotografias. Umas mais novas, outras bem antigas, algumas desbeiçadas, amassadas, amareladas, decoradas com molduras cheias de rococós; faltando uma pontinha aqui, pedaços ali; um rasgo a cortar outra bem ao meio, decepando um braço, cuja mão ficou atada a uma figura feminina, enquanto o restante do corpo (masculino) ficou solitário e manquitola na outra parte da foto (eram amigos, amantes?). Rostos jovens, velhos, uma mantilha, que originalmente deveria ser de renda branca, a ornamentar a cabeça de uma noiva, mas que ali, na sépia, parecia empoeirada. Um casal sentado no banco de praça de alguma igreja matriz interiorana, posando ao lado de um cipreste baixo, esculpido à semelhança da chama de uma vela votiva. Parecem felizes – devem ter sido, ou ao menos assim estavam naquele momento registrado pela foto. Homens de bigode, com ar sisudo, metidos em jaquetões, ao lado de numerosas famílias, com mulheres e crianças, todos vestidos de maneira solene (iam à missa?). Parecem tristes: não há sorrisos (quando sorrimos estamos felizes?). Crianças barrigudas, com umbigos invertidos, brincando em meio ao barro, nos barrancos de algum arrabalde – estão sujas, descabeladas, descalças. São crianças, afinal.

    Em algumas fotos – talvez as mais antigas –, luz e sombra, preto e branco apenas. Noutras, há cor, mas a luz parece chegar ali na imagem retratada, como que vindo de uma longa caminhada, de anos: uma luz cansada.

    Ao meu lado, a minha avó:

    – Este é o tio Alfredo.

    Apontando para um determinado rosto numa foto pequenina – mais um dentre tantos outros rostos que ali vejo, mas não reconheço.

    – Esse aqui é seu pai, olha só, quando tinha 2 anos,

    Meu pai pelado, deitado de bruços, com a cabeça levantada, olhando ao redor, curioso.

    – e nesta aqui você tinha 5 anos.

    Exceto pelos olhares das duas crianças nas fotos – o meu é triste –, parecemos ser o mesmo garoto, apenas retratados em idades diferentes.

    – Olha seu avô como estava novinho

    separando uma foto, com cuidado, afastando-a das outras do modo como selecionava, quando fazia a escolha do arroz, os grãos bons, segregando estes daqueles que estavam danificados.

    – nesta foto!

    Admiro-me de vê-lo ali na foto, ainda vivo, saudável, pois a última lembrança que tenho dele

    – Esta outra é de pouco antes do dia em que ele faleceu.

    é de pouco antes de seu falecimento – quando já não era mais meu avô, apenas uma sombra do homem que ele fora, que teimava em se apresentar encarnada no frágil corpo dele.

    Numa foto grande, a cena de uma mesa posta, repleta de comidas e bebidas, rodeada de gente – todos sorriem. Devia ser Natal. Sim, pela quantidade de gente só podia ser: era a única data em que toda a família se reunia. Éramos…, bem, nem todos ali são da família: há amigos, vizinhos (amigos?), agregados. Hoje somos bem menos numerosos: muitos acabaram varridos pra baixo do tapete a que chamam terra pelas vassouradas dos anos.

    – Quer um café, filho?

    Indaga-me minha avó, já se levantando.

    – Quero.

    Acompanho-a e vamos juntos até a cozinha,

    – Senta aí. Eu passo rapidinho um café quentinho pra gente.

    onde nada parece ter mudado: sobre a mesa, o mesmo naperon de crochê, e sobre este o conjunto de chá que dei a ela de presente em algum dia das mães; na cristaleira, os mesmos copos de vidro granulado coloridos; xicarazinhas de porcelana branca, com bordas de esmalte dourado.

    – Quer uns bolinhos?

    Depositando bem à frente de meus olhos um cesto de bolinhos de chuva amanhecidos, cobertos com uma fina camada branca de açúcar, como se estivessem sido deixados lá fora sob o sereno da noite.

    Servi-me de um, dois, três – estavam frios, mas deliciosos.

    – Vê se está bom de açúcar.

    Oferecendo-me o café feito em um coador de pano, numa xicarazinha de porcelana branca, com borda de esmalte dourado,

    – Acho que adocei demais.

    pousada sobre um pires de porcelana de um outro padrão, outra cor, que não ornava com o da porcelana da xicarazinha do café.

    Não respondi. De repente, vi-me ali à mesa, junto dela, como numa daquelas fotos antigas que há pouco estávamos a vasculhar na velha caixa de papelão, e que tanto diziam, conquanto delas não se ouvia nenhum som.

    Um dia, pensei, também eu e ela seremos nada senão fotografias dispostas em uma velha caixa de papelão, e as memórias que estas evocam.

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