A estação de trem

Desativada há anos, a antiga estação de trem ficava às margens da cidade, numa periferia distante situada para além do cemitério municipal. As suas plataformas, que outrora foram repletas de gente a chegar e partir, encontram-se vazias. Ao invés do apito do trem e do burburinho dos passageiros, ouve-se apenas o sopro do vento, que, em tom de sussurro e sob testemunho das aranhas que habitam os cantos do telhado, diz aos poucos desavisados que por ali aparecem:

— Perigo.

sobre quão perigoso é estar ali, dado que o local, bastante degradado após anos de abandono, não oferece segurança nenhuma àqueles que o visitam. A poeira, os buracos, o mato alto e a água suja empoçada criam ambiente propício para cobras, aranhas, ratos e pessoas desabrigadas.

Um dessas pessoas é uma mulher de nome Isabel, que vive ali numa das plataformas, sob uma barraca precária de panos sujos, desde quando a estação foi desativada.

Há 10 anos, quando o derradeiro trem dali partiu, levando seu único filho dentro do último vagão, aquele destinado à segunda classe, ela, em pé sobre a plataforma, ficou a acenar com um lenço que trazia na cabeça, o mesmo com que também enxugava as lágrimas que, em profusão, desciam pelos cantos de seus olhos. O filho partia para tentar a vida em outra cidade, maior e distante, com a promessa de que

— Um dia eu volto, mãe.

um dia voltaria.

Desde então, todavia, nunca mais voltou.

Refém da esperança de que ele um dia cumpriria sua palavra de voltar, Isabel permaneceu ali esperando por todos esses anos. Para isso, largou tudo para trás: casa, marido, pai, mãe, irmãos. Ninguém entendia o porquê, mas para ela isso não importava: ficava naquela estação de trem como se estivesse ali condenada à prisão.

Isabel vivia à base dos restos de alimentos que recolhia do lixo deixado ao redor daquele lugar pelo serviço de coleta da cidade. Para beber, ia até o riacho que passava ao lado da estrada de terra ao fundo da estação de trem. Fazia as suas necessidades onde e quando sua vontade ditava.

Abandonada pelos pais quando ainda era uma criança de pouco mais de 4 anos, Isabel foi criada por sua avó, seguindo uma criação muito simples, como eram aquelas que se davam às crianças, pobres como ela, em sua época, na cidade onde nasceu.

Quanto teve Lourenço, seu primeiro e único filho, jurou a si mesma que nunca o abandonaria, como fora abandonada por seus pais. Pena, para ela, que Lourenço não fizera a mesma promessa em relação à própria mãe.

Às vezes, quando, à maneira dos passageiros de outrora, o vento cruza, apressado, as plataformas da velha estação, é possível ouvir Isabel chorando baixinho. Em meio ao choro, ela reza: tem fé de que um dia seu filho vai voltar.

Certa noite, uma luz, forte como a de um farol, irrompeu o breu que envolvia a estação, seguindo a linha do trem. Vinha de longe e, rapidamente, foi chegando cada vez mais e mais perto. Ao presenciar aquela cena, Isabel sentiu seus olhos serem injetados por lágrimas, enquanto seu coração batia em disparada: para ela, aquela luz era a da locomotiva do trem que trazia seu filho de volta.

À medida que foi se aproximando, a luz foi se revelando não como a luz da locomotiva do trem, como pensava Isabel, mas a de um carro alegórico que trazia, em cima de sua carroceria, um trem feito de madeira e isopor. Da janela daquele trem de fantasia, acenava um homem vestido como um maquinista. A cada vez que ele puxava a cordinha da cabine da locomotiva, ouvia-se um apito alto e agudo.

Junto com o trem, chegou o som de uma potente bateria de escola de samba, que por sua vez puxava, à maneira do Flautista de Hamelin, um cordão de centenas de sambistas, todos fantasiados de multicoloridos maquinistas. Seguindo o ritmo compassado da bateria, carro alegórico e sambistas avançavam na direção de Isabel, que, como se estivesse hipnotizada, acompanhava aquilo tudo sem mexer um músculo, com os olhos fixos e brilhantes como de um gato que, ao cruzar a estrada à noite, é surpreendido pelos faróis de um carro.

Depois de anos de tristeza e resignação, tudo aquilo lhe parecia tão estranho, mas ainda assim tão espetacularmente belo.

Minutos depois, fez-se novamente silêncio na estação de trem abandonada: o carro alegórico e os sambistas já iam longe, bem distante dali, deixando para trás muito lixo, não do tipo orgânico e fétido em cujo meio Isabel, nos últimos anos, acostumara-se a viver, mas sim restos de festa e alegria: serpentinas, confetes, plumas e restos de paetês, cujas cores e brilhos eram então realçados pelas luzes, tépidas mas ainda assim vibrantes, que o sol da manhã lançava sobre a antiga estação de trem.

Vendo tudo aquilo espalhado pela estação e pelos trilhos do trem, Isabel se lembrou que, quando menino, Lourenço, festeiro como ele só, gostava de ir às matinês de Carnaval, vestindo fantasias diversas, que variavam conforme o tema da festa ou mesmo seu desejo de se destacar, mas sua preferida era justamente a de maquinista de trem. Ao voltar dos bailes de Carnaval, ele trazia grudado ao corpo suado restos de serpentinas, confetes, plumas e paetês similares àqueles que Isabel então via, ao seu redor, jogados ao chão. De repente, seu olhar para aqueles restos de festa e alegria mudou, e ela passou a ver ali a realização do tão aguardado retorno de seu filho que partira há 10 anos. No fundo, sabia que não era verdade que ele tinha voltado, mas se permitiu, ao menos por um instante, breve como o apito de um trem, deixar-se levar por aquela fantasia, afinal, era Carnaval.

a mãe

A mesa de jantar, no centro da sala ao lado da cozinha, costumava receber a família para as refeições do dia a dia: pai, mãe e três filhos sentavam-se ao seu redor, e ali tomavam os cafés da manhã, almoçavam e jantavam.

Depois de preparar as refeições, a mãe punha a mesa estendendo sobre ela uma toalha com motivos florais, sobre a qual dispunha os pratos, os talheres e os guardanapos. Finalizava a arrumação com a colocação dos alimentos.

Depois de terminarem de comer, saíam todos da mesa para cuidar de outros assuntos, enquanto a mãe ficava ali, afinal era ela a encarregada única de terminar de lavar a louça, secar e guardar, num ciclo que se repetia ao menos três vezes ao dia, todos os dias da semana. Além de cuidar das refeições, era a mãe que cuidava da limpeza da casa, das roupas, das compras do mês, da educação dos filhos, cumprindo assim uma jornada de trabalho que não tinha intervalo. Era a primeira a acordar e a última a ir dormir.

Com o passar dos anos, os filhos foram crescendo e, aos poucos, indo embora da casa dos pais. Formaram-se, casaram-se e se foram. A casa foi ficando vazia.

Quando o pai faleceu, a mãe ficou morando sozinha naquela casa que, antes tão pequena, parecia ter se tornado maior com o tempo, fazendo ainda mais presentes as ausências que a vida e a morte trouxeram ao longo dos anos.

Mesmo sem ter ninguém mais a quem cuidar senão ela mesma, a mãe continua a agir como se a casa estivesse cheia, como de fato fora outrora. Prepara as refeições, põe a mesa, lava a louça, limpa a casa, lava as roupas, faz as compras do mês, procura se manter ocupada.

Todavia, sem ter mais a quem servir, não vê sentido para sua vida.

o taxista

Todos os dias, ele pegava seu carro e saía para trabalhar: era taxista. Passava o dia inteiro a percorrer as ruas da cidade, levando passageiros para os mais variados destinos. Conhecia a cidade como a palma de sua mão, era assim que gostava de afirmar. Não precisava de guia. No lugar do volumoso livro com os nomes e mapas das ruas da cidade, Lucas levava um livreto da Constituição brasileira, única lembrança de seus tempos de servidor público no fórum central da cidade, carreira que abandonou por não suportar a rotina de trabalho em ambientes fechados – para ele a liberdade sempre veio em primeiro lugar, sempre foi prioritária. Carregava o livreto apenas para servir de isca para puxar assunto com seus passageiros.

Era uma segunda-feira de manhã, e Lucas, ainda sonolento, tomava seu café numa padaria qualquer da cidade, a fim de despertar, quando recebeu um chamado para buscar a senhora Catarina na casa dela e levá-la ao médico. Ela era uma cliente antiga de Lucas.

Ele então terminou seu café e, sentindo-se mais desperto, saiu apressadamente indo em direção da casa de Catarina, algumas quadras de distância dali. Ao chegar lá, encontrou-a já na porta a esperá-lo, vestindo uma camisola branca, como se estivesse acabado de sair da cama.

Lucas estranhou um pouco, pois nunca a vira vestida daquela forma, mas preferiu não questionar. Depois dos cumprimentos usuais, Catarina entrou no táxi dele e seguiram para o destino dela.

No caminho, Catarina foi contando o sonho que tivera naquela noite a Lucas. Segundo seu relato, no sonho ela caminhava em meio a uma procissão de padres, todos vestindo roupas eclesiásticas de cor preta, à semelhança de urubus. Ela era a única mulher a acompanhá-los e, no sonho, vestia a mesma camisola que estava vestindo enquanto contava o sonho a Lucas.

Catarina contou que, em determinado momento do sonho, os padres foram todos se dispersando, cada um seguindo sozinho para um lado diferente, por ruas diversas, deixando-a, ao final, sozinha no meio da rua por onde caminhavam. Sem entender o que acontecera, ela começou a sentir uma certa náusea e, então, deitou-se no chão enquanto sua cabeça girava como se estivesse tendo um ataque de labirintite.

Sufocada por aquela sensação, ela finalmente conseguiu acordar. Estava toda suada, da cabeça aos pés.

Enquanto contava o seu sonho a Lucas, este seguia o caminho percorrendo as ruas da cidade, bastante carregadas de trânsito àquela hora da manhã. De repente, quando passava por determinada rua, Catarina gritou bem alto:

– Pare aqui!

No susto, Lucas brecou o carro de supetão quase levando à colisão o carro que vinha atrás dele.

Catarina abriu a porta ao lado de seu assento e saiu apressada, sob o olhar assustado de Lucas. Lá fora, ela ficou a observar a rua com o olhar espantado: era a rua que ela havia percorrido em seu sonho da noite passada, junto dos padres em procissão, e era possível vê-los chegando a umas duas quadras dali, em passos rápidos. Foram chegando, chegando, até finalmente alcançarem Catarina.

Foi nesse momento que ela se deu conta que, aqueles que ela julgava serem padres no sonho, eram na verdade juízes e estavam todos eles vestindo longas togas negras, caminhando juntos pela rua como numa procissão.

Como no sonho, Catarina passou a acompanhá-los em seus passos, mesmo sem saber para onde seguiam. Pouco antes do próximo cruzamento daquela rua por onde caminhavam, os juízes pararam de caminhar em linha reta e, então, formaram um círculo ao redor de Catarina, círculo esse que foi se fechando, fechando, fechando cada vez mais, até tocar o corpo dela, e depois seguiu se fechando mais e mais.

Os juízes que estavam na parte interna do círculo foram se despindo de suas togas, deixando nus seus corpos flácidos e seus membros em riste, com os quais passaram a tocar o corpo de Catarina, que, desesperada, passou a gritar por socorro a plenos pulmões.

Lucas, que até então estava imobilizado pela cena que via, enfim despertou de seu torpor e, num gesto quase instintivo, pegou o livreto da Constituição que trazia em seu táxi, no lugar do guia de ruas, e com toda força, jogou-o sobre os juízes, que então fugiram em disparada, tropeçando sobre suas togas, como o diabo foge da cruz. Deixaram Catarina jogada sobre a rua com o olhar catatônico e encharcada de suor.

Ele correu até ela, tomou-a nos seus braços e levou-a até o táxi. Abriu a porta traseira e deitou-a sobre o banco de trás.

Quando Lucas foi dar a partida no carro, o som do motor o despertou. Ao abrir os olhos, viu-se deitado em sua cama, também ele todo encharcado de suor.

Ao olhar o relógio em formato de táxi, sobre a mesinha ao lado da cabeceira, notou que estava bastante atrasado para ir para o trabalho no fórum.

No final, aquilo tudo tinha sido apenas um sonho.

Cida

Eu nunca vou entender esses parabéns que as pessoas postam nos stories do instagram. Parecem aqueles apertos de mãos em que uma delas, por não desejar aquela intimidade, oferece-se de modo tépido, como se tivesse nojo da outra.

Esses parabéns do instagram sempre são dados pela publicação de uma ou mais fotos de quem parabeniza na companhia de quem é parabenizado, em algum momento aleatório do passado. Há casos até em que esse momento já faz muito tempo.

E o que dizer de todos que, ao visualizarem os stories, são informados da data sem nem ao menos conhecer quem está aniversariando.

Deve ser bem constrangedor para pessoas como Dona Cida, que prefere não revelar a idade, e assim, para evitar que lhe perguntem:

– Quantos anos a senhora está fazendo?

simplesmente deixa passar em brancas nuvens todos os seus aniversários.

Pois foi justo ela quem, no dia do seu aniversário de 84 anos, viu-se exposta quando sua neta, Patricia, publicou stories no instagram com a foto dela acompanhada da avó, parabenizando esta pelo seu aniversário.

Quase todo mundo da família viu a postagem de Patrícia e, em seguida, enviou cumprimentos à Dona Cida, por mensagens, ligações e até mesmo pessoalmente, em um ou outro caso.

Invariavelmente, de todo mundo que a abordou, Dona Cida ouviu a pergunta:

– Quantos anos a senhora está fazendo?

Pergunta que Dona Cida cuidou de deixar no ar, sem resposta para ninguém. Ela queria morrer com toda aquela situação, que para ela era demasiadamente constrangedora.

De fato, uma semana depois de completar 84 anos, Dona Cida veio a falecer.

Tristes pela morte da matriarca, Patrícia e outros familiares publicaram homenagens a ela nas suas respectivas redes sociais sempre cuidando para mudar a foto do perfil pela foto de um lacinho na cor negra, em sinal de luto.

Na pequena cidade, a notícia de sua morte viralizou.

Ainda assim, foram poucos os que compareceram ao velório e quase ninguém foi ao seu enterro.

De volta pra casa

Era-lhe inevitável a sensação de vingança quando, ali no meio daqueles anúncios das páginas funerárias do jornal, via anunciada a morte de algum desafeto do passado.

– Aqui se faz, aqui se paga.

Regozijava-se João todas as vezes que isso acontecia, sempre esboçando um sorriso no canto da boca.

Ao contrário do que fazia com o restante do jornal, sobre cujas páginas apenas passava distraidamente os olhos, quando a leitura recaia sobre as páginas funerárias não lhe bastava simplesmente ler, era necessário focar a leitura com a ponta do dedo indicador, que ficava a percorrer aqueles anúncios como um revolver que mira suas vítimas.

Terminada a leitura, João recortava aqueles anúncios e arquivava numa pasta, colocando cada anúncio em um plástico específico. Era uma pasta bastante volumosa e pesada, que ele guardava bem escondida, por debaixo de umas caixas que ficavam em um quartinho nos fundos do apartamento, onde antes havia um banheiro de empregada.

João tinha 80 anos e vivia sozinho em um apartamento bastante amplo dos anos 50, no meio da Avenida São Luiz, com vista para boa parte do centro de São Paulo, suas riquezas e suas misérias.

Funcionário público aposentado, João nunca se casara. Era então o único sobrevivente de uma pequena família: pai, mãe e dois filhos, um deles, o mais novo, o próprio João.

Além de ler o jornal, sua rotina diária limitava-se a ficar horas e horas a observar os prédios à frente de seu apartamento e a breves caminhadas até o mercado e a farmácia, a fim de buscar os mantimentos e os remédios que sua aposentadoria ainda lhe permitia adquirir. Ao longo dos anos, a conta da farmácia foi ficando maior, enquanto a conta do mercado foi diminuindo. Ainda assim, comparado aos seus contemporâneos

(aqueles que ainda sobreviviam)

João era um homem que podia se considerar um privilegiado portador de boa saúde.

Dia desses, enquanto lia o jornal e, como de costume, procurava por nomes conhecidos por entre aqueles cuja morte os anúncios funerários faziam a todos saber, João deparou-se, surpreso, com seu próprio nome, escrito logo abaixo de uma cruz. Ao lado do nome, constava uma data de nascimento igual à dele, seguida de uma data de falecimento a indicar o dia de ontem como seu marco.

– Há de ser coincidência.

Pensou, enquanto seus olhos ainda miravam o anúncio, com as pupilas dilatadas pela curiosidade que fato tão inesperado lhes causara.

Intrigado, João recortou o anúncio e, quebrando um pouco sua rotina de apenas sair para ir ao mercado e à farmácia, tomou um táxi e foi até o endereço onde se daria o velório daquele seu homônimo cuja morte o jornal anunciara.

O local do velório ficava em uma capela de bairro, pequena, que estava completamente vazia quando João chegou, muito embora aquele fosse o horário anunciado do velório. Não havia caixão, nem defunto, nem flores, nada nem ninguém.

Ao redor de João, na nave da igreja, havia apenas estátuas de anjo a olharem para baixo, entediados. O silêncio ali dentro era tamanho que João podia ouvir o pulsar de seu sangue em suas têmporas, dilatadas devido ao calor intenso do dia.

Sentou-se em um dos bancos da capelinha e ficou a admirar a decoração interna, cuja exuberância e riqueza de detalhes contrastava com a simplicidade da parte externa.

João ficou ali até a fome apertar e, quando isso ocorreu, levantou-se e foi embora, tomando o caminho de seu apartamento, ainda intrigado com tudo que lhe ocorrera naquela manhã.

Quando o táxi que havia tomado chegou à Avenida São Luiz, João não soube indicar ao taxista onde deveria parar: não se lembrava qual daqueles prédios, colados um ao outro, era o seu.

Pediu ao taxista:

– Pode parar aqui.

Indicando um local qualquer quase na esquina com a Rua da Consolação. Ali ele desceu do táxi e seguiu caminhando pela calçada da Avenida São Luiz, como que sem destino, pois ainda não conseguia se lembrar onde morava.

Diante do Edifício Itália, João começou a sentir uma angústia crescer dentro de seu peito, como que a querer devorá-lo vivo. Olhava ao redor, na tentativa vã de se recordar onde morava: estava perdido.

Foi quando um senhor aproximou-se dele e, percebendo que João parecia precisar de ajuda, ofereceu-se

– O senhor precisa de ajuda?

para ajudá-lo.

Ao voltar os olhos para o senhor que lhe oferecia ajuda, João reconheceu no homem um dos seus muitos desafetos do passado: era Heitor quem estava ali diante dele, o mesmo que, há vinte anos, traíra a sua amizade ao revelar, aos pais de João, que ele mantinha relações com michês que, naquela época, faziam ponto na Avenida São Luiz, logo em frente ao prédio onde João morava, fofoca que acabou resultando na quebra de relação entre ele e seus pais.

João era capaz de se lembrar disso com detalhes, embora não estivesse conseguindo se recordar do prédio onde morava.

Depositou a dor dessa lembrança em sua mão em punho, com a qual desferiu um potente soco no rosto de Heitor, que, atordoado, caiu ao chão, batendo a cabeça na quina da calçada: o óbito foi imediato.

– Aqui se faz, aqui se paga.

Pensou João, com os olhos injetados de sangue, logo depois de ver o desafeto cair morto ao chão.

Foi então que dois policiais surgiram do nada e agarraram João pelos braços, algemando suas mãos e levando-o ao camburão.

Dali, ele foi levado para a delegacia mais próxima. Na sela onde foi lançado, João reconheceu os móveis e objetos de seu apartamento: estava em casa.

Benedito Calixto

Recordo-me exatamente do texto do cartão que, dentro de um envelope, colado ao papel crepom que embalava o presente, entreguei a você nesta mesma data há exatamente um ano, mas não consigo me lembrar do presente em si, Talvez por que este tenha sido um simples pretexto para que as palavras escritas naquele cartão (uma carta, para ser mais preciso) chegassem até você, Tínhamos acabado de terminar nossa relação – por iniciativa sua –, e eu ainda estava naquilo que as pessoas chamam de período de luto, Nunca gostei de adotar essa palavra para esse tipo de situação – para mim, luto diz respeito ao sentimento de pesar pela morte de alguém e você não tinha morrido: tínhamos apenas nos separado, Você seguiu seus caminhos; eu segui os meus, Nossas histórias, que antes eram comuns em muitos pontos, como que escritas por uma mesma mão, em uma mesma folha de papel, passaram a seguir enredos absolutamente separados e independentes, Num instante, você era parte de minha vida, e eu da sua – dormíamos e acordávamos juntos, saíamos para jantar, ir ao cinema, ao teatro, freqüentávamos nossos amigos… –, no instante seguinte, seríamos um para o outro apenas espectros de um passado, vislumbrado apenas pelas nossas memórias, à maneira da luz da lanterna de um guarda noturno que vigia uma estação de trem durante a madrugada, encontrando pelo chão restos da vida que transcorrera ali durante o dia, Desde então, e até hoje, nunca mais soube de você – evitei de todas as formas frequentar os mesmos lugares a que íamos juntos: tinha pânico só de me imaginar em qualquer um deles sem você, Assim agi durante esse último ano todo, Você pode pensar que foi loucura de minha parte, no que estaria coberto de razão, Demorei a me convencer de que estava mesmo cometendo uma loucura vivendo dessa forma, Eu estava me privando daquilo que para mim é uma das coisas mais valiosas da vida: minha liberdade, Sim, minha liberdade de poder ir a qualquer lugar – qualquer mesmo –, quando bem entendesse, a meu livre e exclusivo alvitre, Essa liberdade viu-se surrupiada de mim por todo esse período, Só hoje, enquanto fazia uma limpeza de gavetas lá em casa, que decidi me livrar da cópia xerográfica daquela carta, rasgando-a em pedacinhos, não sem antes fazer uma última leitura de seu teor, o qual eu quase trazia de cor, tantas vezes eu o lera, Acho que foi a primeira vez que li aquelas palavras sem que meus olhos nem sequer marejassem, Quando escrevi a carta – e levei dois dias (um sábado e um domingo) para escrevê-la –, chorei sem parar: cada palavra parecia extrair de mim emoções tão profundas quanto dolorosas, A pior de todas era a solidão do abandono, da rejeição, por pouco, muito pouco, eu diria, não entrei em depressão (ou entrei?), Lembro-me que dois meses depois daquele dia, eu estava numa mesa de bar, rodeado de amigos, e simplesmente não emitia uma palavra, estava ali, mas não estava, estava em corpo, mas não estava em alma, Olhava para todos ao meu redor falando, falando, e eu nada ouvia, imerso em uma melancolia de nevoeiro sobre um lago no inverno, absorto em meus pensamentos, que por sua vez estavam a repetir, em um frenético e incontrolável flashback, aquele momento em que me convidara para um café, apenas como pretexto, como fui saber depois, para dizer-me que não me amava mais e que nossa história pararia ali – era uma sexta-feira, Naquela noite não dormi, por mais que me dopasse, o nervosismo parecia anular o efeito do sonífero, Passei a noite toda sentado no sofá da sala, olhando para o nada, chorando e rememorando aquele momento, Comecei a escrever a carta quando o sábado nem bem tinha amanhecido, só parava para ir ao banheiro e comer – nada mais, E assim segui pela noite de sábado afora até a madrugada do domingo, quando enfim parei e consegui adormecer, No domingo à tarde, quando despertei, parecia que tudo aquilo tinha sido um pesadelo, mas não tinha, E fui dar-me conta disso quando vi aquelas dez folhas da carta manuscrita ali ao meu lado na cama, Eram a prova física, material, da dor emocional que eu vivera na real, não em sonho, Minha cabeça doía como se tivesse sido batida repetidamente e com força sobre uma eira, Acordei naquele dia e, além de “reaprender a andar” – como faço todos os dias dado que não sou uma pessoa matutina –, tive que aceitar que tudo aquilo tinha de fato ocorrido, e que pela frente eu teria então que me deparar com um colossal exercício de superação: eu teria que reaprender a viver, ser feliz, amar…, E para todo esse reaprendizado levei um ano, (As borboletas dentro da lata de ervilha Jurema estão mortas.), Não saberia mensurar quanto cresci emocionalmente com esse episódio – bem verdade que nem saberia dizer se isso foi ou é possível, Quero crer que nem tudo foram perdas, que eu cresci, amadureci, mas isso é apenas uma suposição – otimista, Foi um ano em que minha vida transcorreu como a melancolia solitária de um quadro de Edward Hopper, Felizmente, hoje tudo isso é passado, embora seja um passado que ficará por um tempo (a vida toda?) incrustado em meu ser como um nicho, fechado a partir do momento em que rasgara a cópia daquela carta, E cá estou, diante de você, Não, não vim aqui pedir para voltarmos, ou coisa do tipo – nada disso, Não sou louco a esse ponto, Vim apenas para pedir-lhe a via original da carta, caso ainda a tenha, Ela guarda manchas das minhas lágrimas, coisa que a cópia não tinha – pelo menos não nitidamente, Gostaria de emoldurá-la em um quadro e pendurá-la em um espaço que tenho ainda vazio na parede da parede do quarto, Encontrei uma moldura linda outro dia naquele mercado de pulgas ali da praça Benedito Calixto, e logo pensei que essa carta seria ideal para preenchê-la, à maneira de um quadro desses de naturezas mortas.

Milonga

Há horas esperava naquela fila, tinha sido a primeira das últimas a chegar: depois dela, ninguém mais conseguiria entrar no abrigo naquela noite, pois a capacidade deste estaria então totalmente superada.

Para se proteger do frio cortante que fazia naquela noite, Milonga se punha a mais próxima possível de quem estava à sua frente e atrás dela na fila. Um esforço em vão, pois, assim como ela, os demais que ali aguardavam estavam fracos demais para que de seus corpos irradiasse algum calor capaz de aliviar o frio, percebido ainda mais intenso pelo vento forte e incessante. Além do frio, também a fome era intensa: os corpos daqueles que aguardavam sua vez de entrar no abrigo eram apenas pele sobre ossos, num conjunto precariamente coberto por meros farrapos.

A passos lentos, a fila de umas trinta pessoas andava. O grupo seguia entoando lamúrias esperançosas, ansiosos que estavam pelo momento em que poderiam desfrutar do alívio de ter um teto sobre suas cabeças e um prato de comida quente nas mãos. Os issos e aquilos de que se viam privados no dia a dia: uns por perderem emprego, outros por serem expulsos de casa ainda jovens; havia também aqueles para quem a rua era a realidade com que conviviam desde sempre. Para cada um, uma história, mas em todas havia algo em comum: o sofrimento do desamparo.

É certo que é de cada um a medida do próprio sofrimento, mas Milonga trazia consigo um aspecto que, se não tornava o todo do seu sofrimento do desamparo maior que os dos demais, ao menos tornava mais pronunciada a parte correspondente ao medo derivado do não-pertencimento: ela era uma cadela vira-lata.

Milonga havia sido adotada por uma família de sem-teto quando ainda era uma filhotinha que mal havia desmamado da mãe, que, junto com seus irmãos e irmãs, fora abandonada por uma família com teto.

Portanto, desde muito cedo, a realidade das ruas sempre esteve na sua vida. Antes, porém, por mais difíceis que fossem as condições de sobrevivência, Milonga via os humanos como uma fonte de cuidado: naquela família adotiva, era a mulher que lhe dava de comer, tirando o que podia das sobras das pequenas e escassas refeições; era junto ao corpo do homem que ela se deitava nas noites frias para aquecer seu próprio corpo; era com a menina que ela brincava de correr pelas ruas, rindo-se aos latidos.

Dias longínquos cuja memória há muito estava reduzida a cinzas.

A família adotiva viu-se obrigada a abandonar Milonga quando esta, mal tendo deixado a infância para trás, engravidou de um outro cachorro vira-lata. Temendo por ter de dividir o já pouco sustento com mais bocas, o homem dopou a cachorra com cachaça e a abandonou em um beco. Dali, ele mais a mulher e a menina foram para o mais longe possível, para que fossem mínimas as chances de reencontrarem a cadela.

Depois desse episódio, Milonga passou a encarar os humanos de outra forma: tornou-se agressiva. Latia e avançava sobre qualquer pessoa que dela se aproximava. Num desses surtos de violência, atacou um homem bêbado, que para se defender das mordidas da cadela, socou-a na cabeça duas vezes e, num gesto certeiro, chutou-a com força na barriga, dilatada pela cria que então trazia ali dentro. Ferida e assustada, Milonga saiu correndo, ganindo alto, como que a pedir socorro a quem pudesse lhe ouvir, mas embora de fato seu ganido fosse ouvido até de muito longe, ninguém apareceu para socorrê-la. Mesmo os outros cães com quem ela cruzava em sua corrida, olhavam-na com indiferença. A dor que sentia era tão intensa que, depois de correr uns dois quarteirões, não resistiu e caiu desmaiada.

Pouco mais de vinte e quatro horas depois, acordou, ainda se sentindo meio atordoada. Estava bastante faminta e para saciar a fome não hesitou em devorar o produto de seu aborto: quatro minúsculos fetos, envoltos em sangue e líquidos corporais, que jaziam sem vida pouco abaixo de onde seu corpo estava deitado, num local escuro, na sarjeta de uma calçada, embaixo de uma ponte, cercada de moscas varejeiras, atraídas pelo mal cheiro dos pequenos defuntos que Milonga havia parido.

Com a fome saciada, conseguiu reunir forças para se levantar e sair andando, mesmo que sem rumo certo. Só queria poder sair daquele lugar escuro, fugir daquelas moscas do tamanho de olhos humanos.

Passou vários dias assim: indo para lá e pra cá, perambulando pelo centro da cidade, comendo os restos de comida que encontrava nas lixeiras, bebendo água das fontes das praças emporcalhadas ou da própria chuva, dormindo onde o cansaço lhe ordenava que parasse.

Quando as temperaturas dos dias e das noites começaram a cair, bateu-lhe uma certa saudade do homem que a abandonara: não tinha mais o corpo dele para se deitar ao lado e se aquecer nas noites frias. Milonga emagrecera bastante, era só quase pele e ossos. Numa manhã bastante fria, uma velha senhora com quem a cadela cruzara pelas suas andanças pela cidade, apiedou-se dela, tirou uma velha blusa de lã da bolsa e com ela vestiu o corpo magro de Milonga. A blusa, embora bastante corroída pelo tempo e com alguns buracos, conseguia preservar algum calor sobre o corpo magro da cadela.

E foi vestida nesses andrajos que Milonga, certa noite, encontrou aquele abrigo em cuja fila para entrar a encontramos.

Quando chegou sua vez de ser atendida, o homem que organizava a entrada não percebeu que se tratava de uma cadela

(são tão humanos os cães que sofrem)

e deixou-a passar para se juntar às demais pessoas que já estavam lá dentro, pessoas que viviam uma vida de cão, sobrevivendo como vira-latas.

Circulando dentro do abrigo, Milonga se deparou com um par de pernas que lhe era familiar: pertencia à mulher da família que a abandonara. Milonga chegou mais perto, a fim de, com o olfato, certificar-se daquele indício que sua visão muito fraca havia apontado.

De fato, era a mesma mulher, mas estava sozinha. Nem o marido nem a filha estavam ali junto dela. Em seu rosto, via-se um olhar de abandono e desamparo, o tipo de olhar que Milonga havia se acostumado a se deparar desde que passara a viver sozinha. Também ela, desde então, trazia esse olhar em seus olhos.

Quando a mulher avistou Milonga, o seu olhar de repente mudou, indo do abandono e desamparo para a alegria. A mulher correu em direção à cadela, e chegando até ela, abraçou-a e beijou-a, chorando de emoção.

Mas Milonga já não era mais aquela cadela amorosa que a mulher conhecera. Trazia dentro de si um desejo de vingança e tal se deu sob a forma de um

– Tiro!

Alguém gritou, seguido de tantos outros que também gritaram

– Tiro!

– Tiro!

– Tiro!

quase que em coro, depois que se ouviu um estampido muito alto atravessar o denso rumor de vozes e por um breve instante desviá-las daquilo que as entretia.

O pânico instalou-se no local, com todo mundo correndo, sem rumo, atropelando-se uns aos outros, em busca de proteção contra o que aquele barulho de tiro representava na cabeça de cada um. Quando tudo se acalmou, como a poeira que se assenta depois de um vendaval, um círculo de pessoas se formou ao redor de Milonga. Ela estava deitada ali no chão do abrigo, com seu corpo todo banhado de sangue: a cadela tinha sido alvejada por um tiro, disparado pela arma de alguém que, ao ver as lágrimas nos olhos da mulher que a abraçava, julgara que ela estava sendo atacada por Milonga. A bala atingira em cheio o local próximo ao seu coração.

Julgando-a morta, os que ali estavam nem chegaram a socorrê-la. Limitaram-se a retirar dali o corpo e jogá-lo em uma lixeira do lado de fora, onde Milonga de fato veio a falecer poucos minutos depois, vítima de pura desumanidade.

José

Não havia mais nada a fazer: diante do corpo da mãe, estirado sobre o caixão à sua frente, só restava a José deixar fluir dos olhos o choro envergonhado de quem sempre fora ensinado, pela própria mãe, Dona Maria, que

– Homem não chora.

Ela também costumava dizer:

– Não me apego à tristeza.

E com isso em mente, José beijou a pele fria da testa dela e fez sinal para os homens da funerária fecharem o caixão, que dali levaram para o cemitério. Para lá, o rabecão seguiu sem cortejo.

Fora esses dois encarregados que a funerária havia mandado para cuidarem do velório, nenhuma outra alma viva fazia companhia a José: ele era, então, o único sobrevivente de uma família devastada.

Seu pai, seus dois irmãos mais novos e agora sua mãe, todos tinham partido, um em seguida ao outro, todos dentro de um curto espaço de tempo. Mal José se curava do luto da perda de um familiar e logo outro vinha a falecer: primeiro foi seu pai, depois o irmão do meio, em seguida o mais novo e, anteontem, foi a vez de sua mãe, cuja morte súbita punha fim a essa cadeia mórbida que, ao todo, não tinha durado nem sequer um mês.

A causa das mortes era desconhecida. Nem mesmo os médicos do hospital da cidade sabiam dizer. Na falta de uma justificativa científica, José atribuía as mortes à vontade de Deus, em cuja companhia acreditava que seus familiares agora estavam. Era um homem bastante religioso, daqueles de quem se diz ter fé inabalável.

No caminho de volta para casa, ao passar defronte a igreja, José se benzeu como de costume. Sentada no primeiro degrau da escada que levava à porta da igreja, uma velha senhora, em farrapos, estendeu-lhe a mão direita para pedir uma esmola qualquer. Ao vê-la, José interrompeu seu ritual e, com os olhos vermelhos como um pôr do sol de outono, começou a desferir chutes sobre a velha, como se a querer descontar nela toda a dor por que passara no último mês, derivada da perda de seus familiares. Chutou-a na cabeça, no peito, no estômago, chutes fortes, certeiros. Na falta de forças para gritar, a velha apenas gemeu, gemeu e logo depois silenciou: estava morta.

Ninguém presenciara aquela cena, ou se presenciaram, não se importaram. Deus testemunhara e nada fizera para impedir, habituado que estava a ver tantos de seus filhos morrerem nas mãos de outros tantos de seus filhos pelo mundo afora.

Tomado pela adrenalina do assassinato que acabara de cometer, José entrou na igreja e foi se confessar. Ao padre, contou tudo que lhe ocorrera na última semana, mas omitiu que tinha acabado de matar uma velha senhora na porta daquela mesma igreja. No final da confissão, foi perdoado.

Os sinos da igreja anunciavam ser 6 da tarde, quando José passou pela mesma porta onde antes a velha senhora pedia esmola – seu corpo ainda estava lá, ensanguentado como as mãos do Nazareno na cruz.

Poucos passos adiante, José tomou o ônibus que o levaria para casa, mas no meio do caminho, decidiu descer e seguir para um bar. Precisava, como se diz, encher a cara. Sentado diante do balcão, sobre um banquinho que mal acomodava suas nádegas magras, ele pediu uma cerveja, tomou, depois pediu outra, tomou, e assim seguiu noite adentro até por volta das 3 da madrugada, quando então, sendo o último cliente, foi convidado pelo balconista a pagar a conta e ir-se embora: era hora de fechar o bar.

Mesmo bêbado, José conseguiu pagar a conta e saiu. Foi caminhando pela rua, àquela hora completamente deserta, trançando as pernas até cair alguns metros depois, na frente de um mercadinho, onde outras pessoas então dormiam, em meio a colchões e cobertores improvisados. Quando o dia amanheceu, todos dali foram enxotados pelos seguranças do mercadinho. José, de tão bêbado, não se mexia. Não fosse pela temperatura de seu corpo e pelo pulsar de seu coração, diriam estar morto.

Reclamando do fedor de álcool que o corpo de José exalava, os seguranças o levantaram e o jogaram em uma caçamba de lixo, do outro lado da rua. E ali, em meio ao lixo, e como se lixo também fosse, o corpo de José foi recolhido pelos lixeiros e jogado dentro do caminhão de lixo, quando este por ali passou no meio da tarde daquele dia.

Ao verem seu corpo, prestes a ser triturado pelo equipamento do caminhão, os lixeiros gritaram ao motorista que parasse a máquina. Os dentes das engrenagens pararam de mastigar o lixo pouco antes de chegar ao corpo de José.

Os lixeiros, então, pegaram o seu corpo, ainda inconsciente, e jogaram-no sobre o gramado imundo de uma praça qualquer ali do centro, suja e mal cuidada.

Horas depois, já com o sol alto, José foi acordado pelo arrulhar dos vários pombos que o cercavam. Ao ver aqueles serezinhos alados, José pensou estar no céu, em meio aos anjos, com Deus e, portanto, na companhia de seus familiares.

Uma forte enxaqueca agitava suas têmporas e fazia doer sua cabeça a ponto de deixá-lo zonzo. Ficou ali o restante do dia, deitado, sem forças para se levantar.

Pouco antes da meia-noite, um caminhão da prefeitura passou por ali varrendo o chão com um potente jato de água, fria como a testa da mãe morta que José beijara no dia anterior.

Junto a toda a sujeira da praça, e como se sujeira também fosse, José foi varrido dali para uma sarjeta do outro lado da rua.

Na falta de forças para reagir, levantar-se, José nada disse, nem tampouco gemeu. E, embora seus olhos, assim como todo seu corpo, estivessem encharcados, não era propriamente de choro. Afinal, como dizia sua mãe:

– Homem não chora.

Na manhã do dia seguinte, ao acordar, vendo seu corpo ainda todo encharcado, cansado e com a mente atordoada, José reuniu as poucas forças que lhe restavam para se levantar e então caminhou, meio trôpego, até um dos bancos da praça. Ali, sentou-se, e com o rosto entre as mãos, pôs-se a chorar

(– Homem não chora.)

feito uma criança.

Dona Lucy

Era finalzinho de tarde e, pela janela da sala do pequeno apartamento, aberta para aliviar um pouco o forte calor, os raios do sol poente entravam. Àquela hora, a luz que eles traziam tinha matizes de sépia, que conferiam àquele ambiente uma cor similar ao de uma foto antiga.

Eu acabara de chegar e, ali comigo, estava apenas Dona Lucy, a moradora daquele pequeno conjugado de quarto e sala. Depois de nos cumprimentarmos, sentamo-nos cada um em uma poltrona, ao redor de uma mesinha de centro de pés palito, e, do nada, ela desandou a falar:

— Exceto pela Meryl Streep, a Julianne Moore e a Fernanda Montenegro, nenhuma outra atriz de Hollywood me mobiliza mais para sair de casa e ir ao cinema.

Disse-me Dona Lucy, sem que eu tivesse lhe perguntado nada a esse respeito.

Seu olhar melancólico contrastava com seu sorriso fácil e largo. Apesar de bastante idosa, era uma mulher altiva e, pelo visto, vaidosa o bastante para cuidar de estar elegante mesmo dentro de casa. Quando cheguei, encontrei-a vestindo um conjuntinho de tailleur e saia, por sobre uma blusinha de seda. No seu rosto, todo coberto pelo pó de maquiagem, com duas rodelas mais avermelhadas por sobre as bochechas, o destaque eram as sobrancelhas desenhadas a lápis, um pouco escondidas por detrás dos elegantes óculos de grau com armação de tartaruga. Sobre a boca, ela passara um batom de um rosa bem vivo e, em volta do pescoço, havia um colar de pérolas tão bem feitas que até pareciam verdadeiras.

— Aceita um café?

Ela me perguntou, já enchendo uma xícara daquelas de chá de porcelana branca e pousando-a, diante de mim, sobre a mesinha de centro que separava a poltrona dela da minha.

Era a primeira vez que nos encontrávamos pessoalmente

(até então eu a tinha visto apenas por fotos, mesmo assim, antigas)

e naquele instante, tendo à minha frente aquela mulher corpulenta, de cabelos tingidos de preto, cortados à escovinha, percebi que estava como que diante de uma grande enciclopédia, de heráldica encadernação em couro, que mesmo com algumas de suas folhas manchadas e rasgadas, ainda assim preservava algum valor e alguma utilidade como obra de referência. Em resposta, disse-lhe, cortesmente:

— Aceito.

(à essa altura a xícara já estava preenchida até a borda de um perfumado café feito no coador de pano)

Eu tinha ido ao encontro dela para tratarmos de assuntos ligados à herança de meu pai, Seu João: Dona Lucy era viúva dele e minha madrasta. Não cheguei a conviver com ela, pois eu já tinha saído da casa do meu pai, quando ele a conheceu. Quando meu pai, Seu João, e minha mãe, Dona Maria, se separaram, fui viver com minha mãe, pois me era mais conveniente. Conhecia Dona Lucy apenas pelas histórias que meu pai me contava a respeito daquela mulher que tanto o fascinara.

— Dona Lucy…

Tentei falar-lhe, mas com um levantar da palma da sua mão direita, enrugada e cheia de pintas senis, à semelhança de uma pele de leopardo, ela interrompeu a minha intervenção. Então, mesmo consciente do quão inusitadas tinham sido suas palavras iniciais, deixei-a livre para continuar falando. Àquela altura, eu nutria, bem verdade, certa ansiedade por saber se suas próximas palavras denunciariam, como de início, outras surpresas, tão inusitadas quanto as primeiras, o que daria àquela conversa um delicioso quê de loucura.

— Lembro-me da primeira vez que fui ao cinema.

Ela começou a contar, olhando-me com um olhar terno, como se estivesse a olhar para seu verdadeiro filho, que ela nunca chegou a conceber.

Eu também me lembrava da primeira vez em que eu tinha ido ao cinema, muito embora não conseguisse, ali naquele momento, diante dela, recordar-me do nome do filme, nem com quem teria ido, se é que tinha ido com alguém – recordava-me apenas que era muito jovem. Melhor seria dizer, portanto, por fidelidade à verdade, que de nada de fato me recordava — apenas pensei em falso ter tal memória guardada comigo.

— Estava vestida com meu melhor vestido à época.

Ela continuou, intercalando sua fala com generosos goles de café.

A salinha em que estávamos tinha uma atmosfera kitsch, sensação reforçada pela presença, naquele claustrofóbico recinto, de estantes e mesinhas de centro e de canto, recheadas de incontáveis bibelôs de louça, em formato de bichinhos de diversos tamanhos, tendo sobre o piso um carpete magenta, empoeirado,

— Eu…

fonte, eu imaginava, do forte cheiro de naftalina que tomava conta do ambiente.

— … não comprava pipocas, nunca gostei do sabor e gostava ainda menos do barulho que as pessoas faziam ao mastigá-las dentro da sala de projeção. Bastavam-me umas balas de anis.

Ela confessou.

De minha parte, sempre preferi o cheiro das pipocas ao seu sabor. Compartilhava totalmente com ela, contudo, a antipatia por ruídos quaisquer, de mastigação em especial, dentro das salas de cinemas. Por esta e por outras razões, minha incontinência urinária sendo a principal, há anos, eu mesmo vinha diminuindo gradualmente minha frequência às salas de projeção, preferindo apreciar a sétima arte no doce conforto de meu lar.

— Certa vez,

Ela pronunciava as palavras em um ritmo lento, talvez por causa do calor — ou seria por causa da idade? —, não sei. Sua malemolência dava-me a impressão de que aquela conversa avançaria pelo restinho da tarde e seguiria pela noite adentro.

— … fui até o toilette durante uma sessão de Casablanca, e lá encontrei com a Suzana, sua mãe.

Ela continuou.

— Dona Lucy.

Tentei interferir, mais uma vez sem sucesso.

— Suzana estava chorando, pois seu namorado de então a abandonara logo no início do filme, ainda quando os nomes de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman apareciam na tela. Dei minha mão a ela e a abracei, trazendo sua cabeça para junto de meu peito. Seu choro foi cessando aos poucos, assim como os soluços.

Suzana não era minha mãe, mas sim meu pai, Seu João: ele adotou o nome Suzana após separar-se de minha mãe, Dona Maria, e depois de passar por uma cirurgia de mudança de sexo. Mesmo depois desse procedimento, João continuou sendo seu nome oficial, conforme registrado em seus documentos.

— Lucy!

Chamava-a pelo seu nome, mas ela parecia absorta em seus pensamentos e memórias, mirando o vazio com aqueles olhos castanhos, por detrás das pesadas lentes de seus óculos de armação de tartaruga.

— Ah, Suzana…

Um gato persa, que cochilava sobre o colo de Dona Lucy, talvez cansado de esperar em vão por carícias, pulou para o chão e seguiu, lentamente, para a cozinha — pelos miados que emitia, que mais pareciam lamentos, devia estar com bastante fome.

Eu sabia que Dona Lucy e meu pai, depois de ele se separar de minha mãe e mudar de sexo, haviam tido um longo e tórrido relacionamento. Meu pai, muitos anos depois, já separado de Dona Lucy, costumava me contar histórias daqueles anos em que convivera com ela, quando nos sentávamos à mesa para jantar, apenas ele e eu, nas raras vezes em que ele me visitava, depois que minha mãe, Dona Maria, faleceu por causa de um ataque do coração. Isso tudo antes de ele mesmo morrer de um câncer na próstata.

Os sons dos sinos da igreja da Consolação faziam-se ouvir não muito longe dali, anunciando a chegada das 6 da tarde. Então Dona Lucy pontuou:

— Naquele instante em que vi sua mãe, sabia que nossa história iria para além daquele encontro casual.

E de fato assim foi: Dona Lucy e meu pai, segundo o que ele me contava quando ainda vivo, conviveram por muitos anos, chegando a morar juntos em um pequeno sobrado nas proximidades do prédio onde ela ainda mora, na região do Baixo Augusta. Aquele sobrado já não mais existe: deu lugar a um prédio de apartamentos, todos eles diminutos como o de Dona Lucy.

Os ruídos da cidade, bem mais fortes àquela hora do final da tarde, entravam pela janela entreaberta da sala do pequeno apartamento dela, que ficava de frente para a Rua Augusta.

O gato voltava da cozinha, de rabo ereto e com um olhar pidão, quando alguém interfonou. Como que finalmente liberta do transe em que se metera desde minha chegada, ela levantou-se e foi atender. Mandou subir quem então chegava. Poucos instantes depois, alguém bateu à porta do apartamento e chamou:

— Seu Jorge?

Dona Lucy foi atender.

Ao abrir a porta, cumprimentou o homem que ali estava, do lado de fora, com um firme aperto de mãos e perguntou-lhe:

— É a ração do Domenico?

Era o nome do gato.

— Sim, Seu Jorge. Trouxe a ração para gatos que o senhor havia encomendado comigo, ontem, lá na loja.

— Ah, obrigado. Quanto lhe devo, Seu Moacir?

— Depois acertamos, Seu Jorge. Tenha uma boa tarde.

E assim o homem despediu-se e foi embora.

Dona Lucy fechou a porta, pediu-me licença e foi até a cozinha, seguida por um saltitante e ansioso Domenico. Ela carregava o saco de 30 quilos de ração para gatos, sem aparentar fazer muito esforço — o saco de ração parecia-lhe de fato muito leve.

Sozinho na sala, avistei um porta-retratos, sobre um aparador, logo atrás da poltrona onde Dona Lucy estava sentada até alguns instantes atrás. Um tanto apertado no meio dos muitos bibelôs de louça ao seu redor, o porta-retratos, em formato de coração, revelou-se aos meus olhos somente depois que ela foi dar de comer ao gato, pois antes estava eclipsado por detrás da cabeça dela.

Emoldurada pelo porta-retratos, havia uma foto antiga, cujos tons de sépia combinavam com o tom dos raios de sol que inundavam a sala no momento que eu ali chegara. Naquela foto, eu podia ver o registro da imagem de meu pai e Dona Lucy beijando-se, tendo ao fundo uma praia ensolarada. Pareciam apaixonados. Na parte de baixo da foto, uma pequena legenda, escrita à caneta Bic, contextualizava: Jorge e João, Santos, 1975.

Dora

Há horas, ela permanecia sentada à mesa daquela cafeteria, onde nunca estivera antes, sem fazer nem sequer um pedido, apenas parada a contemplar o ambiente. Com a mente distante, seu silêncio era uma nota dissonante na sinfonia criada pelo burburinho das mesas ao redor.

Ninguém notara sua chegada ali e, até então, nem sua presença se fazia perceber.

Em seu celular, depositado sobre a mesa, em meio a chamadas perdidas, pipocavam mensagens a perguntar:

“Onde vc tá?”

a mostrar preocupação:

“Mãe, estamos preocupados”

a pedir:

“Volta pra casa”

a chamar:

“Dora”

todas elas, ignoradas.

Dora saíra de casa naquele domingo de manhã, deixando para trás marido, dois filhos adolescentes e, sobre a mesa da sala de jantar, impecavelmente arrumada do mesmo modo como há quinze anos vinha fazendo: pão, bolo, frios, frutas e café quentinho.

Orgulhava-se de ser um exemplo de esposa, de mãe, de dona de casa, mas sentia que lhe faltava algo, não sabia dizer o quê, e essa angústia vinha a acompanhando há meses, tornando-se cada dia mais intensa e profunda.

Ao acordar pela manhã, naquele domingo, depois de arrumar a mesa para o café, enquanto todos os demais membros da família ainda dormiam, alguém bateu à porta da casa.

Dora nem teve tempo de pensar quão estranho e, para dizer mais, inusitado, era alguém vir bater à sua porta àquela hora, em pleno domingo. Sem se importar que ainda vestia camisola e calçava pantufas, foi atender quem batia.

Ao abrir a porta, não viu ninguém do lado de fora, mas algo dentro dela, vindo do fundo de sua alma, ordenou-lhe quase implorando:

“Fuja!”

Ao ouvir aquele comando, Dora só teve tempo de retornar, às pressas, para a sala de jantar, a fim de pegar seu celular, e então, cumprindo a ordem que acabara de ouvir, saiu de casa do jeito que estava, com a roupa do corpo, levando consigo apenas o celular. Deixou a porta da casa sem trancar à chave, apenas encostada.

Perdeu a conta de quantos quarteirões andou a esmo, até chegar àquela cafeteria onde a encontramos, e na qual ela ainda permanece sentada à mesa, sozinha, sem fazer nem sequer um pedido.

Uma notificação na tela de seu celular chamou-lhe a atenção, tirando-a por um segundo do torpor em que se encontrava. Ignorando as chamadas perdidas e todas as demais mensagens que a tela exibia, ainda a perguntar:

“Cadê vc?”

a mostrar preocupação:

“Vc tá bem?”

a pedir:

“Vem tomar café com a gente, mãe”

a chamar”

“Vem, Dora”

ela dirigiu seu dedo indicador direto para a única notificação que fora capaz de lhe tirar do transe e abriu-a.

Ao fazê-lo, a foto de uma menina com um cachorrinho ao colo, abriu-se na tela, remetendo Dora a lembranças de sua infância.

Naquela época, idos de 1970, junto com seu pai e sua mãe, ela vivia numa casa de madeira, na zona rural do estado. Como a menina da foto, Dora também era loira e tinha um cachorrinho de estimação chamado Rex.

Diferentemente da menina da foto, que sorria de alegria, a infância de Dora tinha sido triste, não deixando muita margem para que pudesse sorrir, a não ser quando, sozinha, brincava com Rex longe dos olhos de seu pai e de sua mãe. Sob as vistas grossas desta, desde muito pequena Dora foi violentada por seu pai.

No dia seguinte ao seu aniversário de dezoito anos, não suportando mais viver ao sabor do violento desejo de seu pai, Dora fugiu de casa.

Com algum dinheiro que, às escondidas, tinha juntado fazendo serviços domésticos nas casas das senhoras de classe da pequena cidade vizinha, ela foi para a rodoviária e, disfarçada com um lenço na cabeça, pegou um ônibus para São Paulo.

Horas depois, desembarcava na cidade grande, sem rumo certo a tomar, apenas com o dinheiro do bolso e a roupa do corpo, mas determinada a dar uma reviravolta em sua vida.

Seu maior sonho era ter uma família perfeita: marido e filhos.

No início, foi viver numa pensão para moças, onde a vaga do quarto, que dividia com mais três desterradas vindas de várias partes do país, custava barato o suficiente para caber em seu parco orçamento. Por uns dois anos, aquela pensão foi sua residência paulistana.

Só saiu dali para morar com João, o bancário com quem viria a se casar. No ano seguinte ao casamento, nasceu Pedro, o primeiro filho. Um ano depois do primeiro, André, o segundo filho, veio ao mundo.

O sonho de Dora de ter uma família perfeita parecia, enfim, realizado.

Olhando ao redor, ela podia dizer que seu marido era perfeito, seus filhos eram perfeitos, sua casa, mesmo simples, era perfeita. Ao menos, esforçava-se para se convencer disso.

A partir de um certo ponto, tanta perfeição começou a sufocá-la. Esse sentimento, que no começo ela mal percebia, foi crescendo, crescendo, até o dia em que, tornado insuportável, levou-a a sair de casa com a roupa do corpo, sem nem sequer se importar em fechar a porta à chave.

Não queria mais aquela família perfeita, que então reclamava sua presença por meio de mensagens e ligações no seu celular.

Queria se jogar de uma ponte, sentir a adrenalina que lhe invadiria o corpo segundos antes de se lançar lá do alto para o vazio logo abaixo. Há anos, não sabia o que era sentir aquilo, sentir-se viva. Era isso que queria: sentir-se viva, nem que fosse para, dali a instantes, morrer. Aqueles instantes de intensidade valeriam todos os anos passados com sua família perfeita.

A decisão estava tomada: sairia dali e seguiria direto para o Viaduto do Chá, ali próximo, e de lá da borda no meio do viaduto, jogaria seu corpo para cair sobre a dureza do piso do Vale do Anhangabaú, metros e metros abaixo, frações de segundos depois. Nem sentiria dor e, muito provavelmente (assim pensava), ninguém, dentre os passantes, tomaria a iniciativa de impedi-la. Sua esperança era mesmo viver anônima aqueles seus últimos e intensos minutos de vida.

Antes, porém, de levar a cabo sua decisão, pediu um café: a cafeína haveria de ajudá-la a estar desperta para viver seus últimos átimos de vida, aumentando, assim, a intensidade desses instantes.

Com a cafeteria cheia, como era de se esperar, o pedido demorou para chegar à mesa de Dora e, quando enfim o café lhe foi servido, já estava frio, longe, portanto, de um café perfeito.

Ao ingerir aquela bebida fria, Dora sentiu falta do café quentinho, coado, que todos os dias pela manhã preparava e servia para acompanhar os pães, os bolos, as frutas e os frios servidos para sua família.

Levantou-se da mesa, pagou a conta e voltou para casa.

Maria dos Anjos

Seu nome de batismo surgira por uma obra do simples acaso: na antevéspera de seu nascimento, sua mãe escrevia uma mensagem em seu celular e, no lugar de

“Eu poderia”

o corretor automático de texto levou-a a escrever

“Odemira”

Não percebendo o erro, a mãe mandou a mensagem assim mesmo. Somente depois de receber uma mensagem de sua patroa

(a pessoa com quem então trocava mensagens)

em resposta, dizendo não ter entendido nada

(– Odemira?

perguntava a patroa)

foi que a mãe enfim deu-se conta de seu erro.

Por meio daquelas mensagens, a patroa informava à mãe que esta poderia tirar sua licença maternidade já a partir daquele dia, e que iria pagar-lhe o salário normalmente durante o período de sua ausência: cerca de seis meses.

Insegura quanto a toda essa generosidade, a mãe, naquela troca de mensagens com a patroa, queria dissuadi-la da ideia da licença dizendo

– Eu poderia voltar a trabalhar na semana que vem mesmo, se a senhora preferir

mas a patroa foi firme em sua decisão e a mãe teve mesmo que aceitar sair de licença.

Emocionada com tanta generosidade, e religiosa como era, a mãe, no dia seguinte, mesmo depois de já ter decidido junto com o pai que a menina que estava por nascer chamar-se-ia Maria, mudou de decisão: a menina que estava para chegar ao mundo ganharia o nome de Odemira.

(não deve haver nenhuma outra Odemira por aí, pensou) 

Quando soube da decisão, o pai não gostou da mudança inesperada e repentina de planos para o nome de sua filha, mas depois de perguntar à esposa

– Qual a razão dessa mudança em cima da hora?

e, ainda,

– Não tínhamos combinado que seria Maria?

terminando seu interrogatório com

– De onde veio esse nome Odemira?

e da mãe receber uma explicação, que atribuía a mudança de decisão pelo nome da menina à obra do divino

– Foi vontade de Deus

o pai, ainda se sentindo um tanto contrariado, no final acabou aceitando. A mãe deu o assunto por encerrado.

No dia seguinte, nascia Odemira. Na certidão de nascimento da menina, contudo, constou:

Eupoderia Maria dos Anjos

E não Odemira Maria dos Anjos.

(como se vê, o pai ao menos conseguiu emplacar o Maria como segundo nome da filha)

Mas o erro grosseiro de grafia do primeiro nome da menina não se fez notar pelo cartorário, nem pela mãe e nem pelo pai, e assim, Eupoderia ficou sendo o nome oficial da recém-nascida.

Seus pais eram gente simples, que acabara de trocar a vida na zona rural de São Paulo, por um barraco às margens da cidade. Sua mãe até que sabia ler e escrever um pouco, na verdade apenas as mensagens que escrevia e lia em seu celular, muitas delas, como sói acontecer, fazendo uso de abreviações como “vc”, “pq”, que se fossem escritas no vernáculo, ela não entenderia. Seu pai, por sua vez, tinha um melhor nível de alfabetização, se comparado à mãe. Ainda assim, também ele tinha suas dificuldades. Por exemplo: quando ele precisava passar um cheque na mercearia, tinha de recorrer com frequência a ajuda de algum amigo ou conhecido mais instruído para preencher o cheque: faltava-lhe traquejo e autoconfiança para lidar com letras, quando estas vinham acompanhadas de números.

De qualquer forma, desde seu nascimento, nunca ninguém chamou a menina pelo nome, fosse esse Eupoderia

(como estava em sua certidão de nascimento)

ou Odemira

(como era o desejo de sua mãe, aceito depois por seu pai, a contragosto, para fazer a vontade de Deus)

Chamavam-na Mira, ou Mira Maria, este último mais frequente quando sua mãe queria chamar-lhe a atenção para alguma travessura, algo raro, dado que a menina era, em geral, bastante comportada. Seu pai, por razões óbvias, preferia chamar a filha de Maria Mira.

Toda a sua primeira infância, a menina viveu assim, sendo chamada simplesmente pelas variações de seu apelido: Mira Maria, Maria Mira, ou simplesmente Mira.

Ela somente foi dar-se conta de seu verdadeiro nome

(aquele que constava em sua certidão de nascimento)

no seu primeiro dia de aula, na primeira série do primeiro grau, quando a professora, seguindo a ordem alfabética da lista de chamada, depois de chamar o nome de Ana, Beatriz, Carla, Daniel, chamou

– Eupoderia?

deixando no mesmo instante formar-se uma ruga de expressão, por entre suas sobrancelhas, a denotar estranhamento. Não recebendo resposta, a professora chamou novamente

– Eupoderia.

Ali sentada, na penúltima fileira no fundo da classe, Mira não relacionava o nome que a professora chamava ao seu. Somente quando a professora, já com alguma dose de irritação, chamou o nome completo

– Eupoderia Maria dos Anjos!

para certificar-se verdadeiramente da presença ou ausência de quem ela chamava, foi que Mira deu-se conta de que, matriculada na sua mesma turma, havia uma menina?

(ou um menino?)

cujo sobrenome era idêntico ao seu.

Na sua inocência pueril, pensou, surpresa, que algum parente ou parenta dela poderia ser seu ou sua colega de turma. Só não sabia dizer quem poderia ser, uma vez que nunca fora apresentada a nenhum parente próximo, fosse menino ou menina, que tivesse sua mesma idade escolar.

Infelizmente, ao que lhe parecia até então, seu ou sua parente não tinha comparecido à primeira aula do primeiro dia da primeira série do primeiro grau.

Somente depois que a professora passou na chamada por Marta, Marcelo, Melissa, pulando em seguida direto para Paulo, Patrícia, finalizando a chamada em Zeferina, que Mira enfim percebeu que, talvez, algo poderia ter dado errado com sua matrícula, haja vista que seu nome, Mira

(ao menos o nome que acreditava ser de fato o seu)

não havia sido chamado pela professora.

Mira ficou com vergonha de erguer o braço e perguntar. Só de pensar em fazer isso, seu rosto já enrubescia e ela sentia o suor descer por suas têmporas. Então permaneceu assistindo à aula, normalmente, como se nada de estranho tivesse acontecido.

Ao final da aula, tendo notado a presença de Mira, ali na penúltima fila da classe, sem ter dito

– Presente!

em nenhum momento da chamada inicial, a professora aproveitou enquanto os demais alunos deixavam a sala de aula, eufóricos para retornar para suas casas, e chamou a menina Mira num canto

– Vem cá

disse-lhe

– Qual o seu nome?

emendou, no que Mira respondeu

– Mira

e, logo em seguida, a professora devolveu

– Mira do quê?

querendo saber dela justamente o sobrenome

– Mira Maria dos Anjos

respondeu a menina.

O sobrenome soou familiar à professora, impressão que ela confirmou não ser desprovida de fundamento ao repassar com os olhos a lista de presença da turma.

A professora então explicou àquela menina, à sua frente, que parecia ser tão doce e simpática, que havia uma chance de que seu nome pudesse estar gravado incorretamente na lista: até então a professora nada sabia a respeito do nome correto da menina.

Para evitar qualquer dúvida, e na tentativa de ajudar, a professora pediu à Mira um documento e, quando a menina tirou a sua carteira de identidade de dentro da mochila rosinha, cheia de motivos florais, que ela trazia nas costas, e mostrou-a para a professora, esta enfim pode ver que o nome da menina era mesmo Eupoderia.

Algo constrangida

(nunca vira alguém com esse nome)

foi dizer à Mira que, ao contrário do que havia pensado e dito, o nome da menina não estava incorretamente grafado na lista de presença: o nome dela era mesmo Eupoderia.

– Veja, está assim em seu documento

disse-lhe a professora, querendo comprovar à menina, com a evidência que lhe parecia a mais inquestionável, o infortúnio de seu nome oficial.

Para a professora, aquilo tudo era um teste para suas habilidades, pois nunca tivera que lidar com uma situação minimamente similar àquela diante de si. A professora bem que ainda tentou contornar a situação, mas depois de confrontada com essa verdade, sem dar chance a mais nada, Mira saiu correndo, chorando, e nunca mais voltou à escola.

A professora bem que ainda tentou segurá-la, gritando

– Eupoderia!

mas foi em vão: Mira nem lhe deu bola.

Depois daquele dia, quarenta anos se passaram: encontramos Mira adulta, mulher feita.

Sofreu muito toda a sua vida com o nome que sua mãe lhe dera, para fazer a vontade de Deus, mas enfim conseguiu, com a ajuda de sua patroa

(uma advogada)

fazer constar em seus documentos apenas e simplesmente o nome Maria dos Anjos. Só que então já era tarde demais: tendo crescido sem frequentar a escola, de onde, no passado, fugira de vergonha ao descobrir seu então verdadeiro nome: Eupoderia, Maria dos Anjos não havia adquirido a alfabetização necessária para ler nem o próprio nome, fosse qual fosse.

Isso poderia fazê-la uma mulher triste? Sim, até poderia, pois, afinal, além de analfabeta, Maria dos Anjos sempre desejara ter se casado e tido filhos, e nenhum destes sonhos tinha alcançado na vida. Até poderia, quem sabe, um dia ainda vir a se casar, mas já estava em uma idade

(quase na casa dos cinquenta)

que médico nenhum, em sã consciência, recomendaria a ela seguir com um parto.

Seu trunfo era que sua mãe lhe ensinara, como ninguém, a se conformar. Essa lição, ela, quando menina, recebia da sua mãe todos os dias, bem na hora do almoço. Não sendo exatamente alguém fácil para se agradar quando o assunto era comida, Mira sempre reclamava com sua mãe o alimento que esta punha no prato dela, para servir de acompanhamento do arroz e feijão de todo dia, no que sua mãe sempre lhe respondia

– É o que tem de mistura para hoje

isso, à época, era o que sua mãe repetidamente dizia a fim de ensinar a filha a se conformar com o que tinha e felicitar-se com isso, ainda que não fosse de seu agrado

– Tem que comer, seja o que for

dizia-lhe a mãe.

Por fim, como habitualmente fazia, a mãe recorria a Deus para reforçar seu argumento, fosse qual fosse, e então orientava a menina a dar-Lhe graças por pelo menos ter o que comer

– Muitos nem isso tem

dizia sua mãe, não restando à Mira, nos idos daqueles anos, outra alternativa senão, de fato, conformar-se e comer o que estava servido à mesa, fosse o que fosse.

Ao menos, atualmente, graças à generosidade de sua patroa, Maria dos Anjos pode desfrutar de uma dieta que lhe agrada mais, ainda que seja derivada apenas das sobras deixadas, a cada refeição, pela patroa e sua família.

– Graças a Deus

diz, sempre ao sentar-se para comer, sozinha, à pequena mesa que lhe é reservada na cozinha

– Muitos nem isso tem

onde come distante da família que a abriga, e sempre depois que todos terminam de comer suas refeições.

Há tantas Marias dos Anjos por aí.

 

Lindaura

Não tinha muita escolha

(para dizer a verdade, escolha nenhuma)

a não ser aceitar aquele emprego: com os boletos das contas depositando-se sobre a soleira de sua porta como os dejetos que a maré alta traz para a praia, Lindaura só poderia responder sim ou sim. E quando o fez

– Sim.

não conseguia esconder seu sorriso.

(há muito não sorria)

Logo em seguida, a secretária de seu futuro chefe estendeu-lhe a mão direita, a fim de cumprimentá-la pela conquista.

– Parabéns.

disse-lhe a secretária, sem o menor esforço para disfarçar seu pouco entusiasmo com aquela mulher magra diante de si, que no dia seguinte começaria como faxineira, ali naquele consultório médico.

Depois desse cumprimento frio, a secretária comunicou a data de início àquela mulher magra diante de si, disparando um

– Pode começar amanhã mesmo

dito de forma contida, no que Lindaura agradeceu dizendo-lhe um

– Obrigada

um tanto tímido, dali então virando as costas e tomando o rumo da porta de saída da pequena sala da secretária, a mesma porta pela qual entrara há cerca de uma hora.

– Até amanhã.

Despediu-se Lindaura, voltando o rosto para trás, num gesto que em nada reverberou: ensimesmada, a secretária continuou ali sentada em sua cadeira, a lixar as unhas de suas mãos, ignorando por completo a mulher magra que partia.

Duas horas depois, Lindaura chegava em casa, ansiosa por levar a boa nova a suas plantas e a seu gato de estimação, Nico.

Ao abrir a porta de casa

(uma casa simples, num bairro simples e distante)

qual não foi a sua surpresa ao deparar-se com o interior completamente vazio: não apenas seus móveis e utensílios tinham desaparecido, como também suas plantas e o próprio Nico não estavam mais lá.

Os larápios que ali estiveram deixaram para trás apenas os boletos das contas que vinham se acumulando sobre a soleira da porta. Tinham levado todo o resto, limpando a casa.

Desesperada, Lindaura queria gritar por socorro, mas uma forte angústia apertava seu peito de uma maneira tal que lhe tirou o fôlego. Depois de recuperá-lo

(só conseguiu fazê-lo quando foi para fora tomar um ar)

quis saber das vizinhas se tinham visto algo.

De Dona Catarina, uma viúva aposentada que vivia na companhia de suas memórias, na casa ao lado, ouviu apenas um

– Não vi ninguém.

Perguntada por Lindaura, Marzipã, como chamavam a mulher que preparava bolos sob encomenda, e que vivia na solidão de seus raros pedidos, na casa em frente, respondeu com um

– Não

tão seco quanto a massa dos bolos que preparava.

Só então Lindaura lembrou-se de perguntar a Deus

– Oh, Senhor, o que aconteceu?

que, como de hábito, ignorou-a por completo.

Angustiada, triste e com o cérebro em disparada, tentando encontrar explicação para seu infortúnio

(justo agora que tinha conseguido um emprego, depois de meses tentando em vão)

Lindaura acabou passando a noite em claro, com a mesma roupa que vestira o dia todo, deitada no chão duro do cômodo da casa que fazia as vezes de seu quarto.

Por efeito do cansaço, caiu no sono por volta das 5 da manhã

(antes do alvorecer)

horário em que deveria estar acordando para poder chegar ao seu primeiro dia de trabalho, com muita sorte, por volta das 7 horas: seu horário de entrada.

Quando finalmente acordou, já era meio-dia. O sol quente, a pino, aquecia o quarto onde Lindaura dormia, fazendo-o parecer um forno de tão quente. Ainda deitada, Lindaura transpirava em bicas. Sua cabeça doía.

Ao levantar-se e olhar ao seu redor, Lindaura viu Nico, no canto do quarto, a ronronar dentro da caixa de sapatos que, forrada com um pano de chão, servia-lhe de cama. Também suas plantas, móveis e utensílios estavam lá, de volta a casa, cada um no seu devido lugar, como se nada tivesse ocorrido.

(será?)

Confusa, mas aliviada, ela levantou-se e, trançando as pernas como se estivesse embriagada, arrumou-se correndo para ir ao seu primeiro dia de trabalho. Não sabia qual justificativa daria para o atraso, mas não poderia de jeito nenhum deixar de ir: tinha boletos para pagar.

(estes não tinham desaparecido; permaneciam jogados na soleira da porta de entrada)

Quando saiu, certificou-se de que a porta estava bem trancada. Não queria passar novamente pelo que passara nem em sonho.

O som de um tambor chegava aos ouvidos dela, vindo de longe, acompanhando-a com seu

TuM

tUm

tUM

por todo o percurso que ela fez da porta de casa até o ponto de ônibus, como o pulsar de uma enxaqueca.

Duas horas e pouco depois, Lindaura chegava ao seu destino, mas no lugar onde, no dia anterior, ela tinha recebido a boa nova de que poderia começar no trabalho

– Amanhã mesmo

havia apenas uma porta trancada e, presa a ela, uma placa não a dizer

NADA

mas algo que Lindaura não sabia decifrar, pois era analfabeta.

Esperança

 

Sua vida sempre lhe parecera um fardo pesado demais para ser carregado sem a ajuda de mais um par de braços. Foi por essa razão

(não por amor)

que, aos 19 anos, Vera casou-se com Alfredo, então com 25 anos, e com ele foi viver num conjugado de quarto e sala no quinto andar do Prédio Esperança, na Rua Matias Aires, quase esquina com a Frei Caneca.

Por uns dois anos, o casamento andou bem, até que ela descobriu que ele a traía com uma jovem viúva, que morava no primeiro andar daquele mesmo prédio.

Esta crônica é, na verdade, muito mais sobre essa viúva, com quem Alfredo traiu Vera.

Seu nome? Lúcia. Sua idade? Por volta de uns 30 anos, embora aparentasse ter algo entre 35 e 40.

Desde o falecimento de seu marido, com quem convivera por quase uma década

(ele havia falecido já fazia uns dois anos)

Lúcia vinha envelhecendo de maneira mais intensa: desde então, para ela, cada ano de vida contava como dois ou mais, seguindo um sistema de contagem parecido com o que, em geral, aplicamos aos cachorros.

Falando nisso, Lúcia não vivia propriamente sozinha: dividia seu apartamento

(também um conjugado de quarto e sala)

com a cadela vira-lata que um dia encontrou abandonada à porta do prédio, quando voltava do supermercado. Lúcia apiedou-se daquela cadela magra e faminta e acabou adotando-a. A cachorra ganhou de Lúcia o mesmo nome do prédio onde morava, em cuja entrada ela a encontrara: Esperança.

Sob seus cuidados, Esperança logo ganhou peso, tornando-se forte e robusta.

Lúcia morava de aluguel, que pagava com a pensão que recebia pela morte de seu marido. Não era muito dinheiro, apenas o suficiente para cobrir sua subsistência e, também, a da Esperança.

Os poucos trocados que ainda sobravam, Lúcia usava para, vez em quando, fazer apostas no jogo do bicho. Apostava sempre no cachorro, em homenagem à Esperança. Nunca ganhou nada para além de um pouco de diversão mundana.

Sempre juntas, Lúcia e Esperança dormiam, acordavam, faziam as refeições, saiam para breves caminhadas pelas redondezas. Quando iam para a rua, Lúcia sempre levava a Esperança presa à sua coleira, pois, arisca como era, a cachorra poderia terminar morta debaixo das rodas de algum carro: as ruas ali por perto eram sempre muito movimentadas.

Lúcia e Alfredo conheceram-se no elevador do prédio, quando ela voltava de um desses passeios com a Esperança. Ao vê-lo, Esperança passou a abanar o rabo, a lambê-lo e com ele brincar como se o conhecesse há tempos. Exceto por Lúcia, ela não se comportava assim com mais ninguém.

(Esperança era bastante desconfiada)

Vendo que a cachorra demonstrava afeição por Alfredo, Lúcia convidou-o para um café em seu apartamento, no que ele de pronto aceitou. A partir daquele dia, as idas dele ao apartamento dela tornaram-se comuns, gerando, por fim, a desconfiança na esposa de Alfredo, Vera, que ao descobrir que Lúcia e Alfredo se encontravam, foi bater à porta do apartamento da viúva e, ao ser por ela atendida

(Esperança dormia, indiferente ao barulho)

Vera sentenciou:

– Se voltar a se encontrar com meu marido, acabo com sua vida.

Os olhos de Vera pareciam piras de fogo, tamanho o ódio que traziam. Não restou à Lúcia outra medida senão dizer a Alfredo que era

– Melhor pararmos por aqui.

Ele, mesmo contrariado, concordou com um

– Melhor assim.

No fundo, ele queria continuar podendo desfrutar de uma vida clandestina de bígamo: esses encontros à surdina com Lúcia tinham aumentado a sua libido, levando-o a ter uma melhor performance, também, com Vera. Esta, depois de por um fim à relação extra-muros do marido, viu sua vida sexual declinar a ponto mesmo de ela se tornar, para ele, uma samambaia.

Lúcia e Alfredo, de fato, nunca mais se viram. Um mês depois de Vera

(já então transformada em uma samambaia aos olhos de Alfredo)

descobrir a traição de seu marido com a jovem viúva do primeiro andar, ela e Alfredo deixaram o Esperança e foram morar bem longe.

Lúcia e Esperança seguiram vivendo, ali, até que, num dado dia, ao acordar pela manhã, Lúcia notou que o corpo da cachorra, que dormia ao seu lado, estava frio: Esperança havia morrido durante a noite.

– Ao menos teve uma morte tranquila.

Lúcia conformou-se.

Para uma cachorra, Esperança já era bastante idosa. Seria natural que não fosse a última a morrer, e sim que morresse antes de Lúcia.

Lúcia passou então a viver, de fato sozinha, no conjugado de quarto e sala que alugava no primeiro andar do Prédio Esperança.

Ali, cercada de poucos pertences, viveria ainda por mais um ano depois da morte da Esperança, graças à pensão que recebia pela morte de seu marido.

Passado esse período, porém, de um mês para o outro, o banco deixou de pagar a pensão que era sempre religiosamente depositada em sua conta todo segundo dia útil do mês.

Vendo os boletos, inclusive o do aluguel, acumularem-se, sem ter dinheiro para pagá-los, Lúcia foi ao banco a fim de tomar satisfações sobre o ocorrido.

– Por que minha pensão deixou de ser depositada?

ela perguntou ao caixa, e este, sem saber explicar a razão, pediu a ela que falasse com o gerente.

Do senhor sentado à mesa com uma placa a identificá-lo como sendo o gerente, Lúcia ouviu, primeiro um muxoxo que denunciava a chateação daquele senhor com a pergunta

– Por que minha pensão deixou de ser depositada?

depois, ouviu dele apenas um compromisso, meio que dito por dizer, de que ele, o gerente, iria averiguar e retornaria para ela o mais rápido possível.

Dois meses depois, Lúcia ainda não tinha recebido resposta nenhuma do banco. Quando lá voltou, tanto o caixa quanto o gerente com quem falara antes tinham sido substituídos por outro caixa e outro gerente, do qual, após novamente perguntar

– Por que minha pensão deixou de ser depositada?

também recebeu apenas um compromisso, meio que dito à lápis, de que ele iria averiguar e retornaria para ela o mais rápido possível.

Naquele dia, ao retornar a seu apartamento, Lúcia abriu a porta e, por um instante, viu a cadela Esperança vir ao seu encontro, caminhando em sua direção toda alegre, a abanar o rabo. Esperança saudou-a com diversas lambidas, como sempre fazia quando viva.

(de tão emocionada, Lúcia nem lembrou que Esperança já tinha morrido)

Agachou-se junto a cadela para retribuir-lhe o carinho. Ao fazer isso, deu-se conta que aquilo que abraçava não era Esperança, mas sim os boletos que se acumulavam na soleira da porta de seu apartamento.

Sentiu-se ridícula.

Nem todos aqueles papéis, contudo, eram simples boletos. Havia um, em meio aos demais, que era na verdade uma correspondência vinda da Justiça, assim indicava o remetente. Ao abri-la, viu surgir diante de seus olhos, logo abaixo da heráldica imagem de uma mulher a segurar uma balança com seus olhos vendados, escrita com palavras solenes, uma ordem de despejo, a alertar que, em cinco dias a contar do recebimento daquela carta da Justiça, Lúcia deveria desocupar o seu apartamento no Esperança: com os aluguéis atrasados, a imobiliária, por ordem do proprietário, pedia de volta o conjugado de quarto e sala onde Lúcia morava de aluguel.

Sozinha

(sem Esperança)

e angustiada

(sem esperança)

não lhe restou outra alternativa senão, cinco dias depois, deixar que o oficial de justiça cumprisse a ordem judicial.

Sem poder pagar o aluguel, Lúcia não poderia mais continuar a viver no Esperança. Deixou-o então para trás, sem ter para onde ir, levando consigo o pouco que tinha, na esperança de um dia, quem sabe, poder voltar.

 

Tão grande a solidão ter você ao meu lado

Todos os dias, a mesa do café da manhã era caprichadamente posta para servir duas pessoas: um par de xícaras feitos de uma fina procelana florida, duas fatias de bolo de frutas, acompanhadas de duas fatias de mamão papaya e dois pares de talheres.

Sem nenhum par sobre aquela mesa, ficava apenas o bule de café, no mesmo padrão de porcelana de que eram feitas as xícaras.

Sentada à mesa, e também sem par, ficava Ana, que todas as manhãs servia o café para dois, embora não tivesse ninguém para acompanhá-la. Ela tomava sua xícara de café, comia sua fatia de bolo de frutas e de mamão, e o resto jogava fora.

Viúva há pouco mais de cinco anos, Ana ainda não havia superado a ausência de João, o homem com quem fora casada por quase quarenta anos. Vitimado por uma morte súbita, ele de repente partiu, sem dar a ela nem sequer a chance de dizer um adeus, nem sequer um…

Nada.

Morreu logo depois de terem tomado, juntos, o que então foi o último café da manhã dele.

Ana ainda se lembra de como era tê-lo à mesa: sentado na cadeira, do lado oposto ao lado dela, ele ficava a ler o jornal, que lhe tomava toda a atenção, não sobrando desta nem mesmo migalhas para Ana, que, diante disso, conformava-se em tomar seu café em silêncio, tendo à sua frente a imagem de um jornal aberto, segurado por um par de mãos, que se revezavam, descendo vez ou outra para servir-se do café da manhã posto sobre a mesa.

(tão grande a solidão ter você ao meu lado)

Ana lembrava-se do barulho que o jornal fazia quando João virava as páginas; sentia falta do conforto que aquele som lhe proporcionava. Era como ouvir a voz de João a sussurrar-lhe nos ouvidos, algo que, já naquela época, há muito tempo ele deixara de fazer.

Desde muitos anos antes de João morrer, o silêncio havia preenchido o espaço que, outrora, era ocupado por conversas animadas, emolduradas por olhares apaixonados, que partiam dos olhos dele e de Ana como projéteis em direção um ao outro e vice-versa.

À medida que o tempo foi passando

(pela sua memória, o início do declínio tinha sido logo depois de completarem dez anos de casados)

o amor foi esfriando e, quando o casamento deles completou quinze anos, nada daquele amor tinha restado senão os dois corpos que antes faziam papel de sujeitos. Dois corpos solitários, incapazes de qualquer comunhão, mas que permaneceram juntos os anos seguintes apenas pela inércia da conveniência.

(tão grande solidão ter você ao meu lado)

Depois da morte de João, Ana cancelou a assinatura do jornal que ele sempre lia, sentado à mesa para o café da manhã. O jornal seria inútil para ela, dado que, depois que João partiu, Ana perdeu todo o interesse pelo que ocorria para além dos limites da casa que com ele dividira.

Alfredo, filho que tivera com João, desde muito jovem partira para viver no exterior. A respeito dele, Ana quase nada mais sabia: ele ligava para a mãe uma ou, no máximo duas, vezes por ano, para perguntar-lhe

– Está tudo bem?

e depois de ouvir Ana responder-lhe

– Sim, meu filho

ele logo emendava um

– Aqui está tudo bem, também

finalizando com

– Um beijo.

E então desligava, não permitindo à sua mãe nem sequer um até logo, nem sequer um te amo, nem sequer um…

Nada.

Atualmente, a única companhia de Ana, ainda assim apenas por meio período, era Jandira, a cuidadora que ela pagava com sua aposentadoria para garantir que não morresse sozinha e fosse encontrada, dias depois, já com o corpo rígido, por quem quer que estranhasse o odor nauseabundo a sair de dentro da casa.

Ana vivia reclusa e solitária, mesmo tendo a companhia de Jandira, por meio período. Seguia vivendo um dia após o outro, sem se dar conta de em qual dia da semana estava. Para ela, isso não importava: eram todos iguais.

Num certo dia

(não sabia dizer qual)

alguém bateu à sua porta enquanto ela tomava seu café da manhã, na mesa caprichadamente posta, como de hábito, para dois.

Apoiando-se em seu andador, ela levantou-se e foi até a porta atender quem batia. Ao abri-la, não viu ninguém: quem ali estivera, tinha já partido sem nem sequer dizer um bom dia, nem sequer um olá, nem sequer um…

Nada.

Na soleira da porta, havia um capacho, cuja mensagem de bem-vindo mal se podia ler, tamanha a quantidade de poeira sobre ele depositada. Jogado sobre o capacho, e por cima da poeira, alguém deixara um jornal, o mesmo que João lia à mesa do café da manhã enquanto ainda era vivo.

Ana pegou o jornal em suas mãos, fechou a porta e voltou à mesa onde, antes daquela interrupção, tomava seu café.

Abriu o jornal, da maneira como João fazia, e começou a folheá-lo, ouvindo o ruído de suas folhas, ao serem manipuladas, chegarem aos seus ouvidos com uma sonoridade distinta daquela produzida pelo seu falecido marido, quando ele, sentado àquela mesa, fazia aquele mesmo gesto.

Depois de folhear algumas páginas, Ana, algo entediada, deixou de lado o jornal e voltou as atenções ao seu café da manhã. Sentia então um certo alívio por ver sua rotina restabelecida.

Não fosse a inesperada entrega daquele jornal, teria sido um dia como qualquer outro: sem nenhuma nenhuma vírgula na sua bem traçada rotina, nem sequer uma novidade…

Nada.

 

Baby Look

Há muito a juventude o abandonara, embora olhando para a pele de seu rosto não se percebesse nenhuma ruga: era lisa como um ladrilho. Assim a mantinha

(esticada)

graças a procedimentos estéticos que lhe garantiam uma aparência não exatamente jovem, mas muito bem conservada.

De tão lisa e estendida, a pele de seu rosto, mesmo diante de um aviso a dizer:

“Sorria, você está sendo filmado”

em nada enrugava, mesmo se sorrisse.

O adeus à juventude foi gradual, não se deu da noite para o dia, embora, olhando em retrospecto, Baby Look tivesse a impressão

(enganosa por certo)

de que tudo aquilo que vivera naquela época dera-se ontem.

Mas não, a sua juventude ocorrera muito antes do ontem, do anteontem, e de qualquer desses saltos curtos da memória. Nem mesmo um salto de número 17, do tipo que costumava usar quando saía à noite, em seus melhores anos, quando seu corpo, então jovem, estava no auge da força e do vigor físicos, seria suficiente para fazer frente ao tamanho do salto de memória que seria necessário para transportá-lo de volta àqueles anos.

(30 ou quiçá mais anos atrás)

Naquela época, Baby Look, como então Paulo já era conhecido, saía quase todas as noites da semana, mesmo nos dias úteis. Nestes últimos, ao final do expediente na agência bancária onde trabalhava como caixa, ele chegava em casa e se deitava sobre seu sofá. Lá deitado, entre um petisco e outro

(nada muito pesado)

ficava horas a assistir, na televisão, vídeos de suas cantoras favoritas

(Shirley Bassey, Donna Summer, entre tantas outras)

memorizando os gestos, os passos, as caras e bocas que elas faziam, a fim de, mais tarde, reproduzi-los à sua maneira quando chegasse à boate onde cumpria aquilo a que chamava de sua segunda jornada, já então na pele de Baby Look.

Por volta das 11 horas da noite

(I love the nightlife)

ao som de algumas de suas músicas favoritas

(I’ve got to boogie)

dirigia-se ao banheiro para, como ele dizia, tirar o ranço do dia, e preparar-se para brilhar na noite como a estrela que tanto almejava ser.

Depois do banho tomado, seguia para diante do enorme espelho, de corpo inteiro, que tinha em seu quarto, todo rodeado de lâmpadas para melhor destacar sua imagem ali refletida e, sob o globo de espelhos que, preso ao teto, rodava acima de sua cabeça, iniciava o processo de transformação, por meio do qual o Paulo que trabalhava como caixa numa agência bancária desaparecia dando lugar, voz e vez a Baby Look.

A partir do momento em que a transformação se completava, não só a aparência de Paulo mudava: na pele de Baby Look, também mudava o modo de falar e mesmo o vocabulário que utilizava.

– Amiga.

era assim que Baby Look chamava Carlos, seu melhor amigo, quando eles falavam ao telefone.

– Preciso te contar um bafão.

continuava, querendo com isso dizer que estava prestes a revelar uma fofoca extraordinária, no que Carlos lhe respondia:

– Conta, amiga.

ansioso por ouvir a revelação.

Conversas como essa com Carlos eram comuns naqueles anos: Baby Look orgulhava-se de ter dezenas de

– Amigas

como se referia a eles ou elas, amigos ou amigas, indistintamente.

Peruca loira na cabeça

(que sem ela mostrava-se quase totalmente calva)

maquiagem no rosto, vestido curto e justo, de preferência com alguma estampa animal, Baby Look ficava a admirar-se diante do espelho, com aqueles pequenos reflexos do globo espelhado a percorrerem seu corpo, numa lentidão melancólica como uma drag queen que, em seu camarim, desmonta-se depois de terminado seu último show da noite.

Enquanto se preparava para sair, o rádio ficava sempre ligado, a tocar músicas da era Disco, que Baby Look acompanhava, fazendo seu corpo dançar de acordo com o ritmo.

Ao longo dos anos, foi-lhe ficando cada vez mais e mais difícil acompanhar os movimentos que pediam aquelas músicas, a ponto mesmo de, hoje em dia

(passados 30 ou quiçá mais anos)

Baby Look não mais sair para a noite.

Depois de se arrumar todo e ficar

– Toda montada

como lhe diziam, Baby Look hoje prefere ficar em casa, a dançar lentamente alguns passos, ao som das músicas Disco, tomando um Dry Martini atrás do outro, até que o cansaço e a embriaguez o derrubem.

Assim ocorre todas as noites e, com seu corpo caído sobre a cama, à maneira de uma sombra

(sombra do que um dia fora)

Baby Look, adormecido, passa o restante da noite dormindo e a sonhar.

No último desses sonhos, viu-se no alto de um carro alegórico, numa posição de destaque, a desfilar pela avenida do samba

(num Carnaval qualquer)

sob o olhar extasiado de uma multidão que o assistia das arquibancadas, aplaudindo-o efusivamente a cada gesto que ele fazia em aceno, vestindo sua fantasia carregada de plumas coloridas esvoaçantes.

(nesse sonho, Baby Look ainda era jovem).

Ao fazer um gesto de asas batendo, ele, sentindo-se leve como um pluma, alçou voo e, diante da multidão que o aplaudia em delírio, sobrevoou toda a avenida do samba, até o final, quando então sumiu no céu, à maneira de um balão à gás que se desprende da mão de uma criança que, por distração, solta-o no ar.

Foi nesse instante, ao sumir no sonho, que ele acordou e, sentindo-se um pouco atordoado e com a cabeça latejar, por causa da enxaqueca, viu-se deitado sobre sua cama, ainda vestindo a roupa com que se montara na noite anterior: peruca loira na cabeça

(que sem ela mostrava-se quase totalmente calva)

maquiagem no rosto, vestido curto e justo, com estampa animal.

Era dia de trabalho e, pelo horário que o relógio marcava, Baby Look havia perdido a hora para sair. Naquele dia, não foi mesmo trabalhar, pois, nem bem tinha acordado e dado conta de seu atraso, voltou a dormir, mas desta vez um sono diferente: sem sonho nenhum.

(o melhor da velhice é que ela te liberta)

No rádio ainda ligado, as músicas da era Disco, tocadas a noite toda, davam lugar a uma nova e diferente sequência de músicas. No exato momento em que suas pálpebras gradativamente desciam, antes de seus olhos fecharem de uma vez, Baby Look ainda conseguiu ouvir, vindo do rádio, o simples refrão de uma música do R.E.M., que assim cantava: “it’s the end of the world as we know it, but I feel fine”.

Ouviu esse refrão e, nunca, nada mais.

Maria

Tinha por hábito ler o horóscopo ao final do dia, no trajeto do seu trabalho para casa. Dentro do ônibus com o qual fazia esse percurso, Maria lia o seu horóscopo mesmo que não conseguisse
(o que era bastante comum)
um lugar para se sentar: o ônibus estava quase sempre lotado.

Era assim

(dentro do ônibus a ler o seu horóscopo)

que, de segunda a sexta, ela vencia a longa distância que separava a casa de sua patroa e aquela onde ela mesma, Maria, era a patroa: a sua própria casa.
Uma casa pequena, feita de tijolos e sem reboco, cercada de pesadas grades de ferro, que Maria dividia com seu marido, Agenor, e mais três filhos
– Todos criados
como dizia, orgulhosa, para quem quer que lhe perguntasse.
Pela sua data de nascimento, o horóscopo lhe atribuía o signo de Virgem, mas desde muito moça, Maria decidira adotar o Touro como sendo o seu signo do zodíaco, por enxergar na figura daquele portentoso bovino com chifres o símbolo da força com que gostava de ser percebida. Virgem sempre lhe parecera um signo delicado demais: não combinava com seu gênio forte. Além do mais, há muito perdera a virgindade do corpo, não havia, portanto, por que mantê-la no horóscopo, pensava.

Era com esses argumentos

(que para ela pareciam bastante contundentes)

que ela justificava essa troca zodiacal. 
Trabalhadora exemplar, Maria orgulhava-se de ser empregada da mesma família há quase vinte e cinco anos, período no qual, sem nunca ter faltado um dia, trabalhara como babá dos filhos da patroa e, também, dos seus netos, sempre cumprindo sua jornada de trabalho vestida com um impecável uniforme, todo ele branco, do qual ela tanto se orgulhava. Nas palavras da patroa, o tal uniforme
– Serve para que saibam quem você é
declaração que Maria não entendia muito bem, haja vista que todos naquele condomínio onde a patroa morava a conheciam, não pelo nome próprio, é verdade, mas, sim, como a babá da Dra. Ângela. Não havia, portanto, quem por ali não soubesse quem ela era.

Ingênua, Maria não se dava conta, mas o uniforme branco abria-lhe portas que, de outro modo, estariam para ela fechadas à chave se, diante delas, ela se apresentasse sem nada para branquear a negritude de sua pele.
Há anos

(quase 25)

sua vida tinha sido praticamente só trabalhar, cumprindo, de segunda a sexta, uma primeira jornada na casa da patroa, e depois à noite, uma segunda jornada naquela casa onde ela mesma era a patroa: a sua própria.
Gabava-se de, com seus próprios recursos – provenientes de seu emprego como babá –, sem depender de um tostão do marido, ter conseguido criar seus filhos, todos hoje crescidos e encaminhados na vida, mantendo-os longe do crime. Naquela vizinhança onde os meninos

(como Maria ainda os chamava)

moravam com sua mãe e mais seu pai, numa distante periferia de São Paulo, o crime tinha por hábito arregimentar vidas jovens, e não raro as entregava à morte, principalmente se fossem vidas negras, como eram as dos filhos de Maria.
Numa segunda-feira, Maria retornava para casa ainda trazendo no corpo o cansaço da semana passada: tivera que fazer plantão na casa da Dra. Ângela, que somente na sexta a avisara que

– Vou dar uma festa e preciso de você aqui durante todo o final de semana, pode ser?

retoricamente a patroa perguntou.

Com seu uniforme todo branco guardado dentro de uma sacola, Maria estava
– À paisana
como sua patroa dizia nas raras vezes em que as duas se encontravam pela manhã: em geral, quando Maria chegava para trabalhar, a patroa ainda dormia e só acordaria dali a pelo menos uma hora, lá pelas 7 da manhã.

Enquanto o ônibus seguia, embarcando e deixando passageiros ao longo do caminho, Maria lia o seu horóscopo com as previsões para aquele dia, que muito mais apropriadamente deveriam ter sido lidas ao amanhecer, e não já no início da noite, como Maria então fazia. As colunas do horóscopo eram a única leitura que conseguia acompanhar, pois ela nunca frequentara a escola: o pouco que sabia ler foi aprendido com a ajuda de um de seus filhos, o mais velho.

Ao final do dia daquela segunda-feira, antes de deixar o trabalho, depois de espalhar algumas folhas de jornal pela área de serviço do apartamento da sua patroa, para servirem de toalete para os cachorros da família, Maria, como sempre fazia, separou para si a página do horóscopo e colocou-a dentro de sua bolsa, junto com sua escova de dentes e a bíblia que carregava como um simples amuleto: nunca lera nem sequer uma página. Era-lhe mais fácil simplesmente ouvir a bíblia pelas palavras do pastor, nos cultos que Maria frequentava todos os domingos.
O trajeto do trabalho para casa durava em média duas horas, era o tempo que em geral Maria levava para ler as previsões de seu signo de adoção, Touro, previsões que àquela altura do dia, com o sol já posto, já nada mais previam, apenas ruminavam.
Para ela, a leitura do horóscopo era muito mais que uma simples distração: realmente acreditava no que lia e esperava ver realizadas aquelas previsões passadas em sua vida futura, o que, de fato, até então nunca ocorrera. 

Não tinha sido por que o astrólogo autor daquelas colunas faltara ao trabalho, não as entregando redigidas e prontas a tempo de serem publicadas naquela segunda-feira, em que, ao final do dia, Maria voltava para casa.
Por certo, não tinha sido esta a razão pela qual a coluna daquela segunda-feira saíra exatamente igual à coluna da sexta-feira passada. Um imprevisto qualquer, ninguém sabia bem dizer qual, tinha levado o editor do jornal a republicar, ipsis litteris, a coluna de sexta na segunda.
Maria demorou um pouco para perceber 

(sua memória não andava lá essas coisas)

mas ao terminar de ler o horóscopo para o seu signo de adoção, na coluna de segunda-feira, ela enfim deu-se conta que aquelas previsões que ela então lia eram idênticas àquelas que ela tinha lido na sexta-feira passada, naquela mesma coluna, quando também retornava da mesma casa onde, há quase 25 anos, vinha trabalhando como babá, sempre vestindo seu uniforme branco, do qual tanto se orgulhava.

Ao terminar de ler aquela coluna e perceber que estava igual à coluna de sexta passada, Maria sentiu um pensamento estranho e inusitado

(nunca o tivera antes)

passar por sua cabeça. Por aquele breve instante, Maria sentiu que sua vida andava repetitiva.

– Será?

perguntou-se em pensamento, e então desceu do ônibus, tomando o caminho dali para sua casa, como sempre fizera por quase 25 anos. Na manhã seguinte, recomeçaria tudo de novo.

 

 

Olga

Tivera a infância pobre e, para a adolescência, nada mudara. Desde pequena, Olga vivia com sua mãe em um quarto e sala alugado, no quinto andar de um enorme aglomerado de concreto, cinza e deteriorado, cujos espaços eram preenchidos de seres humanos anônimos, situado no bairro da Luz.

Mal iluminadas à noite, as ruas ao redor do prédio eram verdadeiras arapucas para uma menina adolescente como ela. Quando retornava do trabalho, invariavelmente depois das 10 horas da noite, com ambas as mãos enfiadas nos bolsos da calça, segurando firmemente dois rosários de contas, um em cada uma delas, rezava Ave Marias e Pais Nossos, alternadamente, ora numa mão, ora na outra, a fim de afastar o mal que, pelo rabo dos olhos, sentia a espreitar. Nunca lhe ocorrera nada, mas sabia de histórias pavorosas de outras meninas e mesmo de mulheres feitas que tinham sido atacadas naquelas ruas escuras, repletas de entulho e quase sempre desertas àquela hora da noite.

A história mais recente dizia respeito a uma menina que tinha desaparecido quando retornava para casa, voltando para o mesmo prédio onde Olga mais sua mãe moravam, também no mesmo horário que ela costumava retornar do trabalho: tarde da noite. Por três dias, ninguém teve notícias do paradeiro da menina. Foi somente na manhã do quarto dia após o desaparecimento, que encontraram o corpo da menina todo despido, jogado na sarjeta em frente à padaria que ficava numa esquina detrás da rua onde ela morava. O corpo da menina tinha sinais de ferimentos derivados de tortura por toda parte.

Era uma manhã típica paulistana, com um leve nevoeiro cobrindo a cidade à maneira do véu que cobria os pães da padaria, de onde, naquela manhã, Olga voltava, passando justamente pelo local onde o corpo da menina se encontrava jogado. Percebendo a multidão de curiosos que se aglutinava ao redor da defunta, Olga aproximou-se e, abrindo espaço por entre os corpos dos vivos, chegou bem ao lado da morta. Olhou-a bem dentro dos olhos, que ainda permaneciam abertos

(ao menos assim estavam quando ela chegou)

a revelar assim a dor inominável que a menina sofrera nas horas que antecederam sua morte. Olga viu naqueles olhos um futuro que não desejava para si. Pela primeira vez, aos seus olhos, as histórias de violência e morte que habitavam as conversas da população local, com a naturalidade da vida, tinham ganhado uma forma visível, concreta.

Ao retornar para casa, na noite do dia em que vira a menina morta, Olga aproveitou o desce e sobe da baldeação que fazia na estação de ônibus e, ao invés de tomar aquele que a levaria à Luz, tomou outro ônibus, um cuja placa indicava como destino o Paraíso, bairro de que ela já ouvira falar nos cultos que frequentava com sua mãe na igreja do bairro, sempre aos domingos.

Destestava ir a esses cultos, mas sua mãe a obrigava, ameaçando-a com uma surra

– Daquelas

como sua mãe dizia, enquanto puxava Olga pelo braço esquerdo, forçando a menina a seguir o ritmo apressado de seus passos, no caminho de casa até a igreja.

Antes de chegar ao seu destino, o ônibus que Olga havia tomado cruzou a Paulista, seguindo por sobre ela desde seu fim, na Consolação, até seu início, no Paraíso.

Pela janela do ônibus, Olga observava, fascinada, as luzes da avenida e o intenso movimento de pessoas, algo tão raro na vizinhança onde morava. A Paulista borbulhava de vida.

Ao chegar ao ponto final, no Paraíso, Olga acompanhou os poucos passageiros do ônibus que àquela altura ainda estavam embarcados e, seguindo junto com eles, desceu para a rua. Diferentemente deles, porém, Olga não sabia para onde seguir, a partir daquele ponto.

Foi andando a esmo e, depois de caminhar por uns três quarteirões, Paraíso a dentro, Olga deu de cara com um aglomerado de unicórnios multicoloridos com cornos fluorescentes. Foi tomada pelo êxtase. Lá bem no meio deles, ela viu, vestida à maneira de uma ninfa, a menina que na manhã anterior vira morta e cujos olhos, abertos, a revelar a dor da tortura que sofrera nas horas que antecederam sua morte, tanto a tinham impressionado.

Com um gesto delicado da mão direita, a menina chamou Olga para perto dela, no que Olga obedeceu, não sem esforço para vencer o medo que parecia congelar seus músculos e ossos, como se morta estivesse.

Lá chegando, antes que sua mão tocasse a mão da menina, Olga acordou e foi quando notou seu corpo, todo nu, jogado no mesmo local

(na sarjeta em frente à padaria que ficava numa esquina detrás da rua onde ela morava)

onde horas antes vira também jogada aquela mesma menina, então morta.

Deitada naquela sarjeta, Olga observava a multidão de curiosos aglutinando-se ao seu redor. Não conseguia mexer nenhum músculo, nem sequer os de seus olhos, que, imóveis, fitavam os olhos de uma menina que sobre ela havia se debruçado.

A tal menina tinha a mesma idade de Olga e, como esta, também morava num quinto andar de algum enorme aglomerado de concreto, cinza e deteriorado, cujos espaços eram preenchidos preenchido de seres humanos anônimos, situado no bairro da Luz, bem longe do Paraíso para onde Olga tinha ido.

 

 

É tão longe voltar

Lá pelo final da década de 70, quando Sofia ainda era uma menina, ela gostava de ir ao quarto de sua avó e por lá ficar quantas horas lhe fosse possível, sentada diante de uma enorme penteadeira de mogno escuro, situada de frente para a janela, bem ao lado da cama da avó. O móvel era repleto de rococós barrocos que lhe conferiam um ar suntuoso, que contrastava fortemente com a simplicidade da vida naquela época.

Sobre a penteadeira, havia alguns poucos batons, o pó que a avó usava de maneira um tanto exagerada, numa tentativa inútil de encobrir as rugas da face, um frasco de Leite de Rosas, sentado como uma moça comportada no canto direito e, logo ao seu lado sobre a penteadeira, um velho abajur sustentado por uma pesada base de ferro, cuja luz alaranjada envolvia, como mãos que benzem, uma estatueta de barro de Nossa Senhora Aparecida, santa pela qual sua avó nutria grande devoção.

Devoção que só aumentou depois que todas as demais imagens de santos que a avó tinha sobre a penteadeira foram ao chão e espatifaram-se, devido ao forte vento que invadira o quarto durante uma tempestade de verão: a janela do quarto estava aberta e, com a força do vento, as cortinas ricochetearam sobre os santos, derrubando-os da penteadeira. Apenas a imagem da Nossa Senhora foi salva, passando incólume pela tempestade. A avó

(Sofria bem se lembrava)

chorou por dias a perda de seus santos. Sentia-se culpada pela tragédia e viu seu medo de ir para o inferno

(que já era grande)

só aumentar. Angustiada, foi confessar-se com o Padre Mateus, padre da sua paróquia, que lhe garantiu que a vaga dela no reino dos céus era certa desde que ela continuasse a contribuir regularmente com o dízimo da igreja. Melhores seriam as chances dela lá no céu entrar, disse-lhe ainda o padre, ao final da confissão, se o dízimo fosse aumentado, o que a avó não tardou a fazer, dado que, temente a Deus como era, temia em igual medida ter de encontrar-se com o Diabo.

Desde aquela tempestade, que derrubou os santos que estavam sobre a penteadeira, a Nossa Senhora, além de santa, passou a ser, para a avó, um símbolo de resistência, atitude bem conhecida por aquela calejada mulher, à época com uns sessenta e poucos anos.

A avó de Sofia, Dona Maria Helena, tinha de fato passado por grandes e numerosas provações durante sua vida. Ainda que fossem contadas em papel bíblia, dariam um calhamaço de histórias. A pior delas, talvez, deu-se quando foi abandonada pelo marido.

Num dia qualquer

(ela não se lembrava exatamente qual)
ele foi-se embora com a roupa do corpo, sem dizer nada nem olhar para trás. Apenas saiu pela porta da sala e, desde então, nunca mais foi visto nem dele se soube. Deixou-a em casa, a ver televisão

(a novela das sete)

sozinha e, ainda por cima, grávida de sua primeira e única filha

(a mãe de Sofia)

A partir de então, Dona Maria Helena desenvolveu uma forte repulsa por homens, passando a agir em relação a eles de maneira bem diferente de quando ainda era moça e vivia a perseguir os rapazes do bairro onde vivia, com a mesma teimosia daqueles cães vira-latas que correm atrás dos carros que passam pelas ruas empoeiradas das periferias. No quanto podia, evitava vê-los e ter de com eles falar. Abria exceção apenas para o padre Mateus e, mesmo assim, só falava com ele dentro do confessionário.

A avó de Sofia foi ficando cada vez mais e mais reclusa, chegando mesmo a ser acometida pela solidão. Aos finais de semana, depois da missa das seis, para onde ia religiosamente, a avó, na tentativa de fugir desse sentimento, seguia para um restaurante qualquer do bairro, onde, sentada sozinha à mesa

(geralmente uma mais ao canto)

ficava cumprimentando com um gesto da mão direita pessoas desconhecidas que, apenas em sua imaginação, adentravam aquele recinto vindo ao seu encontro.

O perfume do Leite de Rosas, que impregnava o quarto da avó, marcara a infância de Sofia. Assim como o delicado odor das Damas da Noite, também o Leite de Rosas era um dos aromas que melhor a fazia recordar dos tempos de menina. Das Damas da Noite, lembrava de sentir seu perfume, suave como uma carícia, no caminho que ela fazia quando voltava do mercado, para onde ia, sempre ao final de tarde, a fim de comprar mantimentos para a mistura do jantar: algo para acompanhar o arroz e feijão de todo dia.

Como eram perfumadas essas memórias.
Mas diferentemente destas, as demais memórias de infância de Sofia eram bastante duras e dolorosas.

(é tão longe voltar)

Naqueles tempos passados, quando pegava Sofia em flagrante, a maquiar-se com seus batons e perfurmar-se com seu Leite de Rosas, sentada diante da penteadeira de seu quarto,
Dona Maria Helena puxava Sofia pelos cabelos, deitava-a sobre a cama e, com a Nossa Senhora Aparecida em punho, golpeava a cabeça da menina, como que a querer benzê-la.

Nessas ocasiões, quando pega em flagrante pela avó, Sofia, em pânico, antes do primeiro golpe, gritava:

– Mãezinha, não!

e depois do primeiro golpe, um

– Mãezh…

(abafado)

e, finalmente, após o golpe final

(eram sempre dois)

um

– Mãe…

(já dito entre lágrimas, com a voz embargada)

Sofia não tinha uma mãe com quem ir chorar as surras que levava de sua avó nessas horas. Orfã desde o momento de seu parto

(sua mãe morrera por complicações daí decorrentes)
a menina cresceu tendo a mãe de sua mãe, sua avó, como sua mãe postiça.

Sofia não guardava imagem nenhuma de sua mãe verdadeira: a avó cuidara de eliminar todas as fotos da filha de que ainda dispunha, não sobrando nem mesmo aquela pela qual a avó mantinha algum carinho: uma em que a mãe de Sofia, ainda menina, aparecia toda sorridente, em um vestido de linho branco, numa pureza de óstia, de mãos dadas com alguém cuja imagem a foto capturara apenas a mão esquerda.

Dona Maria Helena não era má, mas quando via Sofia em seu quarto, sentada, ali diante da penteadeira, a se pentear e maquiar
(à imagem e semelhança da mãe de Sofia, quando ainda viva)
a velha revivia a dor intensa que sentira pela morte de sua filha. Para Dona Maria Helena, Sofia era a culpada da morte da mãe, e não havia nada nem ninguém que pudesse convencê-la do contrário.
Ao ver a menina ali diante da penteadeira e, assim, reviver a dor da morte de sua filha, a avó pegava a imagem da Nossa Senhora e

– Mãezinha, não!

(um primeiro golpe)

– Mãezh…

(um segundo golpe)

– Mãe…

desferia dois golpes na cabeça da menina, que depois ficava ali na cama a chorar, menos de dor e mais de ódio. Com a cabeça sangrando, Sofia jurava para si mesma um dia vingar-se da avó.

Todas as surras de Dona Maria Helena em Sofia tinham como arma a estatueta de barro da Nossa Senhora Aparecida. Era a forma por ela encontrada de compensar com a força da fé a força corporal que lhe faltava.

Poucos meses depois de completar trinta e cinco anos de idade, Sofia enterrou sua avó numa sepultura, vizinha à de sua mãe, no jazigo coletivo que era o cemitério do bairro. Ao funeral, nenhum amigo, amiga ou parente próximo da avó compareceu, exceto Sofia.

Na época, já era então casada e vivia com seu marido e mais sua primeira filha, na mesma casa onde, por toda a sua vida, crescera e vivera com sua avó.

Com o falecimento de Dona Maria Helena, a casa ficou de herança para a única neta. Sofia, que antes ocupava com seu marido e sua filha, um quarto menor da casa, mudou-se com o marido para o quarto que era de sua avó, deixando o quarto menor apenas para sua filha.

Ao lado da cama onde Dona Maria Helena dormira as derradeiras noites de seus dias finais, ainda hoje está a enorme penteadeira de mogno e, sobre ela, quase na mesma posição que sempre ocuparam, ainda estão alguns poucos batons, o pó que a avó usava de maneira um tanto exagerada, numa tentativa inútil de encobrir as rugas da face

(tentativa que foi se tornando mais e mais inútil, chegando mesmo a ser caricata, à medida que os anos foram passando)

aquele frasco de Leite de Rosas, ainda sentado como uma moça comportada no canto direito e, logo ao seu lado sobre a penteadeira, permanece aquele velho abajur

(agora ainda mais velho)

sustentado por uma pesada base de ferro, cuja luz alaranjada continua a envolver, como mãos que benzem, a estatueta de barro de Nossa Senhora Aparecida.

Os rococós que, nos tempos de infância de Sofia, conferiam um ar suntuoso à penteadeira, ainda estão lá e continuam a contrastar com a simplicidade da vida. Bem verdade, a vida continua a ser simples, mas a simplicidade agora é mais dura, por assim dizer, pois falta-lhe a esperança e há medo de sobra.

A imagem da santa, por sua vez, se antes era muito bem cuidada pela avó, hoje, além da poeira que se deposita sobre ela, formando como que um novo manto sobre o seu manto original, traz no barro de que é feita as muitas cicatrizes das duras surras

(– Mãezh…)

sofridas

(– Mãe…)

por Sofia, quando menina.

Sua avó tinha morrido aos oitenta e cinco anos, não propriamente do câncer que tomara de assalto quase todo o seu corpo

(embora tenha sido esta a razão que constou registrada em sua certidão de óbito)

mas de morte súbita, decorrente do susto fatal que tomou quando viu a neta deitada nua em sua cama a masturbar-se com a imagem da Nossa Senhora Aparecida, sua santa de maior devoção.

Sofia nunca deixou a casa que vivera com sua avó nem a sua cidade natal. Estes eram os limites do seu mundo.

Todas essas lembranças vieram à sua mente, ao cair de uma tarde de verão, quando ela se encontrava na beira da praia em sua cidade, e, de costas para o mar, observava a cordilheira de prédios à sua frente, sentindo o refluxo das ondas puxar-lhe os pés, como se a querer empurrá-la para trás.
(para onde é tão longe voltar)
Um dos prédios em específico chamava-lhe a atenção por conta das luzes alaranjadas que eram projetadas por suas janelas. Luzes que lhe lembravam aquelas do abajur sobre a penteadeira de sua avó, a iluminar a estatueta de barro da Nossa Senhora Aparecida.

Estatueta que, mesmo cicatrizada pelas muitas surras dadas em Sofia, ainda hoje está lá, no mesmo local.

Para Sofia, mesmo nunca tendo dali partido, ainda assim é tão longe voltar.

 

Cristina

Orfã de pai e mãe, quando ainda era um bebê recém-nascido, Cristina foi adotada por uma tia, irmã de sua falecida mãe, que era entretanto jovem e inexperiente demais para assumir tamanha responsabilidade. Quando se deu conta de que aquele bebê lhe custaria abrir mão dos muitos planos que tinha para sua vida, a jovem tia abandonou Cristina, ainda com poucos meses de vida, ao pés de um enorme cruzeiro de madeira, nos arrabaldes da pequena cidade onde, à época, morava.

Cristina estava entregue a Deus, e portanto em boas mãos.

Ali, passou a noite, envolta em um cueiro de pano branco, no mais pleno silêncio. Na verdade, chorou quase sem parar, mas seu choro foi abafado pelo barulho dos carros e das prostitutas que circularam ao redor do cruzeiro, a noite toda, perseguindo-se uns aos outros, à maneira de um cachorro que corre atrás do próprio rabo.

Na manhã seguinte, sol já alto no céu, a bebê Cristina foi descoberta por um padre, quando este fazia o caminho entre o bar em que tomara o primeiro aguardente do dia

(para despertar)

e a capela, poucos metros distante dali, onde passaria o resto do dia a embriagar de fé seus fiéis.

Ao ver aquele pacote de pano, branco como uma hóstia, aos pés do cruzeiro, contrastando fortemente com o multicolorido dos muitos despachos, por ali deixados, o primeiro pensamento de Padre Messias foi de que se tratava de uma garrafa de pinga

(talvez por efeito do retrogosto da bebida que tomara um pouco antes)

embrulhada e deixada ali como uma oferenda.

Depois, pensou que poderia ser um pacote de carne, do tipo daqueles que seu pai, vez ou outra no mês, trazia para casa, preso na garupa da velha bicicleta com que ia do trabalho para casa e voltava desta para o trabalho

(era funcionário público na prefeitura municipal)

sem nunca, em toda a sua vida, ter cruzado os limites da cidadezinha que era seu mundo.

Padre Messias tinha tido uma infância pobre: comia-se muito pouca carne. Sua mãe passava o dia cuidando dele, único filho, e da casa. À noite, deitada ao lado do corpo embriagado de cansaço do marido, ela tinha sonhos, nos quais deitava-se com outras mulheres.

Ao ajoelhar-se ao lado daquele embrulho de pano e abri-lo, o padre sorriu algo decepcionado ao ver o pequeno corpinho de Cristina, todo nu, abrindo seus bracinhos num gesto de cruz. A menina estava então quieta, talvez exausta de tanto chorar, e certamente faminta.

Adotada pela igreja, Cristina cresceu em um ambiente cercado de pecado por todos os lados.

(se Deus existe, tudo é permitido)

Ao atingir a adolescência, cansada de ser sexualmente abusada, Cristina fugiu. Aproveitando-se de um momento de distração de Padre Messias, que então estava demasiadamente embriagado para notar a ausência da menina que, até poucos minutos atrás, ele tentava penetrar com seu pênis túrgido, ela deixou a sacristia e, atravessando apressada a pequena nave da capela, foi-se embora sem olhar para trás. Tinha medo de virar uma estátua de sal.

Caiu na marginalidade das ruas, onde, vestida à maneira de uma virgem, dizia ser capaz de promover milagres sobre aqueles com os quais se deitava.

(milagre mesmo era ainda estar viva)

Resgatada das ruas por um pastor evangélico

(um cliente eventual)

Cristina começou a participar dos cultos no templo para onde o pastor levava seu rebanho. Em todos os cultos, ela era a responsável por recolher dos fiéis o pagamento que lhes daria a garantia de encontrarem abertas as portas do céu, quando por lá fossem bater.

Com seu corpo no auge da sexualidade, as contribuições que Cristina conseguia recolher dos fiéis eram bastante significativas. Por dias seguidos, ela conseguiu ser a primeira colocada no ranking da fé, como o pastor chamava a competição que promovia, entre suas meninas, para estimular a arrecadação de dinheiro dos fiéis.

Duas horas para ir, outras duas horas para voltar: esse era o tempo que Cristina dispendia todos os dias no trânsito, para ir da casa que dividia com o pastor e outras meninas até o templo e vice-versa. Tempo que ela nem via passar: distraía-se ouvindo repetidamente, em seus fones de ouvido, as músicas de sua banda preferida.

Num sábado, a igreja estava mais lotada que de costume. Uma multidão de fiéis disputava espaço

(cada um por si, com a ajuda de Deus)

procurando ficar o mais próximos possível do aparelho de televisão que transmitia a partida final de um campeonato de futebol. Naquela tarde, Cristina bateu seu recorde de arrecadação.

Terminado o culto, vendo diante de si aquela quantidade enorme de dinheiro, veio-lhe um repentino e forte desejo de apossar-se daquilo tudo e fugir.

O pastor tinha-lhe prometido, para aquela noite, trazer de volta sua virgindade e não havia nada no mundo que ela pudesse querer mais, mas a vontade de ser livre, naquele momento, falou mais alto e, quando a noite enfim chegou, encontrou Cristina de malas prontas, a esperar na rodoviária o ônibus que a levaria para algum lugar bastante distante dali. Ela não sabia nada sobre esse lugar. Só queria partir.

Era início da madrugada quando o ônibus enfim deixou os limites da rodoviária e, poucos minutos depois, pegou a estrada.

As malas de Cristina tinham sido deixadas no enorme porta malas do ônibus. Bem menos confortavelmente instalada que as suas malas, Cristina, por sua vez, tentava

(em vão)

acomodar-se para dormir, em um assento ao lado de uma senhora bastante gorda, que não parava de roncar.

Vencida pelo cansaço, caiu no sono, mas foi logo depois acordada de supetão pela sirene de um carro de polícia: o ônibus tinha sido parado em uma blitz. Tanto os passageiros como as bagagens passariam por uma revista.

Ao revistarem as malas de Cristina, os policiais encontraram-nas cheias de quilos de culpa, embrulhada em papel celofane.

Nem ela sabia que transportava aquele produto dentro de suas malas. Mesmo contrariado, o pastor prontificara-se a fazer as malas para ela, colocando nelas tudo que, na opinião dele, Cristina precisaria para viver sua nova vida, em uma nova cidade.

– Confie em mim.

Ele disse, enquanto entregava-lhe as malas prontas e bem fechadas. Confiando nele, ela nem pensou em abrir as malas para verificar se seus poucos pertences estavam de fato ali dentro.

Pega em flagrante, Cristina acabou presa. Mais tarde, na delegacia, teve direito a uma única ligação. Ligou para o pastor. Este, ao ser perguntado por que tinha feito aquilo com ela, apenas respondeu, laconicamente:

– A culpa é toda sua.

E, em seguida, desligou o telefone.

Semanas depois, Cristina ouviu sua sentença da boca boçal de um juiz boçal

(com uma longa barba rabínica, que parecia postiça naquele rosto pueril)

em um tribunal boçal, tudo parte de um sistema ainda mais boçal. Foi condenada a passar o resto de seus dias enclausurada em uma sela superlotada, que dividia com dezenas de outras detentas.

Para ela, o pior da vida na prisão nada tinha a ver com a falta da liberdade que tanto almejara

(a isso estava acostumada)

nem tampouco com a rotina de horários controlados para tudo. A fonte de sua maior angústia e infelicidade advinha, por certo, do fato de que, presa ali dentro daquela sela superlotada, passaria o resto de sua vida sem nunca mais poder ouvir, da sua banda favorita, as músicas do ABBA Gold.

Esquece-se

Sentados à mesa, um de frente para o outro, ambos tomavam a sopa que ela preparara para aquele jantar, uma sopa rala, mas quente, ideal para espantar o forte frio que fazia naquela noite. Lá fora, deitavam ao chão as lágrimas de uma chuva carpideira, teimosa, daquelas que avançam noite adentro, tornando agradável o sono daqueles que têm abrigo.
Moravam sozinhos naquela mesma casa desde quando se casaram, há uma vida inteira. Quando as crianças cresceram e partiram para cuidar de suas vidas

(casar, ter filhos, trair, magoar e mesmo assim juntos permanecer, ficar)

a casa pareceu maior, embora nada nela tivesse sido alterado, a exemplo dos quartos dos filhos, dois meninos e uma menina

(a caçula)

que continuavam ali, prontos e arrumados, como se a esperar a volta daqueles que um dia os ocuparam.

Depois de deixá-los, ao tornarem-se adultos, os filhos raras vezes voltaram e, quando o fizeram, ficaram pouco: sempre visitas rápidas, concentradas nos dias festivos

(Dia das Mães, Dia dos Pais, Natal… e olhe lá).

Ao longo dos anos, mesmo essas raras visitas tornaram-se ainda mais rarefeitas. Foram-se apagando, como uma vela que lentamente se esvai após consumir todo o seu pavio. E, se no passado, eram motivo para celebração

(a mãe preparava um assado de carne, fazia macarrão, enquanto o pai tirava da adega seus mais cultivados vinhos)

hoje em dia, não mais: o dia da visita dos filhos era um dia como outro qualquer.
As fotos dos dois meninos e da caçula, que por muitos anos dividiram espaço com os bibelôs de louça sobre o aparador disposto paralelamente à mesa de jantar, há muito tinham sido guardadas em caixas de papelão, depois enterradas dentro de gavetas em algum armário no quarto do casal.

A mãe já não se lembrava exatamente onde as guardara, e o pai nem dera falta daquelas fotografias demasiado antigas, algumas bem amareladas.

(haviam sido apagadas de sua memória pelo tempo, que tudo apaga)

Um de frente para o outro, jantavam em silêncio. Ao longo dos anos, foram-se habituando com a quietude

(ou será que toda uma vida juntos esgotara os assuntos?).

Não pensavam sobre isso, pareciam felizes assim: tinham um semblante sereno. Ao menos reclamar não fazia parte das poucas palavras que, vez ou outra, embora quase nunca, trocavam.
Assim como ocorre quando, ao nos acostumarmos com uma determinada paisagem que faz parte do nosso dia a dia, deixamos de percebê-la, também eles foram deixando de perceber um ao outro

(como uma vela que lentamente se esvai após consumir todo o seu pavio).

Compartilhavam a solidão de estarem juntos há tantos anos.

Quando terminaram de comer, ela levantou-se, recolheu os pratos e os talheres e então levou-os para a cozinha, a fim de lavá-los antes de ir dormir: não gostava de deixar louça suja na pia durante a noite.

(temia as baratas)

Pouco depois, ele também se levantou e deixou para trás a mesa de jantar vazia. Seguiu para a sala, onde sentou-se diante da televisão desligada. O mundo lá fora parecia-lhe distante, a ponto de já não lhe interessar mais saber o que se passava fora dos limites da própria casa. Mesmo o pequeno quintal ele pouco explorava.

Pouco depois, ela também foi sentar-se ali na sala, numa poltrona

(a sua preferida)

situada no canto oposto ao que ele ocupava. Ficaram ali, imersos no silêncio das palavras que não encontram voz, a olhar cada um para o vazio dentro de si, a tricotar pensamentos sem fio. À medida que as horas foram passando, eles foram ficando cada vez mais e mais cansados. De um lado, ele a pescar cochilos com o pescoço; do outro, ela a dormir com a cabeça caída por sobre o seu ombro direito.

Num sobressalto, ela acordou e levantou-se. E com um leve aceno de mão, comunicou-lhe que estava indo deitar-se. Ele não deu pela falta dela

(nem dera pela sua presença)

e ficou ali mais um tempo, a cochilar diante de seu próprio reflexo projetado na tela da televisão desligada.

(a casa em silêncio)

Pouco depois, já noite alta, com a chuva carpideira ainda deitando lágrimas ao chão lá fora, também ele não resistiu: estava cansado de cochilar sentado, queria deitar, a fim de poder dormir de vez. Então, levantou-se e foi acompanhar a esposa, seguindo ele também para o destino

(comum)

que lhes fora desde sempre reservado.

Ocupavam lados opostos no jazigo do casal: o direito era dela; dele, o esquerdo. Por sobre a sepultura, alguém deixara um vaso, todo ele adornado por um punhado de flores secas.

Saramandaia

Sentia-se nada bem com a triste notícia que acabara de receber: sua mãe informara-lhe que não poderia comparecer ao seu tão aguardado casamento, que ocorreria dali a três semanas. A mensagem de voz deixada pela mãe de Diamantina no telefone era clara– Não poderei ir ao seu casamento

na parte em que dizia sobre a impossibilidade de ir à cerimônia, mas imprecisa 

– Sinto muito, minha filha. Te amo

no tocante às razões para tal impedimento.

Diamantina ouviu a mensagem logo pela manhã, pouco antes de sair para o trabalho. Ouviu-a repetidas vezes

(não acreditava no que ouvia)

enquanto penteava-se diante do espelho, já vestida no uniforme branco com que passaria o dia todo a caminhar pelas ruas do bairro e adjacências, puxando um carrinho refrigerado pelas mãos, para vender seus Yakults.

A mãe não voltou a ligar mais, e todas as vezes que Diamantina ligava para ela, caía em caixa postal. Diamantina começou a ficar cabreira, preocupada com o que poderia ter acontecido à sua mãe, que morava sozinha, numa pequena casa, distante uns trinta quilômetros, no outro extremo da cidade.

Depois de passar a semana toda sem conseguir falar com sua mãe, Diamantina resolveu, num domingo bem cedo

(seu dia de folga)

pegar um ônibus e ir visitá-la. Lá chegando, depois de quase duas horas de viagem, em um ônibus velho, sem refrigeração e lotado, encontrou a casa de sua infância exatamente como era naqueles tempos idos, exceto por um detalhe: uma placa, ao lado do portão, anunciava

VENDEM-SE SACOLÉS

em letras garrafais, escritas com giz, e logo abaixo vinha a lista dos sabores

morango, abacaxi, limão e saramandaia

Diamantina não sabia dizer se o que lhe causava mais estranheza era a presença daquela placa em si ou o anunciado sabor de saramandaia… ou os dois. Tocou a campainha e nada, bateu palmas e nada, chamou por sua mãe e nada.

Já estava para ir embora quando uma voz, que lhe pareceu familiar, chamou-a da casa vizinha

– Ô Diamantina!

Era Dona Isaura

(Isaura, a Tiranossaura, como as crianças a chamavam na época, em referência à pele grossa de Dona Isaura e a seus modos um tanto brutos de andar, comer, falar)

– Ô Dona Isaura. Quanto tempo!

respondeu Diamantina, enquanto observava, um tanto espantada, a mulher corpulenta aproximar-se

(a pele dela parecia ainda mais grossa depois de tantos anos, e estava bastante enrugada)

– Está procurando por sua mãe?

quis saber Dona Isaura.

– Estou sim. Estou preocupada com o sumiço dela.

frisou Diamantina.

– Ela deve estar com cliente, por isso não respondeu.

Diamantina não havia entendido nada sobre aquela história de sua mãe estar com um cliente, e por isso não poder tê-la recebido, nem sequer atendido. Percebendo o olhar perdido de Diamantina, deixando entrever claramente que ela não havia entendido patavinas, Dona Isaura chamou-a para entrar e tomar um café: queria explicar-lhe tudo a respeito de sua mãe.

– Aceito

disse-lhe Diamantina. No portão de entrada da casa de Dona Isaura, também havia, isso Diamantina notou, uma placa onde lia-se

VENDEM-SE SACOLÉS 

seguida da mesma sequência de sabores que ela tinha visto na placa ao lado do portão da casa de sua mãe, inclusive o sabor de saramandaia.

Já lá dentro da casa de Dona Isaura

– Sente-se aí nessa poltrona e fique à vontade, enquanto eu vou passar um café quentinho para tomarmos. Diamantina sentou-se sobre uma enorme poltrona, bastante apropriada para o corpo avantajado de Dona Isaura e ficou ali, esperando, naquela sala que parecia ter mantido o mesmo cheiro de Leite de Rosas dos seus dias de infância, quando, de vez em quando, iam ela e sua mãe ali tomar um café e papear com Dona Isaura. A sala ainda mantinha a mesma decoração daquela época, com dezenas de bibelôs de louça a encimar a mesa de centro, as mesas laterais e as prateleiras da estante. Aparentemente, nenhum deles tinha se perdido, ao contrário de tanta gente que passara pela vida de Diamantina, muitos que, ao longo dos anos, morreram de fato ou foram mortos pela ausência ou pelo esquecimento. Tudo levava a crer, pensou Diamantina, que os bibelôs eram mais longevos que os humanos. Vai ver são mesmo até eternos, disse baixinho e suspirou.

Um inebriante cheiro de café recém coado começou a invadir a sala onde Diamantina estava. Vinha misturado ao de bolinhos de chuva. 

Não demorou muito, Dona Isaura chegou na sala trazendo nas mãos uma bandeja, e sobre esta um bule de ágata azul, de cujo bico saía uma fumaça a indicar que o café estava bem quente. Ao lado do bule, equilibrando-se sobre a bandeja, um prato grande, fundo, cheio até a borda de fumegantes bolinhos de chuva. A mulher corpulenta colocou, de maneira um tanto abrupta, a bandeja sobre a mesinha de centro 

(quase derrubando os bibelôs que lá estavam)

e, enquanto servia a sua convidada, foi-lhe contanto a respeito de Dona Isoldinha, a mãe de Diamantina

– Sua mãe, Dona Isoldinha, andou uns tempos muito angustiada, minha filha. O dinheiro da aposentadoria já não estava dando mais para ela pagar nem o básico do mercado. 

Enquanto ouvia, Diamantina, faminta como estava, ia comendo um bolinho de chuva atrás do outro, vez em quando molhando a boca com café, para ajudar a engoli-los.

– Eu sei o que é passar pelo que ela, sua mãe, passou, pois vivi o mesmo. A mesma pindaíba, talvez até pior

confessou-lhe Dona Isaura.

Então Isaura fez uma breve pausa, tomou um gole de café, jogou um bolinho de chuva garganta adentro, quase inteiro, sem mastigar, engolindo-o do modo como um pelicano engole um peixe, e prosseguiu dizendo

– Certo dia, estávamos eu e sua mãe sentadas aqui nesta sala, assim como estou hoje aqui com você, e de repente ocorreu-nos uma ideia para ajudar no pagamento das contas.

– Os sacolés?

Perguntou-lhe Diamantina, interrompendo a narrativa de Dona Isaura.

– Sim, os sacolés

Isaura respondeu-lhe e continuou

– Mas com o tempo, fomos vendo que o dinheiro que entrava com a venda dos sacolés mal cobria as despesas de seu preparo. Foi então que sua mãe apareceu com uma nova ideia que, apesar de ter-me causado grande resistência no começo, revelou-se com o tempo a única solução à mão para continuarmos sobrevivendo nessa terra de ninguém, com nossas aposentadorias minguadas, que vez ou outra o governo ainda atrasa para pagar.

Enquanto Dona Isaura seguia contando a história, a curiosidade de Diamantina só se fazia crescer cada vez mais e mais.

– Foi aí que surgiu a ideia da saramandaia

concluiu Dona Isaura, acreditando, pelo visto, que Diamantina já sabia o que isso significava. Mas Diamantina não tinha ideia do que a tal saramandaia vinha a ser, e já não se aguentando de curiosidade enfim perguntou 

– Mas Dona Isaura, o que é essa saramandaia?

Surpreendida pela questão, Dona Isaura bebeu dois goles de café, finalizando o que tinha na sua xícara, olhou para os bibelôs sobre a mesa de centro, e então, voltando os olhos para Diamantina, respondeu

– Saramandaia é o código que eu e sua mãe adotamos para atendermos aqueles clientes, homens feitos mas também alguns adolescentes, que vêm bater à nossa porta, a procurar não por sacolés, mas por companhia feminina.

– Quer dizer que vocês fazem programas, como prostitutas?

perguntou-lhe uma incrédula Diamantina, já fazendo um movimento para levantar-se da poltrona.

– Digamos que sim

respondeu Dona Isaura.

E levando as mãos à cabeça, Diamantina exclamou, lívida

– Meu Deus!

e perguntou

– Como vocês podem fazer um negócio desses?

e então finalizou

– Que vergonha!

Dona Isaura acompanhava, impassível, o chilique de Diamantina. Estava acostumada a essas reações por parte de suas amigas e de seus familiares, quando lhes contava a respeito do que havia por trás do sabor de saramandaia. Não pensou que pudesse ser diferente com Diamantina, que vivera toda a sua infância e adolescência sob as mais rígidas regras morais e religiosas.

– E onde está minha mãe, Dona Isaura? Há dias eu a procuro, sem encontra-la em lugar nenhum. Nem tampouco consigo falar com ela.

Isaura pensou por alguns instantes e então respondeu

– Sua mãe tem te evitado pois vem sentindo-se muito constrangida de encará-la e, mais ainda, de ter de comparecer à cerimônia de seu casamento. Não por você em si, claro que não. Afinal você é filha dela e Deus sabe o quanto ela te ama.

– Se é assim, então qual foi o problema?

perguntou Diamantina, já demasiado angustiada pelas demoradas pausas que Dona Isaura fazia a cada palavra que pronunciava.

Pacientemente, mantendo as demoradas pausas entre as palavras, Dona Isaura então finalizou sua explicação 

– Não sei se é bem um problema, Diamantina. Fato é que sua mãe tem te evitado a todo custo porque, ao ver o nome de seu futuro marido no convite de casamento que você lhe enviara, percebeu que se tratava de um conhecido cliente nosso, grande apreciador dos sacolés sabor saramandaia.

Dona Mirtes

No açougue, a primeira cliente do dia chega, puxando pela mão direita um carrinho de feira, vazio. Já diante do balcão, pede ao açougueiro:– Um quilo de qualquer coisa moída, por favor.

O açougueiro vira-se para ela e responde:

– Qualquer coisa não tem. Tem cochão mole, acém, filé mignon.

Ela pensa por alguns instantes e, em seguida, responde:

– Me vê então dois quilos do mais barato moído.

– Dona Mirtes

(esse era o nome dela)

– vou moer pra senhora dois quilos de patinho. 
O açougueiro propõe.

– Está bem.

Ela responde. 

Pouco depois, Dona Mirtes é vista saindo do açougue levando, dentro do carrinho de feira, um pacote de dois quilos de carne moída.

Ao chegar em casa, seus 20 gatos vieram recebê-la, entrelaçando-se por entre as pernas dela e miando alto de ansiedade: sabiam que aquela carne moída ela para eles.

Ela criava aqueles gatos para, com a carne deles, alimentar as piranhas que ela criava em um aquário, exposto na estante da sala, ao lado de uma imagem da Nossa Senhora Desatadora dos Nós.

Televisão

A vida dela era ali, em meio a suntuosas lojas de grifes internacionais, com seus letreiros dourados, sempre repletas das mais caras mercadorias, frequentadas por gente que, ao que sempre lhe parecera, tinha dinheiro de sobra, pois pagavam com gosto – sorrindo para as vendedoras e vendedores, que sorriram em resposta, ou vice-versa –, vultosas quantias pelas bolsas, sapatos, camisas, tênis, bolsas, cosméticos, bolsas, tudo meticulosamente exposto em vitrines glamurosas.A vida dela era ali, durante o dia, enquanto cumpria sua jornada de faxineira naquele luxuoso shopping center de um bairro tido por nobre da cidade de São Paulo.

Quando chegava à sua casa, onde morava ela mais o marido, já tarde da noite, depois de enfrentar mais de duas horas de trânsito e aperto no ônibus que tinha de tomar diariamente para ir e voltar do trabalho, a vida dela era bem diferente: na sua casa, apesar de seu marido ignorá-la, ela não era de todo invisível, tal como ocorria no shopping, pois a televisão estava sempre ligada à sua frente, a olhá-la, iluminando-a.

O mito de Selfie

Tinha acordado triste, sentindo-se pra baixo, a ponto até de faltar-lhe forças para levantar-se da cama. O rosto, todo amarfanhado, denunciava o estado de espírito, confirmado pelo olhar distante, quase ausente, perdido em meio a olheiras escuras e pesadas.Ainda assim, a fim de cumprir a obrigação de parecer feliz no Facebook, Selfie pegou uma caneta hidrocor, no estojo que tinha sobre a mesinha da cabeceira da cama, e, com ela, desenhou uma carinha feliz, à semelhança de um “smiley”, sobre sua nuca, toda ela desprovida de cabelos. Logo em seguida, fez uma “selfie” do desenho, como se fosse de seu próprio rosto, e postou.

Seus “amigos” acharam aquilo divertido. A foto chegou a umas cem curtidas em poucos minutos, e continuava a receber esses afagos virtuais até muitas horas depois. No mundo virtual, ninguém deu pela tristeza de Selfie no mundo real. A obrigação de parecer feliz no Facebook estava, portanto, cumprida. Ter de cumpri-la, contudo, só deixou Selfie ainda mais deprê.

A carta

Um São Sebastião de louça, crivado de flechas, com seus olhos vitrificados, dava as boas-vindas a quem chegasse à entrada do apartamento, depois de percorrer o longo, escuro e frio corredor, desde a saída do elevador, passando pelos impenetráveis olhos mágicos dos apartamentos vizinhos, que observavam, indiferentes, quem chegava e saía, do alto das muitas portas que haviam pelo caminho. Ao lado do santo, havia uma Comigo Ninguém Pode ressecada, plantada em um vaso de barro vermelho, esmaltado, trincado na vertical à semelhança de um coração partido. Sobre os cantos da porta do apartamento, fechada à chave, era possível ver algumas teias de aranha, a denunciarem que há muito tempo

(semanas… quiçá meses)

ninguém por ela entrava ou saía.

Um capacho de sisal sintético, surpreendentemente limpo e com as cores do arco-íris ainda vivas, impedia qualquer visitante de concluir que ali havia apenas sinais de abandono e tristeza.

Nenhum vizinho, nem os porteiros, tampouco o pessoal da limpeza do prédio sabia do paradeiro de quem ali teria vivido e cultivado aquele cenário à entrada daquele minúsculo apartamento, tipo quitinete. Naquele enorme condomínio, ninguém se olhava nem se via: os moradores eram invisíveis entre si. Viver ali era como estar sozinho numa multidão.

Certo dia, chamados pelo síndico – que andava cabreiro com as dívidas de condomínio daquela unidade que iam se acumulando –, os bombeiros arrombaram, sem grande esforço, a porta daquele apartamento. Lá dentro, a janela da sala, aberta e nua, deixava entrar uma brisa abafada, que trazia com ela muita poeira e fuligem, além de muito ruído: o apartamento era bem de frente para o Minhocão.

Os móveis eram escassos, havia apenas o suficiente para poder afirmar que um ser humano teria vivido ali. Na diminuta sala, conjugada com o quarto, o destaque era o pequeno sofá com a frente voltada para a janela, e encostado ao seu parapeito, sobre o qual, encoberto pela poeira, os bombeiros encontraram um envelope, e dentro dele uma carta. Dentro da carta, muita dor. Feita de dor, a caligrafia de uma despedida. Feita de despedidas, toda uma vida. Naquela carta, a despedida final.

Dona Tristinha

Ao ver o trem aproximar-se da plataforma, Dona Tristinha, num movimento reflexo, levantou o braço a fim de fazer sinal de parada, do mesmo modo como é comum fazermos no caso de um ônibus ou um táxi. Ali, na plataforma da estação de trem, lotada de gente, ninguém deu muita bola para o gesto inusitado daquela velha senhora, uma mulher comum, tão parecida com a avó de tantos por aí. Quem, por coincidência, costumava encontrá-la por ali, naquele mesmo horário, sempre no meio daquela multidão de anônimos, já estava acostumado a vê-la fazer isso sempre.Um outro hábito que faz Tristinha um tanto conhecida é aquele que ela adota ao encontrar uma comadre ou uma vizinha. Quando vai cumprimentá-las, em vez do costumeiro aperto de mãos e beijos no rosto, ela prefere virar a comadre ou vizinha de costas a fim de dar-lhes um cheiro no cangote. É quando então diz um

– Aahhh

Em sinal de clara satisfação, ou um

– Que horror!

bem alto

(apesar de sua voz bastante rouca)

em sinal de desaprovação.

A lista das excentricidades de Dona Tristinha não para por aí, é bastante longa. Ocuparíamos, de fato, demasiado espaço, para apontá-las todas aqui.

Tristinha, ou Cristina, como registra sua certidão de nascimento, é viúva e mora, ela mais sua gata, Ágata, em um diminuto apartamento de um grande condomínio no centro da cidade. Ali ela tem ultimamente vivido dias por certo muito tristes

(daí talvez o apelido que lhe deram)

pois os demais moradores não param de reclamar dela para o síndico. 

Para eles, os vizinhos de prédio de Tristinha, o comportamento daquela velha senhora ao entrar no elevador, sempre de bobes nos cabelos, é demasiado inaceitável, beira o ofensivo.

Ora, mas por quê? Perguntou-lhe outro dia, Adelaide, uma amiga de longa data.

Não, não tem nada a ver com os meus bobes, respondeu-lhe uma intrigada Tristinha, enquanto mastigava com gosto um bolinho de chuva quentinho, servido por Adelaide, durante o café da tarde.

O que realmente incomoda aquela gente, esclareço-lhes eu, é que, sempre que vai tomar o elevador, logo que a porta dele é aberta, Tristinha cumprimenta quem ela encontra lá dentro e sorri, em vão, esperando que, ora bolas, respondam o cumprimento e também sorriam. 

Mas, ignorando-a totalmente, todos continuam sempre em silêncio, ora com seus rostos voltados para o vazio, ora para seus celulares, o que, não raro, dá no mesmo.

Os pardais

Avó, mãe, esposa e filha: as quatro gerações femininas de uma mesma família de pardais aguardavam, pousadas uma ao lado da outra, à maneira de matrioskas, sobre um confuso emaranhado de fios do sistema de iluminação pública, bem em frente à delegacia de polícia. Estavam ali desde o mais tenro raiar do dia, aflitas por notícias de Pedro, o jovem pardal, neto da avó, filho da mãe, marido da esposa e pai da filha, que durante a madrugada fora trazido para aquele lugar, dentro do que elas não sabiam dizer se era uma gaiola ou um alçapão.Já quase enfim anoitecia, quando o delegado saiu da delegacia, em mangas de camisa, e foi dar a elas satisfação sobre o paradeiro do jovem pássaro. O delegado estava encharcado de suor, parecia angustiado, o que logo foi percebido pelas pardais como um sinal de que ele era portador de má notícia.

E foi de fato. 

Entre pios de tristeza, dolorosos de se ouvir, o delegado foi-lhes contando que Pedro morrera nas garras de um conhecido criminoso daquelas bandas.

– Quem matou meu filho? 

perguntou a avó.

– Não pode ser!

exclamou a mãe.

– O quê!?

indagou uma incrédula esposa.

Sem entender o que se passava ali, a filha apenas chorapiava, debaixo das asas da sua mãe, a esposa de Pedro, tornada então viúva.

Olhando-as firmes, como um estilingue prestes a atirar, o delegado, friamente, disparou

– Pedro morreu nas garras de Estado.

Este era o nome do assassino, praticante de crimes que passavam sempre impunes: um gato dado a maldades inomináveis com a vulnerável população de pardais.

Bom dia

Era sábado, bem cedo, o sol nem bem tinha nascido e já encontrávamos Seu Bondia acordado, fazendo seus alongamentos matinais ao lado da cama, de frente para a janela aberta do quarto. Mesmo nos finais de semana, a força do hábito o impedia de ficar dormindo até mais tarde. Logo mais, concluídos os alongamentos, também por imperativo do costume ele sairia de casa para ir à padaria da esquina, tomar um café preto acompanhado de um pão na chapa, e depois, dali, seguiria até a lotérica do bairro para fazer a sua tradicional fezinha de toda semana. Há anos, ele vem apostando sempre a mesma sequência de números; quando muito, acertou um ou outro, de forma isolada, nada portanto que lhe permitisse ver a cor de qualquer premiação, mesmo que mínima. A despeito dessa má sorte no jogo, sempre considerou-se um privilegiado na vida. Figura bastante conhecida e querida por todos na pequena cidade onde vive desde quando nasceu, Seu Bondia não passa um dia sequer sem receber um bom dia em dose dupla daqueles que cruzam com ele em suas caminhadas matutinas diárias pela cidade.– Bom dia, Seu Bondia.

Dizem, sempre que o encontram.

Helena 

Por debaixo da soleira da porta de entrada de seu apartamento, alguém fizera escorregar um envelope fechado, totalmente em branco, sem nenhuma referência a destinatário nem tampouco identificação de remetente. Dentro dele, uma folha branca de papel trazia colada bem ao centro uma letra H maiúscula, recortada em papel celofane vermelho, numa caligrafia bojuda de coração.
No segundo dia, no mesmo local, havia novamente um envelope idêntico ao primeiro, trazendo dentro uma folha de papel branca, então com a letra E maiúscula, também em celofane vermelho e com a caligrafia de coração, colada no meio da folha.
No dia seguinte, já o terceiro dia seguido, a letra
L
e assim por
E
diante
N
sempre um envelope por dia
A
contendo, cada um, uma única letra de papel celofane vermelho colada ao centro da folha que vinha dentro, as quais, juntas, alinhadas uma ao lado da outra por ordem de chegada, formavam o nome de H E L E N A, justamente o nome da moradora daquele apartamento.
Encucada, Helena pensou se não poderia ser o Seu Zé Maria, da loja de armarinhos, que estaria encaminhando aqueles envelopes a ela. Dia desses, quando Helena tinha ido até a loja dele pra comprar uns botões, notou que ele ficava olhando-a de rabo de olho enquanto ela explorava a pequena loja.

(ou será que aquele velho suspeitava que eu poderia estar a querer furtar alguma porcaria daquela loja dele?) 

Ou então, pensou melhor, vai ver é o Seu Nonô, da loja de bijuterias. Quando ela esteve lá na semana passada, buscando algo para dar à sua sobrinha de aniversário, viu expostas, sobre o balcão onde faziam as embalagens para presentes, umas folhas de papel celofane em muito similares àquele de que eram feitas as letras que vinham coladas ao papel dentro dos envelopes que andava recebendo, e além disso, o Seu Nonô há muito vinha mostrando-se interessado por ela, haja vista os generosos descontos que lhe concedia a cada bijuteria que Helena comprava na loja dele. Nenhuma das hipóteses sobre os dois, porém, oferecia elementos conclusivos sobre qual deles

(se é que algum deles)

estaria de fato enviando-lhe aqueles envelopes com as letras de papel celofane vermelho, com caligrafia bojuda de coração, coladas sobre a folha em branco que vinha dentro deles, formando o nome de Helena ao serem postas juntas, alinhadas uma ao lado da outra por ordem de chegada.

Helena, depois de receber essas misteriosas cartas, tem andado com a pulga atrás da orelha. Mal tem dormido pensando em quem pode ter sido o autor de tão curiosa, e ao mesmo tempo, para ela tão sedutora abordagem. Todos os dias, tem voltado do trabalho em passos ligeiros, ansiosa por chegar em casa e encontrar lá na soleira da porta o envelope que, enfim, daria um desfecho àquela história, revelando o mistério da identidade de seu admirador secreto.

(um futuro marido?)

Depois de quase uma vida toda dedicada, primeiro ao cuidado dos pais doentes e, depois que faleceram, ao cuidado do ex-marido alcoólatra, Helena havia-se esquecido de como cuidar de si mesma e, mais ainda, de ser cuidada por alguém. De ser, enfim, amada.

Passou-se uma semana sem que nenhum envelope daqueles fosse de novo entregue. Os envelopes que Helena encontrava depositados na soleira da porta, então, eram apenas aqueles das contas do mês, que religiosamente vinham atracar por ali por volta do dia 27 e seguintes de cada mês.

Helena não escondia um certo sentimento de tristeza e abandono. No trabalho, a Rita, sua melhor amiga, notando a tristeza de Helena, andou perguntando-lhe o que é que é que há. Helena não responde, sai sempre pela tangente, tergiversa. Não quer contar a verdade à amiga, pois, no fundo, sente-se envergonhada do que anda sentindo e pensando.

Helena pensou num plano: depois de pagas as contas do mês, iria visitar a loja do Seu Zé Maria e também a do Seu Nonô. Arrumaria um pretexto para cada uma das visitas, apenas para esconder a real intenção: descobrir qual dos dois

(se é que algum dos dois)

estaria abordando-a com aquelas cartas, que para ela eram verdadeiras cartas de amor sob a forma de poesia concreta.

Nem foi preciso levar adiante esse plano: no segundo dia útil do mês, ao adentrar o apartamento, nos seus já costumeiros passos ligeiros, logo depois de abrir a porta, Helena encontrou caído sobre a soleira, um envelope fechado, totalmente em branco, sem nenhuma referência a destinatário nem tampouco identificação de remetente. Helena correu para dentro, fechou a porta à chave, sentou-se no sofá, diante da televisão já ligada na novela, e com as mãos trêmulas e suarentas

(e demasiado frias)

abriu o envelope.

Dentro dele, uma folha em branco, sem nenhuma letra de papel celofane vermelho colada ao centro. Mas, no lugar das letras escarlates, estava escrito seu nome

H E L E N A

em alto relevo, todo branco sob um fundo branco. Helena virou o papel e, no verso, viu uma mensagem que dizia: “dê uma chance ao branco”, e logo abaixo um logotipo que ela bem conhecia. Helena enfim deu-se conta de que todos aqueles envelopes que ela recebera, inclusive aquele que tinha em mãos, nada mais eram do que uma ação publicitária da marca de sabão em pó que ela costumava usar.

Esperança 

Dia sim, outro também, ele aparece na agência bancária para verificar o saldo de sua conta poupança. Seu Pereira, o titular da tal conta, tem feito isso todos os dias, exceto finais de semana e feriados bancários, há uns dois anos. Curiosamente, desde sua abertura, ainda naquela época, a conta nunca teve saldo nenhum. Os resultados que ele visualiza são portanto idênticos: todos zerados. Perguntado pela nova gerente, que assumira recentemente a agência, sobre a razão de assim agir, Seu Pereira, do alto de seus setenta anos, responde com sua voz miúda e sem muita delonga, que suas idas repetidas àquele banco para retirar um saldo de sua conta poupança zerada tem por único motivo seu objetivo, até então inconfessado e ainda por certo não realizado, de enfim ver concretizada a promessa de sua Esperança, que, segundo ele 

– Antes de desaparecer, prometeu-me que um dia depositaria um dinheirinho na minha poupança 

E já ficando com os olhos marejados, prosseguiu 

– Por isso venho aqui todos os dias 

E por fim completou 

– É por causa da promessa da minha Esperança 

Ao ouvir a inusitada resposta, a gerente olhou bem dentro dos olhos de Seu Pereira, fingindo empatia e compreensão. Por dentro, porém, ruminava uma enorme raiva. Tenho mais o que fazer, pensou. 

Então a gerente perguntou-lhe, um tanto impaciente 

– E onde está Dona Esperança? 

Em seguida, ofereceu-lhe um café 

– Aceita um café? 

Ela disse e ele respondeu, de bate e pronto, já agradecendo 

– Obrigado 

Seu Pereira ficou sentado ali, como se tivesse todo o tempo do mundo, sorvendo o café oferecido pela gerente. Parecia não ter ouvido, ou simplesmente ter esquecido a pergunta que ela lhe fizera, tão indiferente ele mostrava-se. 

Com um resto da pouca paciência que lhe restava, ela resolveu repetir a questão 

– Seu Pereira, quero muito ajudá-lo, mas preciso que pelo menos me diga onde está a Dona Esperança. 

Seu Pereira continuou a olhá-la em silêncio, enquanto terminava lentamente seu café. Foi ficando por ali bem mais do que a gerente, toda atarefada como estava, gostaria. 

Vendo que seria melhor deixá-lo em seu tempo, ela voltou aos seus afazeres. Vez ou outra, nas horas seguintes, enquanto digitava no computador ou atendia ao telefone, a gerente lançava um olhar furtivo, de rabo de olho, para ele, que por sua vez, ao notar o olhar dela, retribuía com um sorrisão largo e generoso. Algumas horas depois, já quase no horário de fechamento da agência, cansada de fazer sala para aquele senhor que não representava nenhum ganho para o banco, a gerente, então, levantando-se e pegando a sua bolsa, como quem já vai embora 

(essa era a intenção) 

lançou um 

– Seu Pereira, eu preciso ir pois a agência já vai fechar. O Senhor vem também? 

– Não 

Ele respondeu, laconicamente, e continuou ali como se nada tivesse acontecido, alheio a tudo ao seu redor. A gerente, então 

– Seu Pereira, estou ficando com muito medo do senhor 

E olhando sempre diretamente para ele 

– Muito, muito medo. Vou chamar os seguranças se o senhor não sair 

Seu Pereira, enfim deixando um pouco de lado o ar impassível, levantou-se calmamente, aprumou-se e disse à gerente, num tom seco 

– Tudo bem 

Sem contudo esconder sua frustração. 

E, em seguida, deixando claro que o medo que a gerente tinha dele não poderia vencer sua crença na promessa de sua Espernça, Seu Pereira ainda afirmou, para desespero da sua interlocutora 

– Volto amanhã. Até. 

Logo em seguida, sob olhar algo aliviado da gerente, ele virou-se e caminhou em direção à porta de saída da agência. Tão serenamente partiu, que era como se nunca tivesse estado por ali. 

No dia seguinte, ao contrário do que dissera à gerente do banco, Seu Pereira não apareceu na agência: enquanto aguardava, no ponto de parada, o ônibus que o levaria até o centro da cidade, onde ficava a agência, Seu Pereira viu, jogada num canto, dentro de uma caixa de papelão, uma filhotinha de cachorro, muito parecida com Esperança, a sua cadela, desaparecida há uns dois anos. Apiedado da pequena cachorrinha, Seu Pereira decidiu adotá-la ali mesmo. Pegou-a no colo e, emocionado, abraçou-a contra o seu peito. Foi aí que viu tratar-se na verdade de um cachorro e não de uma cadela. Batizou-o de Aperto no Peito. Seu Pereira via no cãozinho muito de sua Esperança. Para ele, era como se Esperança tivesse, por meio do Aperto no Peito, encontrado um meio de fazer-se ainda presente.

Quando lembra-se do episódio com Seu Pereira, a gerente do banco até hoje fica intrigada com a história que ouviu dele, da última vez que ele foi à agência. Ela ainda está convencida que a Esperança a que ele referiu-se naquele dia era a esposa dele, de Seu Pereira. Notando que ele não apareceu mais na agência 

(nunca mais ele voltou lá) 

por esses dias ela anda até com saudades daquele sorrisão farto dele. 

(ninguém nunca sorriu assim para ela) 

Esqueceu-se do medo.

Félix

Dias e dias passou pensando em como anunciaria aquilo para sua família. Antevia as reações de raiva e decepção de seu pai, o choro envergonhado de sua mãe, seus irmãos a olhá-lo num desdém triunfante. Havia chegado a um ponto em que os contínuos adiamentos não mais surtiam efeito analgésico nenhum: a ansiedade e o nervosismo tomavam de assalto seu ser, tornando dolorosamente penosos quaisquer gestos cotidianos, por mais ordinários que fossem.Cansado de viver uma vida dupla, Félix resolveu aproveitar que todos estavam juntos, ao redor da mesa, durante o almoço de domingo, e revelar seu grande segredo. 

Tinha a boca seca, então, a fim de aliviá-la, pediu

– Me passe a água 

A jarra de água à sua irmã. Encheu o copo e tomou-o quase de um gole só. Depois ficou a observar a família ali comendo. Muito lhe lembravam as vacas ao redor do cocho que, quando ainda era menino, vira uma vez numa visita ao sítio de sua avó: o mesmo ruído das bocas mastigando misturado ao das respirações e dos talheres. Bem, no caso das vacas, não havia talheres.

Respirou fundo, precisava tomar fôlego. A emoção crescia e meio que apertava a sua garganta, como que querendo sufocá-lo. Respirou fundo uma vez mais. Logo depois, certo de que não dava mais para voltar atrás, disse, quase num sussurro,

– Mãe 

E continuou

– Pai

A voz, baixa, ia embargando

– Meus irmãos

Cada vez mais

(fora ele, eram quatro pessoas à mesa)

À medida que cada um tinha sua atenção convocada, ia deixando de lado os talheres, continuando, porém, a mastigar o que tinha na boca.

Os olhos de todos à mesa estavam, enfim, voltados para Félix. Foi quando ele, envolto pelo nervosismo à maneira de uma larva em um casulo, disse

– …

Algo

– …

Dito, todavia, tão baixinho e para dentro, que ninguém ali ouviu.

(o bater das asas de uma borboleta teria feito maior ruído)

Diante do não-dito de Félix, continuaram a comer, como se nada tivesse lhes interrompido.

Frustrado, Félix levantou-se, deixando sobre a mesa um prato de comida intocado e, sobre a cadeira, um lugar que ninguém depois deu por vazio. Dali, ele seguiu até seu quarto, onde, em pé diante do espelho, começou a despir-se sob o olhar indiferente das muitas bonecas de louça que tinha sobre a cama.

De suas costas, enfim nuas, duas enormes e multicoloridas asas de borboleta foram abrindo-se, pouco a pouco, até chegarem, em instantes, ao ápice de sua abertura e exuberância. Aliviado por vê-las e senti-las livres da prisão da camisa que vestia, Félix começou a, leve e serenamente

(um sorriso teria feito maior ruído)

batê-las como se pretendesse alçar voo.

A folhinha do calendário, pendurada ao lado do espelho, revelava ser aquele dia o domingo do derradeiro final de semana do mês de janeiro. Daqui mais uns dias, Félix pensou aliviado, já vai ser Carnaval.

A festa

Que ela uma celebridade naquela festa, isso era bem evidente: quando chegou, depois de descer da limousine que a trouxera até ali, e caminhar fazendo poses pelo tapete vermelho à entrada, sob intenso tiroteio dos flashes das câmeras, cumprimentou todo mundo e foi cumprimentada por toda a gente ali presente. Se ela não cumprimentava, é porque o outro não era tido por gente, logo, nessa não-condição, não deveria também nem dirigir-se a ela. Não sou obrigada, ela dizia, e então virava as costas e seguia altiva pelo salão.Além de comida e bebida fartas, a festa também estava repleta de sorrisos, todos muito brancos, impecáveis… e amplos. Em alguns rostos, faltava até mesmo espaço para um cumprimento com beijo. Nesses casos, valia cumprimentar apenas com os sorrisos, deixando reticências acompanharem o gesto inconcluso do beijo.

Ela sentia-se o centro daquele universo. Tinha pleno domínio da linguagem corporal mais adequada para chegar em cada um dos convidados. Conhecia-os todos pelo nome e sobrenome. Sobre muitos, aliás, o seu conhecimento ia além: tinha os nudes.

Sabia bem o que podia falar e com quem, e, muito importante, sobre o quê calar-se.

Homens de fraque, mulheres em vestidos de noite; a noite, toda ela, em roupas de festa.

Festa esta que já avançava pelas primeiras horas da madrugada quando um homem adentrou o recinto e, gritando muito alto, parecendo bastante desesperado, ameaçou suicidar-se com um tiro na cabeça. Era apenas uma performance para divertir os convidados, como depois ele mesmo revelou ao disparar a arma e dela sairem apenas bolhas de sabão. Passado o susto, quase simultaneamente todos voltaram a beber e sorrir, e sorrir e sorrir e sorrir e beber. A comida acabara.

Mesmo assim, a alegria ainda imperava. Não era de bom tom, aliás, estar triste ali. Quem por acaso assim estivesse, procurava não deixar isso transparecer. Soube-se apenas de um único caso de uma mulher que, não resistindo à tristeza, foi chorar no banheiro. Os seguranças , ao verem-na nessas condições, trataram de colocá-la para fora da festa o quanto antes e o mais discretamente possível.

O dia que quase amanhecia lá fora encontrava o salão, onde realizava-se a festa, já enfim quase vazio ali dentro. Foi quando ela, cansada, resolveu dar por encerrada e noite e tomar o rumo de sua casa. Antes, porém, foi até o toilette, despiu-se de sua máscara, lavou a pesada maquiagem que encobria seu rosto e trocou sua fantasia por uma roupa bem mais básica. Saiu pela porta dos fundos. 

Lá fora, na companhia apenas dos sacos plásticos cheios do lixo produzido pelos convidados, ela ficou aguardando, quieta e cabisbaixa, o ônibus que a levaria dali. Começava a chuviscar leve quando o ônibus enfim chegou. Distraída, ela não o viu quando ele parou no ponto. Teria de esperar pelo próximo, que, para passar, demorou menos tempo que a festa, é verdade, embora esta, ainda que não lhe tenha assim parecido, tenha durado o tempo da vida dela.

E pode-se jamais saber numa escuridão dessas

Há anos, nenhuma carta, nenhum telefonema, nem o menor sinal de vida. O último momento em que se viram foi de fato a última vez em que se falaram. Certa manhã, ele saiu de casa logo cedo, dizendo para ela:

– Vou até ali na padaria comprar pão e já volto.

No que Dona Cristiana então lhe pediu:

– Aproveita e traz farinha de rosca também.

Pois, para o almoço daquele dia, ela queria preparar uns bifes à milanesa.

Depois disso, seguiram-se cinco anos, daí para mais,

Ela não sabia dizer ao certo.

sem nenhuma carta, nenhum telefonema, nem o menor sinal de vida de Deus: seu marido. Na verdade, João de Deus, mas que todos, por respeito e temor reverencial, chamavam-no Seu Deus.

E ai daquele que ousasse escrever, ou mesmo deixar implícito na pronúncia, que o “s” do Seu estivesse em letras minúsculas: era logo punido com um xingamento deveras humilhante, que reduzia o perpetrador da injúria

Assim ele considerava.

a algo para muito abaixo de um ser humano. Também não lhe apetecia ser chamado de senhor, pois Senhor Deus afigurava-se para ele demasiado formal.

Sentia-se envelhecido com esse modo de tratamento.

Crime maior

Na visão de Deus.

cometiam aqueles que escreviam, ou que deixavam implícito na pronúncia, que o “d” do Deus estivesse em letras minúsculas: para estes, a vida tornava-se um inferno. Deus costumava usar de sua posição de gerente na empresa de seguros de vida,

Posição que lhe garantia uma cadeira de espaldar médio: nem tão alto como o das cadeiras ocupadas pelos membros da diretoria, nem tão baixo como o das cadeiras do pessoal do baixo clero, expressão com a qual ele designava os funcionários abaixo dele na hierarquia da empresa – não eram muitos.

para fazer valer sua pequena autoridade, que ia até o ponto em que esta se confrontava com a da diretoria à qual estava subordinado, pois, perante seus membros, Deus comportava-se como se devesse-lhes a vida: agia sem autonomia nenhuma, nem tampouco amor próprio – era-lhes completamente servil.

E depois de todo esse tempo sem nenhuma carta, nenhum telefonema, nem o menor sinal de vida de Deus,

Que Dona Cristiana acreditava estar vivo apenas por obra de sua própria fé.

Não havia de fato, nenhum indício disso desde o sumiço de Deus.

eis que, dentro de um envelope pardo, com o nome do remetente

Mas sem indicar seu endereço, tampouco um número de telefone qualquer para contato.

e do destinatário,

Este com o endereço.

impressos sobre etiquetas, um cartão com um:

Lembrança de Aparecida

em uma letra similar a dedinhos de gorda, escrito logo abaixo da nuvenzinha que servia de andor para a imagem da dita santa. Da nuvenzinha, pululavam umas cabecinhas de querubins, a olhar para cima, marotos, como que a espiarem por baixo do manto da divindade.

O cartão havia sido entregue na casa de Dona Cristiana provavelmente até o meio daquela tarde, quando a doméstica ainda cumpria sua jornada de trabalho, pois, como de costume, e seguindo fielmente a orientação de sua patroa, o envelope havia sido colocado, junto com outras correspondências, dentro da coroa do filtro de louça em formato de abacaxi, que ficava sobre a pia da cozinha.

Logo ao lado da moringa de barro, que, ao invés de água, era preenchida com aguardente.

Não estava jogado na soleira da porta, como aquelas cartas que chegavam depois de finda a jornada de trabalho da doméstica.

No verso do cartão, logo abaixo do:

Estive em Aparecida e lembrei-me de você

numa letra miúda, de menina, Deus dizia estar arrependido, pedia a compreensão e o perdão de Dona Cristiana por todos esses anos sem nenhuma carta, nenhum telefonema, nem o menor sinal de vida, e por fim anunciava que:

Chego no domingo, ainda a tempo de

E a mensagem de Deus, por falta de espaço no cartão, terminava assim, incompleta.

Cinco anos para mais,

Dona Cristiana não sabia dizer ao certo.

sem nenhuma carta, nenhum telefonema, nem o menor sinal de vida e, de repente, numa mensagem incompleta, escrita em uma letra miúda,

De menina.

num cartão suvenir de Lembrança de Aparecida, logo abaixo do:

Estive em Aparecida e lembrei-me de você.

Deus anunciava que chegaria no próximo domingo.

Portanto, dali a três dias.

A tempo de

Dona Cristiana deduziu que ele quisera dizer a tempo de almoçarem juntos e, no domingo, acordou bem cedo, foi ao mercado, comprou, entre outros produtos, espaguete, meio quilo de carne moída, para o molho bolonhesa, e um quilo de filé mignon,

Os pratos preferidos de Deus.

e, chegando em casa, pôs-se a cozinhar, esperançosa de que, mais hora menos hora, Deus bateria à porta, anunciando a sua chegada com um:

– Voltei.

Era quase meio-dia, o almoço já estava pronto, a mesa colocada, tudo preparado para a volta de Deus. Mas eis que as horas foram passando e nada de ele bater à porta, para anunciar a sua chegada com um:

– Voltei.

Nada.

Cansada de esperar, conformada, mas sobretudo faminta, Dona Cristiana encheu um prato de macarronada, depositou sobre ele dois bifes de filé mignon, e devorou-os avidamente. De tão boa que a comida estava

Ou seria a fome dela que estava grande?

bateu logo dois pratos, e, mesmo sobrando pouco espaço para a sobremesa, não se furtou a essa indulgência

Havia preparado um pudim de leite condensado sem furinhos.

e mandou ver no pudim de leite condensado sem furinhos que havia preparado, também de modo a satisfazer o gosto de Deus, que não tolerava pudim de leite condensado com furinhos.

Naquele dia, tão satisfeita quanto Dona Cristiana, ficou a cadela vira-lata Maria, que se fartou com a enorme sobra de macarronada e bifes de filé mignon, oferecidas a ela, como uma oferenda, por Dona Cristiana, que, cansada de esperar, conformada, mas então de barriga cheia, tomou um gole de pinga

Daquela que mantinha guardada dentro da moringa ao lado do filtro de abacaxi.

e foi para o quarto, onde tirou uma soneca tão profunda que lhe pareceu durar por uns três dias.

Ao acordar, sentiu-se como que a ressuscitar.
N. do A.: O título deste conto é uma expressão colhida do livro “O inominável”, de Samuel Beckett

  

Dali a nada

Havia terminado de endireitar o porta-retratos, que há tantos anos estivera preso naquele mesmo local, conforme denunciava a tonalidade mais clara da tinta da parede logo atrás dele. Cansada, Dona Celeste sentou-se no sofá, bem diante da televisão desligada, em cuja tela escura ela podia ver refletida sua imagem, ali projetada à maneira de um negativo de fotografia, daquelas bem antigas. Suspirou fundo… e olhou ao seu redor, a fim de preencher com imagens da memória

(impossível dizer se fiéis à realidade ou não)

o vazio humano do ambiente, buscando, num esforço de náufraga, trazer de volta àquele recinto as conversas, discussões, risos e choros daqueles

Seus familiares

que um dia haviam habitado o diminuto espaço do pequeno apartamento, onde ela agora residia sozinha. De fato, era um imóvel minúsculo, conquanto seu espaço interno foi sendo ampliado, no espaço de alguns poucos meses, à medida que a morte, à revelia dos vivos, unilateralmente decidira levar dali os outros membros da família, que também ali residiam: Seu José, seu marido, foi levado primeiro, vítima de um câncer nos pulmões; pouco tempo depois, por volta de uns dois meses após a partida dele, seu filho e sua nora o acompanharam, vítimas de um acidente de carro. Restou ela: Dona Celeste, que só não se julgava acometida pela solidão, pois lhe sobrara a companhia do casal de canários da terra, que

Cada vez de forma mais esporádica

cantarolavam dentro de uma gaiola presa à parede, logo acima do tanque, na exígua área de serviço contígua à cozinha, ali na parte de trás do apartamento. Os olhos de Dona Celeste, de aparência lassa, cheios de olheiras escuras, passeavam pelos quadros, pelas fotografias, pelos bibelôs: objetos que

Naquele momento

pareciam estar a sussurrar vozes, como se estivessem a segredar algo entre eles.

Riam-se dela?

Quando passaram pelo buquê de camélias brancas de plástico, que sua nora usara na ocasião do casamento com seu filho, seus olhos detiveram-se para além de um simples instante, de modo a poder acomodar o volume maior de lembranças que aquele objeto lhe transmitia: na noite da cerimônia, quando a noiva – sua nora – fizera o tradicional gesto de jogar o buquê por sobre seus ombros, em direção a suas convidadas, foi Dona Celeste (na época ainda apenas Celeste) quem conseguiu pegá-lo, vencendo, na disputa, uma dezena de moças casadoiras, as quais, num frenesi de trutas que sobem a correnteza de um rio para desovar, pulavam, afoitas, tentando agarrar o buquê antes que este caísse no chão. O buquê de camélias, desde aquela noite,

– Dona Celeste, quando é que a senhora vai jogar fora essas flores velhas?

a contragosto de

– Deixe-as em paz aí, Adelaide.

Adelaide, sua nora, ornava a mesa de centro da sala, metido dentro de um jarro de opalina rosa.

– Estão tão bonitas.

Apesar de já há muito amareladas pela ação do tempo.

Há dias, Dona Celeste vinha se sentindo ansiosa, sentimento que a última noite, passada em vigília, em razão da insônia, só tinha agravado. Logo pela manhã, resolveu abrir todas as janelas do apartamento, buscando arejá-lo e, com isso, respirar melhor, a fim de afastar a ansiedade. Abriu também a porta da entrada do apartamento, que dava para um longo e escuro corredor curvo, salpicado de luzes automáticas, que acendiam quando censores ligados a elas identificavam a movimentação de algum ser vivo – humano ou animal – a passar por ali, revelando, assim, de cada lado do corredor, as portas dos muitos apartamentos que faziam vizinhança ao de Dona Celeste naquele mesmo andar. Cada porta era decorada segundo o gosto estético de seu respectivo morador: gente de todo tipo, mas, em geral, pessoas solitárias, condição que agora também alcançava Dona Celeste.

Exceto pelo casal de canários da terra a lhe fazerem companhia.

Algumas portas não dispunham de ornamento nenhum, talvez indício de que a condição humana do morador que residia sob sua guarda, além de flertar com a solidão, também podia ser diagnosticada como imune à capacidade de sonhar. Era um edifício gigantesco, com mais de uma dezena de minúsculos apartamentos em cada laje, e todos tinham as janelas de suas salas voltadas para um profundo e frio vão central, de modo que da sala de cada apartamento podia-se diretamente visualizar o interior do apartamento da frente, e, logo mais abaixo e acima, parte do interior dos demais apartamentos, e vice-versa, formando, no seu todo, um visual labiríntico, como naquelas pinturas do Escher.

Janelas de onde não se via o sol nascer, nem se por: sem horizontes à vista.

Aqueles que passavam pela porta do apartamento de Dona Celeste – e a notavam aberta –, lançavam rápidos olhares ali para dentro, desviando-os, assustados, logo em seguida ao encontro com o olhar dela, que seguia, sentada e quase imóvel, ali diante da televisão desligada. Passadas algumas horas, nada da sua ansiedade diminuir – pelo contrário, havia aumentado, a ponto até de se tornar angustiante. Uma cadela de olhar assustado, bixiguenta, só pele e osso, ao passar por ali e deparar-se com a porta aberta, atreveu-se a entrar, mas, ao ver-se diante da figura de Dona Celeste, que dali do sofá a observava feito um mocho, deu meia volta e saiu, num passo apressado, com o rabo entre as pernas.

Depois disso, Dona Celeste se levantou e foi tomar uma água na cozinha.

(– Ô véia, traz uma água para mim, quando você voltar?)

Lembrou-se de seu falecido marido a pedir-lhe isso quando ela ia à cozinha, sempre se esquecendo de emendar um:

– Por favor.

que para ela, àquela época, poderia fazer alguma diferença – não mais. Era-lhe, assim ali pensou, de fato, de todo irrelevante agora.

Ao ver a gaiola dos canários da terra, presa à parede, logo acima do tanque, na exígua área de serviço contígua à cozinha, que ficava na parte de trás do apartamento, dirigiu-se até ela e abriu a sua portinhola. Indiferentes à desimpedida passagem para o lado de fora da gaiola, os canários da terra agiam como se a portinhola ainda estivesse fechada, ignorando por completo a chance que lhes havia sido concedida de saírem e desbravarem o mundo exterior – continuaram ali dentro, como se nada em seu pequeno mundo tivesse sofrido qualquer alteração. Dona Celeste, algo indiferente, virou-lhes as costas e voltou para a sala, seguindo em direção à janela, de onde ela podia mirar o fundo do vão central do edifício e as janelas dos apartamentos vizinhos, com seus moradores vivendo seus dramas quotidianos.

(– Dona Celeste, quando é que a senhora vai jogar fora essas flores velhas?)

A brisa fresca que entrava por aquela janela fazia as cortinas esvoaçarem e revirava o jornal do dia, que Dona Celeste havia deixado sobre a mesa de canto, ao lado do sofá – era a última edição do jornal a que ela teria direito, pois cancelara a sua assinatura no dia anterior.

Não lhe interessava mais saber das notícias do dia seguinte.

Junto com a brisa, chegava uma mistura agridoce de cheiros e fedores provenientes dos outros apartamentos. Sentindo a carícia do vento sobre a pele vincada de seu rosto e por entre seus cabelos grisalhos, Dona Celeste viu-se, de um instante para outro, livre da angustiante ansiedade que a atormentava. Tomada então por uma leveza entorpecente, agarrou-se às cortinas e inclinou seu corpo

pa

ra

fo

ra,

o que, por fim, dali a nada, faria com que ela se sentisse

(– Deixa-as em p

em paz.

  

Vida

Na maternidade, situada em um bairro tradicional da cidade de São Paulo, um homem e uma mulher, recém-empossados em seus novos papéis sociais de pai e mãe, devido ao nascimento do seu primeiro filho, algumas horas atrás, discutem calorosamente sobre a escolha de um nome para o menino. Quando a enfermeira entra no quarto, trazendo o bebê em seus braços, todo miudinho, ainda com carinha de joelho, envolto em um cueiro todo de lantejoulas prateadas, pai e mãe deixam a discussão de lado e, com olhares embevecidos, ficam a apreciar o bebê, já agora entregue aos cuidados da mãe, que o acalenta cantando baixinho sambas de raiz. A enfermeira saca então duas castanholas dos bolsos de sua calça e, tocando-as efusivamente, deixa o quarto em passos de flamenco.
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Com uma desenvoltura surpreendente para a idade avançada, uma velhinha, vestida em um traje de bailarina todo carmim, dança sobre as calçadas do Viaduto do Chá, seguindo por diversas vezes da Praça Ramos até a Praça do Patriarca, e depois repetidamente voltando. Seus passos de balé são precisos e delicados, seu rosto traz uma expressão plácida; sua saia de tule, de tão esvoaçante, parece uma chama ao vento. À maneira de uma tiara, um enorme fone de ouvido cruza por sobre sua cabeça, de orelha a orelha (o que estaria a ouvir?). Dentre os que por ali passam, são poucos os que desviam o olhar para brevemente observá-la. Pastoreada pelas contas a pagar, a maioria passa com o olhar alheio e distante.

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O menino recém-nascido e a velhinha são a mesma pessoa, aqui retratada em momentos distintos de uma vida cuja história nada teve de convencional e linear. Foi toda ela um musical.

  

Bárbara

Logo no início de “O Grande Hotel Budapeste”, filme de Wes Anderson, baseado na obra de Stefan Zweig, o narrador-personagem afirma que se enganam aqueles que pensam que os escritores passam as 24 horas do dia transbordando de inspiração, e que eles são uma verdadeira fonte de conhecimento e cultura, quando, na verdade, ainda nas palavras daquele narrador-personagem, escritores se alimentam de histórias verídicas, roubando da realidade pessoas que mais tarde se transformam em personagens. Não diria que qualquer dessas afirmações seja sempre verdadeira – pelo menos não (definitivamente não) no caso deste diletante escritor que vos escreve. A crônica a seguir, todavia, vai ao encontro justamente da segunda afirmação, pois teve sua personagem inspirada numa figura da vida real, encontrada por mim numa reportagem da BBC News (“Idosas viram prostitutas para sobreviver na Coréia do Sul” – http://migre.me/kcKKs). É de uma das entrevistadas por essa reportagem a seguinte declaração: “Estou com fome, não preciso de respeito, não preciso de honra, só quero fazer três refeições por dia”. Apenas para melhor situar o leitor que porventura não quiser ler a reportagem, esclareço que estas palavras foram ditas por uma senhorinha sul-coreana, que, após ser abandonada pela família, foi buscar seu sustento na prostituição. Tal fato reproduz um drama humano cada vez mais comum naquele país, onde os “jovens dizem não ter mais condições de sustentar os pais em uma sociedade altamente competitiva.” A história a seguir foi inspirada nessa senhora.
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Dona Cidinha, aos 70 anos, é uma dessas senhorinhas cujo peso da idade as fez ficar delicadas e pequeninas como uma codorna. No caso dela, essa semelhança faz-se ainda maior, dado que tem suas costas envergadas numa curvatura similar ao do dorso daquelas avezinhas. Ela estava ali, numa esquina movimentada da área central da cidade – aguardando seu primeiro cliente da noite –, em pé, em meio a travestis e outras prostitutas. Vestia um charmoso vestido negro, estampado com pequenas poás brancas, calçava nos pés um par de tênis de academia, fluorescentes e multicoloridos, e trazia à mão direita uma sombrinha, que lhe servia como uma bengala.
Há 3 meses, havia sido abandonada por sua única filha, Maria Aparecida dos Nós – Maria Aparecida por parte de mãe, e dos Nós por parte de Nossa Senhora Desatadora dos Nós, de quem Dona Cidinha era devota desde quando o pai de Cida dos Nós, como sua filha era mais conhecida, a abandonara, ainda antes de a menina nascer. A filha, aos 19 anos, fugiu com um alemão que conhecera num barzinho da Vila Madalena, e nunca mais foi vista, nem tampouco notícias dela foram recebidas nesses 3 meses. Cida dos Nós era a responsável pelo sustento do pequeno apartamento, no qual ambas residiam de aluguel. Com seu sumiço, Dona Cidinha, já aposentada e sem ninguém a quem recorrer (não tinha mais parentes e amigos ou amigas vivos – Cida dos Nós era a única pessoa com a qual ainda contava), viu-se na iminência de uma ordem de despejo por falta de pagamento do aluguel.
A fim de evitar o constrangimento que seria ver-se posta para fora do apartamento, preferiu sair antes do despejo bater-lhe à porta. Colocou seus poucos pertences dentro de uma grande sacola e foi viver na rua, onde, na primeira noite, ainda ensaiou uma reza para sua santa de devoção, Nossa Senhora dos Nós, mas o cansaço a pôs a dormir antes mesmo de terminar a oração.
Quando os primeiros raios de sol começaram a lamber seu rosto, pensou que estava vendo aquela luz da qual tanto falam os que tiveram experiências de quase morte. Mas era apenas o início de uma manhã ordinária, para a qual despertara com uma extraordinária fome. Saiu a pedir, de janela em janela, perante os carros que paravam no cruzamento, ali próximo, para aguardar a abertura do semáforo. Mas de seus motoristas recebia apenas a indiferença dos vidros fumês fechados.
Uma travesti, de heróica elegância, que por ali passava em um conversível branco, a caminho do cabeleireiro, vendo aquela senhorinha, ali, em tão comovente sofrimento, teve compaixão dela. Dona Cidinha, de algum modo, a fazia lembrar-se de sua falecida mãe, cuja fotografia, plastificada, a travesti trazia guardada dentro de sua bolsa. Quando Dona Cidinha aproximou-se do conversível branco, a travesti a recebeu com um largo sorriso, expondo-lhe o brilho e a alvura impecáveis de suas facetas de porcelana.
– A senhora está sozinha, com fome?
Dona Cidinha hesitou por um instante: não sabia o que responder, dado que a questão fora dupla e não sabia colocar, em um rol de prioridades, o que lhe doía mais, se a fome ou a solidão – ou ambas em igual nível de sofrimento.
– Sozinha e
Aquilo tudo para ela era muito novo.
– com fome.
Ao ouvir isso, uma lágrima escorreu do olho direito da travesti, à maneira de um pingo de parafina numa vela acesa, borrando levemente sua maquiagem. Borraria ainda um pouco mais quando ela foi enxugar a lágrima com a mão.
– Entre aqui!
Convidou Dona Cidinha a entrar e sentar-se no banco de passageiros do conversível branco. A travesti, ao final, teve de sair para ajudá-la, pois Dona Cidinha, por si só, não conseguira dar a volta ao carro e entrar antes do semáforo abrir, e, com este aberto, o frenesi das buzinas e dos sons dos aceleradores dos carros ali ao redor já se fazia ensurdecedor. Com ambas já dentro do conversível, Dona Cidinha e a travesti,
– Qual a graça da senhora?
– Maria Aparecida, mas pode me chamar de Dona Cidinha. E a sua, minha filha?
– Lindaura.
cujo nome agora sabemos, ficaram a mobilhar o silêncio, enquanto rodavam pela cidade, como se fossem amigas de longa data.
– Prazer.
Lindaura cancelou seu cabeleireiro e voltou para seu apartamento, ali na Rua Itupeva, levando consigo Dona Cidinha. Lá chegando, ofereceu-lha um vasto café da manhã, banho e novas roupas. Tinha praticamente todas as roupas de sua falecida mãe ainda guardadas em uma caixa plástica, ao lado de uma antiga penteadeira, no seu quarto, sobre a qual havia uma infinidade de perfumes e cremes de beleza. Em cima da caixa plástica, uma toalhinha de crochê fazia o papel de cama para um gatinho de pelúcia, de olhos tristes de boneca, cuja calda, de longos pelos brancos, envolvia-lhe o corpo tal como uma estola.
Dona Cidinha, pelo resto daquele dia, acompanharia Lindaura onde quer que esta fosse, sempre ouvindo dela as histórias de uma vida que, para além da fina superfície de sua heróica elegância, era puro sofrimento físico e emocional, cada qual, à sua respectiva maneira, responsável por profundas e, em alguns casos ainda cálidas, cicatrizes naquele ser humano, cujo nome, Lindaura, só depois Dona Cidinha seria informada de que se tratava na verdade do nome de guerra
– Fui crismada Antônio Pedro.
de um homem,
– Meu pai era devoto de Santo Antônio, e minha mãe, de São Pedro.
com a idade para ser
– Daí o Antônio Pedro.
seu filho.
E, como tal, Lindaura acabou sendo adotada por Dona Cidinha, embora não fosse de todo errado dizer que Dona Cidinha é que acabara sendo adotada como mãe por Lindaura. O resultado, na prática, como hão de notar, dá no mesmo.
Dali em diante, passaram a fazer tudo juntas, unidas como unha e carne.
À noite, porém, quando Lindaura saía para o trabalho, Dona Cidinha – que até então nem desconfiava que trabalho era esse – ficava no apartamento. Sentia-se só, pois dormia pouco – não mais que 3 horas por noite –, e todo o restante do tempo ficava a pensar na vida, enquanto jogava paciência no computador de Lindaura. Certa noite, acabou adormecendo sobre o teclado e, quando acordou, viu diante de si, expostas no monitor, diversas fotos de Lindaura, em poses sensuais. Em outras fotos, havia mesmo pornografia: Lindaura aparecia com parceiros masculinos, desempenhando papéis sexuais que, na concepção de Dona Cidinha, seriam – ou ao menos deveriam ser – exclusivamente masculinhos.
Dona Cidinha ficou por alguns instantes como que hipnotizada pela visão daquelas imagens. Saiu do transe somente quando ouviu o som dos saltos de Lindaura aproximando-se da porta da sala, no hall de entrada do apartamento – era quase manhã. Desligou rapidamente o computador e correu para o lavabo, a fim de pegar um lenço de papel e limpar a baba que, ao cair de sua boca enquanto dormia, sujara de leve o teclado do computador.
– Bom dia, mãe!
Era assim que Lindaura a tratava.
– Já acordada?
– Acabei de acordar, filha.
Era assim que Dona Cidinha a tratava.
Mais do que simplesmente despertada de seu sono, Dona Cidinha via-se também acordada para uma realidade que lhe era distante: há muito tempo, desde a noite em que ela e seu parceiro fecundaram o que depois viria a ser Cida dos Nós, que ela nunca mais praticara sexo com ninguém – nem com ela mesma. Sentiu assim, por ocasião do contato com aquelas fotos, e com a realidade que elas enfim revelaram, correr pelo corpo um certo vigor de juventude.
Com naturalidade e sem adotar nenhum tom de julgamento, conversou com Lindaura a respeito de sua profissão.
– Ganha-se bem?
Quis saber, deixando escapar um quê de ambição,
– Sim
legítima até, para quem, há pouco, tivera chegado ao fundo do poço da pobreza material
– e eu me divirto muito fazendo o que faço.
e da descartabilidade social.
– Acabo conhecendo muitos homens interessantes, que me presenteiam com momentos, histórias e mesmo presentes materiais maravilhosos.
Na noite daquele dia, que no momento desse diálogo estava apenas começando, encontraríamos Dona Cidinha, como no início desta crônica, vestida com um charmoso vestido negro estampado com pequenas poás brancas, calçando nos pés um par de tênis de academia, fluorescentes e multicoloridos, trazendo à mão direita uma sombrinha, que lhe servia como uma bengala. Junto dela, Lindaura, em um elegante vestido de cetim verde-esmeralda, que descia até a uma altura um pouco acima de seus joelhos. Ambas estavam em pé, em meio a outros travestis e outras prostitutas, paradas em uma esquina movimentada da área central da cidade.
Um senhor, vestindo um distinto terno de linho branco, tendo sobre a cabeça um chapéu panamá da mesma cor, aproxima-se de Dona Cidinha. Esta logo nota – e vê-se seduzida por – seu belo peito, parecido com o de um pássaro columbiforme, destacado ainda mais por um plastron que ele trazia preso ao pescoço por um alfinete com cabeça de madrepérola. Acomodava em seu braço esquerdo, dobrado como um gancho, um gato persa, branco, de ar entediado. O senhor para Dona Cidinha:
– Sua graça?
Dona Cidinha, a essa altura, fazia carinhos na cabeça do bichano, e este agradecia em sua linguagem de ronronados, semicerrando os olhos à maneira de um filatelista.
– Bárbara.
Respondeu-lhe. E o senhor para ela:
– Altidore, prazer.
Enquanto, num gesto de vênia, trazia a mão de Bárbara para junto de seus lábios, a fim de beijar-lhe o dorso.
– Prazer.
Ela disse-lhe.
Saíram dali de mãos dadas, a caminhar tranquilamente pela rua. Duas figuras que, pela idade e trajes, eram tão estranhas àquele entorno, que pareciam andar tendo ao fundo um cenário artificial, montado sobre um chroma key.
– Mãe?
(Vinha ela pela rua, caminhando tatibitate)
Lindaura tentava acordar Dona Cidinha,
– Mãe!
(Levava a mãozinha na cintura, toda cocotinha)
que dormia agarrada ao gato de pelúcia, o guardião da caixa plástica na qual eram guardadas as roupas da falecida mãe de Lindaura, as quais Dona Cidinha tomara posse.
(Àqueles que a xingavam de biscate)
– Oi…
(Respondia-lhes: “biscate é a vovozinha”)
– Acorde. Você está bem?
– Ora, pois sim, por quê?
Deixando o gato de pelúcia de lado.
– É que você estava falando sozinha enquanto dormia. Devia estar tendo algum pesadelo.
– Será!? Acho que não.
Dona Cidinha já não se lembrava mais do que sonhara.
– Acorda, acorda. Vamos tomar café.
Dona Cidinha levantou-se
– Já vou indo, minha filha.
e foi até o lavabo, a fim de se recompor.
– Te espero lá na cozinha então.
Momentos depois, quando Dona Cidinha entra na cozinha, e Lindaura a vê vestida com um charmoso vestido negro estampado com pequenas poás brancas, calçando nos pés um par de tênis de academia, fluorescentes e multicoloridos, trazendo à mão direita uma sombrinha, que lhe servia como uma bengala, admirada, Lindaura exclama:
– Mãe, a senhora está bárbara!
Lisonjeada, Dona Cidinha dobra os joelhos, num gesto de vênia, levantando as abas do vestido, como um curto abrir de asas de uma pequena codorna.
Um pombo branco, pousado sobre o parapeito da lavanderia ali ao lado da cozinha, que a tudo ali dentro acompanhava com seus olhinhos vermelhos, assustou-se com o gesto de Dona Cidinha, bateu asas e voou até desaparecer em meio aos prédios, engolido pelo cinza, do modo como a memória que os outros têm de nós é engolida pelos anos, à medida que estes passam, depois que daqui nos vamos.
  

De passagem por essa vida

Estou sentado à mesa de uma cafeteria, bem próxima de casa. É de manhã, e enquanto bebo o primeiro café do dia, vou olhando umas fotos de família, que trago dentro de uma caixa de sapatos. São várias fotografias muito antigas, algumas já bastante danificadas pela corrosão do tempo e dos elementos. Seleciono uma delas e coloco sobre a mesa.
Na mesa ao lado, a poucos metros da minha, há uma senhora bastante idosa. Somos os únicos clientes do estabelecimento. O olhar dela está direcionado ao vazio – é um olhar carregado de uma solidão tal, que parece até pesar sobre suas costas frágeis, a ponto de fazê-las curvarem-se, à maneira de uma cariátide.

Lembra-me o tipo de olhar que já por tantas vezes notei nos olhos dos porteiros dos grandes prédios residenciais de São Paulo – falo daqueles prédios mais antigos, que ainda não escondem esses homens por detrás de vidros escurecidos.

(estes devem sentir-se ainda mais solitários)

Faz frio, mas, apesar disso, a senhora na mesa ao lado está vestida apenas com um leve vestido de chita, que mal lhe cobre boa parte das suas pernas e braços.

Intrigado, tomo o último gole de café que ainda sobrava no fundo da xícara, aproximo-me dela e, depois de cumprimentá-la:

– Bom dia.

Pergunto-lhe:

– A senhora não está com frio?

e então ofereço-lhe:

– Gostaria de um café ou um chá bem quente?

Como as folhas de uma árvore em um dia sem vento, a velha senhora continua imóvel; seu olhar, ainda fixo no vazio. Mas seus olhos agora parecem estar mais brilhosos do que quando a notei há instantes. Logo descobri a razão: lágrimas.

Posiciono-me à frente dela, de modo a ocupar, com o meu corpo, o vazio que ela contempla. Noto, enfim, meu reflexo nas pupilas de seus olhos, ou pelo menos penso ver-me dentro deles. Pergunto-lhe:

– Qual o nome da senhora?

no que ela levanta ligeiramente sua cabeça, olha-me bem de frente, como quem nos olha de uma fotografia, e responde-me:

– Arlete.

numa voz baixa, cansada, que parece ter chegado às suas cordas vocais depois de peregrinar, sozinha, por longas distâncias e por tempos imemoriais.

– Prazer.

digo-lhe.

– O meu nome é Serafim.

E, enquanto meus olhos continuam detidos por aquela figura, os olhos de Arlete, por sua vez, voltam a emular os olhos de uma estátua.

Penso em quanto ela faz recordar-me de minha avó, que em seus últimos anos de vida olhava-me sem me notar, pois o Alzheimer fizera com que ficasse sem memória, de modo que, aos olhos dela, eu ou qualquer outra pessoa da família éramos sempre estranhos, recém-chegados ao seu convívio. Esquecidos por sua memória, já devíamos estar mortos para ela há muito tempo.

No dia em que ela veio a falecer, o primeiro pensamento que tive, ao saber de sua morte, foi imaginar que horrível solidão deveria ser morrer daquela maneira, sentindo-se cercada por estranhos, em um mundo onde a falta de memória eliminara de seu convívio todos que ela conhecia: família, amigos.

(que morte não é solitária?)

Essa lembrança faz meus olhos marejarem.

(– Como a senhora está, vó?

– De passagem por essa vida.)

Pego um lenço que trago no bolso da calça e enxugo os olhos. Uma lágrima cai sobre a foto que eu havia retirado de dentro da caixa e colocado sobre a mesa, molhando-a um pouquinho. A imagem do mar, na foto molhada pela lágrima, parece agora ganhar movimento, cheiro.

Na minha frente, Arlete ainda está envolta, como minha avó vivera em seus últimos anos de vida, na invisível redoma do Alzheimer, isolada de tudo e todos ao seu redor.

Ao menos suas lágrimas parecem ter cessado de escorrer. Forçando um pouco meus olhos, consigo notar o tracejado que as lágrimas, ao secarem, deixaram nos seios de sua face. São marcas sutis, ainda mais se comparadas às rugas que vincam a pele de seu rosto. Ambas, por certo, são testemunhas das mesmas dores; de todas as dores que, à maneira de um cinzel, esculpiram aquele ser diminuto, curvado, sentado à minha frente, cujo olhar, de tão distante, parece separado de mim por uma fronteira de muitos anos.

Sinto-me tão pequeno diante de toda a história que deve comportar essa mulher. Imagino como seria fascinante se pudéssemos colocar uma agulha de vitrola para correr sobre os sulcos de sua pele vincada e ouvir tudo que estaria registrado naqueles baixos relevos.

A casa dela, provavelmente, deveria ser repleta de retratos dispostos pelas paredes, em álbuns ou mesmo em caixas. Sempre gostei de explorar a casa das pessoas mais velhas, ouvir suas histórias e, deleite supremo, vasculhar aquelas caixas de fotografias antigas, como esta que trago comigo. Aprecio reparar no que vestiam, como eram os locais que hoje conheço em épocas passadas. Sobretudo, gosto de olhar fundo nos olhos dos retratados, e procurar naqueles olhos um enredo para aquelas imagens. Nem sempre consigo: nem todos os olhos têm algo a nos dizer: alguns tanto testemunharam, que lhes falta mesmo meios para contar tudo que viram.

É este o caso dos olhos de Arlete, e quando, mais uma vez, volto meu olhar para bem dentro dos olhos dela, percebo que aos poucos eles começam novamente a verter lágrimas.

Quando menino, perguntei a uma professora de química se as lágrimas de tristeza tinham a mesma composição química das lágrimas de alegria. A professora, uma mulher de olhar frio e distante, não soube me responder. De seus lábios, quase imóveis, instalados naquele rosto que, de tão inexpressivo, mais parecia a parede lateral envidraçada de um edifício, ouvi apenas um:

– Desconheço.

Bem seco, ríspido até.

Olhando em retrospectiva, hoje creio que ela mal sabia o que eram lágrimas. Foi minha avó que, em sua enorme sabedoria e generosidade de mulher simples, quando por mim também questionada a respeito, disse-me um dia, a fim de explicar-me seu entendimento:

– Não saberia lhe dizer, meu filho, se as lágrimas de tristeza e de alegria teriam composições químicas distintas, mas certamente têm composições emocionais bem diferentes.

E isso bastou para mim. Eu era então uma criança ingênua, um menino.

Tomo as mãos de Arlete com as minhas e passo a acariciar a pele muito macia e fina dos seus dorsos, cheios de pintas senis.

(como as mãos de minha avó)

– Dona Arlete?

chamo-a, intensificando as carícias sobre suas mãos.

– Por que a senhora está chorando?

pergunto-lhe, enquanto vejo escorrer aquelas lágrimas,

– Aconteceu algo?

que novamente descem de seus olhos, preenchendo os vincos da pele de seu rosto.

Fui um menino sensível, chorão. A pele de meus sentimentos talvez fosse frágil demais para as tantas cercas cheias de pregos e espinhos que a vida forçou-me a cruzar desde muito jovem.

(vida severina)

Ao contrário, hoje, já velho, sinto como se as minhas lágrimas tivessem secado em definitivo. Vai ver é um prenúncio do momento, quiçá próximo

(daqui a nada)

quando eu mesmo não serei nada senão um conjunto de pele e ossos secos.

Peço um outro café. Enquanto o garçom vai buscá-lo, volto a observar Arlete e seus olhos distantes, como se estivessem a mirar o horizonte diante do oceano.

Minha avó foi criada durante toda a sua vida no interior. Nunca havia visto o mar, a não ser em fotografias. Na primeira vez em que finalmente pisou na areia de uma praia e aproximou-se do mar, sentiu-se desequilibrada pelo repuxo das águas. Recordo-me de vê-la então voltar as costas para o mar e, com um olhar de pânico, retornar para junto de nós. Mais tarde naquele dia, consegui convencê-la a voltar para a água, junto comigo. De mãos dadas, fomos até o ponto onde ficamos submersos até a cintura e dali voltamos. Ao abrigo do guarda-sol, ficamos eu e ela a conversar sobre a vida, pelo resto daquela tarde. O olhar de pânico dera lugar a um olhar cheio de ternura

(um olhar-abraço)

como que depositário de um amor generoso, sentimento que nela prevalecia, apesar de a sua vida

(vida severina)

ter-lhe tantas vezes querido impor outros sentimentos.

Minha avó era cheia de histórias para contar, algumas divertidas, mas a maioria era carregada de muito sofrimento.

(agrada-me chorar, afinal temos lágrimas pra quê?)

De qualquer forma, eu passava horas a ouvi-la. Com um sentimento de pesar, dou-me conta agora que todas essas histórias iam deixando de ser narradas à medida que suas testemunhas foram morrendo. Sendo eu o último dessas testemunhas, também as histórias de minha avó, que trago comigo, deixarão de ser contadas quando eu partir dessa vida. E então não haverá mais ninguém para, por exemplo, contar-lhes a respeito do que vem registrado na foto que depositei sobre a mesa à minha frente: uma fotografia em preto e branco, que eu e minha avó tiramos naquele dia de praia. Nela, ambos estávamos a olhar de frente para o mar e para a lente do fotógrafo. Eu estou a sorrir, e ela

(toda curvadinha em seu vestido de chita)

tem um olhar distante. Nos seus olhos, vendo a imagem agora com atenção, noto que haviam lágrimas.

No verso da fotografia, a inscrição: “1965”, seguida de “minha mãe Arlete e meu filho Serafim”, escrita por minha mãe, a identificar os personagens, o tempo e o lugar: “na primeira ida de ambos à praia”, registrados por meio daquela velha fotografia.

  

Eva

Logo daqui a uma hora, será oficialmente amanhã: outro dia. Digo “dia” apenas para fins de calendário, pois, ao que parece, a noite é quem ainda me fará companhia pela madrugada adentro, até que os primeiros raios de um sol incerto(vai que o dia de fato amanhece nublado…)

venham iluminar a janela do meu quarto, como uma luz avistada ao final de um longo e escuro túnel.

(mas quando nos deslocamos dentro de um túnel, vamos ao encontro da luz – aqui estou parada: a luz é que vem ao meu encontro; ela é que está no controle – não eu. Isso deveria me tranquilizar?)

Serei eu quem essa luz encontrará, ou será aquele.., aquela

(ou aquilo?)

que ao final desta longa noite, feita ainda maior

(é-nos tão relativa a perspectiva do tempo)

pelas horas em vigília, sobrar de mim?

Durante o dia, o silêncio é-me tão raro,

(quase inexistente de fato)

à noite, embora ele me circunde, esteja ao meu redor, quando sofro de insônia ele não está dentro de mim. É como se meu corpo fosse mergulhado em um mar de águas escuras e calmas, deixando minha cabeça

(que não silencia)

à mostra, por sobre a superfície, a lutar para manter-se à tona, à semelhança da cabeça de um náufrago, que, à noite, olha fixamente as estrelas no firmamento, acreditando, com certa resignação,

(eis que não lhe resta mais nada em que acreditar: a morte está à espreita, pode senti-la bem próxima, como quando alguém toca-nos no ombro)

que aquela será a última imagem que verá em vida.

Quem dera eu poder silenciar minha mente, submergir neste mar: adormecer. Mas minha mente e o sono

(esse mar)

parecem imiscíveis.

Houve um tempo, num passado não tão distante, em que o amanhecer era-me anunciado pelo canto dos pardais, que, mal o sol nascia, vinham fazer festa no cipreste que existia aqui em frente à janela do meu quarto.

(derrubaram-no)

Hoje o dia chega sem festa – apenas os ruídos da cidade vêm despertar-me.

(adormeci?)

Ainda há pouco, antes de deitar-me, enquanto banhava-me, ao abaixar-me para pegar o sabonete, que caíra no chão do box do banheiro, notei as marcas que o elástico da meia-calça havia deixado na parte superior da pele de minhas coxas.

(pareciam cicatrizes

(em brasa)

provocadas por ferro quente)

Podia-se ver, no baixo relevo encarnado,

(que se assemelhava a uma ferida aberta)

perfeitamente, os contornos barrocos da renda que ornamentava o elástico da meia-calça.

Peguei o sabonete, com ele enchi a bucha de espuma e iniciei uma vigorosa esfregação, seguindo todo o contorno das marcas deixadas pelo elástico da meia-calça, em volta de minhas coxas. Queria livrar-me daquelas marcas, mas tudo que consegui foi torná-las ainda mais evidentes sobre a minha pele. Doíam como uma tatuagem recém-feita.

(à dor emocional veio juntar-se a dor física)

As lágrimas do chuveiro, misturadas às gotas de meus olhos, caiam sobre o piso frio do banheiro, reproduzindo o som que muito me lembrava o da chuva

(fria)

que caía sobre a cidade, no final daquela tarde em que,

(encharcada)

após ter enfrentado todo o longo itinerário percorrido pelas duas conduções que eu tomara para ali estar, tendo antes pensado em desistir,

(a todo momento pelo caminho)

bati à porta da clínica médica e pela última vez respondi:

– Mário.

Ao perguntarem-me, lá de dentro:

– Quem é?

Ali, naquele lugar, decorado de maneira impessoal, fria,

(além de minha sombrinha, que tinha uma vareta quebrada, e que lá esqueci)

deixei todas as minhas economias. Para trás, também ficaram um passado, uma história, uma identidade, que, à toda evidência, não se mostravam verdadeiros

(legítimos)

perante quem eu me sentia de fato.

Quando tive alta, no dia seguinte àquele em que lá chegara, vesti-me com a única troca de roupa que levara comigo, dentro de um saco de lixo de plástico preto. Parada ali diante do espelho, no quarto de repouso da clínica, não vi mais refletida quem eu era.

(e quem eu era?)

Quando, nesse dia, a enfermeira entrou no quarto, vestindo um uniforme branco, que quase não contrastava com sua pele alva como um papel de arroz, trazendo-me o prontuário com o qual eu teria alta, chamou-me:

– Senhor Mário?

No que fiquei alguns segundos, minutos… não sei dizer,

(é-nos tão relativa a perspectiva do tempo)

a fitá-la, sem saber o que responder.

Não que meu nome tivesse mudado: continuava a chamar-me Mário. Contudo, mais do que nunca, alguém chamar-me por esse nome afigurou-se-me descabido, algo ofensivo até.

Após alguns segundos, minutos… não sei dizer,

(é-nos tão relativa a perspectiva do tempo)

pedi-lhe:

– Pode me chamar de Eva.

A enfermeira então assentiu com a cabeça, silenciosamente,

(o silêncio impalpável daqueles que não estão mais entre nós)

e entregou-me o prontuário.

Assinei-o, terminei de me vestir

(um bustiê, uma saia plissada, meia-calça, sandálias de salto alto e, na cabeça, uma diadema)

e saí pela porta como que a renascer, trazendo no rosto a expressão serena de quando morremos.

(e não a expressão de medo de quando nascemos)

Já em casa, após o banho, tendo desistido de livrar-me das marcas em minhas pernas, deitei-me: precisava descansar. Mas se no tempo em que estivera internada na clínica, graças aos sedativos que me foram prescritos, eu conseguia adormecer com facilidade, dormir agora parece uma batalha. Sinto-me amedrontada como uma criança abandonada à noite em um parque infantil deserto, a observar um carrossel que gira desgovernado. É minha cabeça a girar, penso.

(não reconheço o olhar dos cavalinhos: parecem perdidos, distantes, como o olhar das gentes na multidão)

Minha cabeça dói, meus músculos doem, meus ossos também. Após ter tentado, em vão, várias posições para dormir, eis que ao deitar-me de bruços, pelo menos consigo aliviar o incômodo que me causavam as grandes asas de borboleta, feitas de acrílico púrpura, salpicado de bolinhas brancas, que me foram implantadas no alto de minhas costas, por entre as omoplatas.

A julgar pela luz do sol que entra pela janela, está a amanhecer, já é outro dia. Não sei quem sou.

(ou o que restou de mim)

Sei apenas que não sou mais quem eu era.

(e quem eu era?)

Os ruídos da cidade invadem meu quarto, assim como antes o invadia o canto dos pardais.

(adormeci?)

Abro a janela, miro o sol a nascer por detrás dos prédios e resolvo estrear minhas novas as as.
  

Dordolhos

Aos dias seguiam-se noites, e a estas seguiam-se outros dias, num ciclo que parecia não ter mais fim. Dentro daquele pequeno cômodo, cercado de paredes de tijolos por todos os lados, exceto pela parede de vidro bem à sua frente, Dordolhos chegava a perceber algo dessa alternância entre dias e noites, mas não pela simples variação entre luzes e sombras e vice-versa. Havia, de fato, períodos de maior luminosidade em que, para o outro lado da parede de vidro, acorria um grande número de pessoas; e outros em que estas sumiam de todo, e a única movimentação que Dordolhos podia então acompanhar, na escuridão que se formava ao seu redor, era a de um senhor que volta e meia passava caminhando do lado de fora daquela parede de vidro, com uma lanterna acesa na mão. Quando ele vinha, mirava a luz da lanterna através da parede de vidro, fazendo-a percorrer o chão escuro daquele cubículo, até encontrar com os pés de Dordolhos, e dali fazia-a regressar. Homem e lanterna depois seguiam pelo corredor, deixando para trás treva tamanha, capaz mesmo de tornar indistintas, aos olhos de Dordolhos, as quatro paredes – três de tijolos e uma de vidro – que a envolviam. Nem ela nunca soube dos olhos dele, nem ele chegou a algum dia saber dos olhos dela. Dordolhos não era seu nome de batismo – na verdade, ignorava-o. Na sua infância, certa vez, acometida por uma grave conjuntivite que demorou semanas para sarar, acabou apelidada de Dordolhos pelos meninos de seu bairro, e o apelido logo depois apoderou-se de seu nome, e assim, como Dordolhos, ela passou a ser chamada daí em diante.

Única filha de um pai pedreiro e de uma mãe dona de casa, Dordolhos viu-se órfã de ambos, ainda muito menina. Seu pai e sua mãe morreram em condições até hoje não explicadas. Saíram uma noite para ir ao culto da igreja, deixando a pequena Dordolhos em casa, na companhia de sua avó materna, Dona Eulália, e nunca mais voltaram. Ao acordar na manhã seguinte àquela noite, a menina procurou por seus pais e foi avisada por sua avó, em prantos, que eles haviam partido para um lugar distante e que demorariam a voltar. Passaram-se então dias, meses e depois, finalmente, anos, num tempo tão longo que lhe pareceu não ter mais fim, e nada de seus pais retornarem. 

Na manhã seguinte ao desaparecimento de seus pais, com seus olhos fixos, a mirarem o nada através da janela do barraco, e tendo seus cabelos ligeiramente balançados por uma brisa morna que por ali entrava, Dordolhos viu seu ser tomado por um sentimento de abandono, de solidão. Com o passar do tempo, resignou-se.

Graças à solidariedade de alguns vizinhos e de Dona Eulália, que acabou por adotá-la, a menina sobreviveu. Dias depois do desaparecimento de seus pais, Dordolhos já estava morando com sua avó, no barraco em que esta residia, localizado num bairro não muito distante daquele onde a menina antes vivera com seus pais. O desaparecimento destes era, aliás, assunto proibido na casa de sua avó e mesmo naquele bairro. O silêncio, tal qual um sudário que encobre um cadáver, cobria a verdade por trás do misterioso sumiço, impedindo que lhe acessassem.

Certo dia, quando Dordolhos já era mulher adulta, uns homens vieram bater à porta do barraco onde ela ainda morava com sua avó. Ficaram pouco tempo e em seguida partiram, levando Dona Eulália com eles. Nem ela nem sua avó esboçaram nenhuma reação: era natural desaparecer: não se sabia de ninguém que tivesse morrido por aquelas bandas: as pessoas simplesmente desapareciam.

Mas ao contrário do sol, quando ao final do dia, põe-se no horizonte, para no dia seguinte ressurgir do lado oposto do mesmo horizonte, não havia retorno para aqueles que dali desapareciam – simplesmente nunca mais voltavam e deles jamais sabia-se notícia alguma.

Então, depois de levarem sua avó, Dordolhos passou a morar sozinha no barraco. Seu sustento tirava dos bordados que fazia e depois vendia para suas vizinhas. Nunca chegara a desbravar a cidade para além dos limites do seu bairro, uma enorme favela que crescia sem parar, às margens de uma movimentada rodovia, que cruzava uma área da cidade tida por nobre.

Anos depois, numa manhã de inverno, em que um forte nevoeiro baixara sobre o bairro, atrasando o surgimento do sol e com isso aumentando a sensação de frio e desamparo dos moradores daquela comunidade, Dordolhos, então já uma velha, acordou assustada ao som de marretas e bate-estacas. Ignorando a presença dela ali dentro, uns homens puseram uma das paredes do barraco abaixo e, no seu lugar, instalaram uma grande vidraça, que, tal qual uma vitrine, foi limpa e polida com esmero. Todas as demais saídas do barraco, basicamente uma janela e uma porta, foram vedadas com tijolos. Só um pequeno orifício, suficiente apenas para a passagem de um prato de comida, foi deixado aberto na parede. Depois desse ocorrido, através dele, de fato, três vezes ao dia, e uma vez à noite, alguém que Dordolhos não conhecia nem sequer pelas mãos, uma vez que estas estavam sempre envoltas em luvas cirúrgicas, fazia passar por ali um prato de comida e alguma bebida, em geral apenas água.

À frente da vidraça que substituíra uma das paredes do barraco, agora passam homens, mulheres, crianças e velhos, todos a depositarem olhares curiosos, entediados, cheios de pena ou mesmo aversão, sobre aquela mulher velha, sentada encolhida do outro lado da parede de vidro, que, pela perspectiva deles, de lá de fora, não era nada senão mais uma mercadoria exposta numa vitrine, assim como tantas outras do grande ‘shopping center’ construído no entorno do barraco de Dordolhos, e que por fim acabou aprisionando-a, ali dentro, como um animal enjaulado, fazendo dela, depois disso, uma atração para os frequentadores do grande centro de compras, os quais, olhando através daquela vitrine, tinham a oportunidade de ver o exemplo vivo de um ser humano excluído.

  

As rosas não falam

Seus cabelos grisalhos, que no passado chegaram a ser totalmente brancos, ostentavam agora exuberantes tons e sobretons de roxo e viviam presos em um coque, no alto da cabeça, que, visto a uma certa distância, lembrava um botão de rosa, imagem que determinadas percepções costumam associar a uma vida ainda por ser vivida. 

Diz-se, metaforicamente:

– Aquela criança ainda é como um botão de rosa. Um dia há de desabrochar, tornando-se, enfim, um adulto bem sucedido.

Mas a dona daqueles cabelos em tons e sobretons de roxo, presos em um coque no alto da cabeça, estava bem distante de lembrar algo próximo de uma vida ainda por desabrochar, pois, aos 88 anos, Milagres era, sim, exemplo típico de uma vida às voltas com o seu crepúsculo. Julgava mesmo ter vivido até demais, pois, quando ainda bebê, chegara a ser desacreditada por um médico que, pegando nas mãos de sua mãe, pondo-as juntas e elevando-as à altura dos olhos, como numa prece, comunicou-lhe, numa voz solene e fria:

– Creio eu que sua filha deverá viver só mais uns dois dias.

No que a mãe de Milagres, ao ouvir isso, olhou o médico fixamente nos olhos, desviando-os por ligeiros instantes para olhar a pequena criança, magra devido à desidratação, deitada no Moisés. Então respondeu-lhe, sem dizer palavra nenhuma, fazendo uso apenas da silenciosa linguagem universal das lágrimas, que diz muito sobre nossas alegrias, ou, no caso dela, enorme tristeza, sem por vezes recorrer a palavra nenhuma.

Passados os dois dias previstos pelo médico, para a sobrevida da pequena Milagres, a morte não veio buscá-la, nem o fez depois. Contra todas as expectativas, ao menos aquelas do médico, Milagres sobreviveu e cresceu 

(desabrochou) 

para tornar-se uma jovem robusta, cuja alegria de viver em nada parecia trazer o registro daquele passado que quase lhe surrupiara o futuro.

Aliás, foi graças, em parte, a essa alegria, que Milagres conquistaria Antenor, homem de 40 anos com quem ela viria a se casar aos 30 anos, idade em que a maioria das mulheres de sua família já estava casada, tendo inclusive dado à luz ao segundo ou terceiro filho, daí porque, à época, antes de Antenor aparecer na vida de Milagres, sua mãe, tias e primas consideravam que ela já estava fadada a viver solteirona pelo resto da vida.

Seguindo a tradição dessas mulheres de mesmo sangue que o seu, Milagres, mesmo aos 30 anos, casou-se virgem. Uma vez casada, porém, a alegria que cultivava no seu modo de viver foi aos poucos minguando, pois Antenor punha-se a chorar todas as vezes em que iam para a cama. Acabava então no colo de Milagres, que aí o acolhia à maneira de uma Pietà. Isso desde a noite de núpcias. No tempo em que viveram juntos e casados, nunca falaram a respeito das causas desse comportamento. Acabou que o mistério sobreviveu a Antenor, pois este, vitimado por um repentino ataque cardíaco, veio a falecer dois anos após o casamento com Milagres. Ela, traumatizada pela experiência, nunca mais voltou a se casar e nem a estar com nenhum outro homem.

De rabo de ouvido, escutou uma vez suas primas a cochicharem que ela:

– É um botão de rosa que murchou antes de desabrochar. 

Fazendo uma maldosa referência à situação de Milagres, que unia viuvez e virgindade em uma mesma pessoa.

A bem da verdade, Milagres nunca mais quis estar com nenhum outro homem por sentir-se em débito

(e portanto culpada)

com uma regra soberana das mulheres de sua família, a qual obrigava, cada uma delas, a casar-se cedo 

(o que ela já não tinha cumprido)

e viver com o mesmo homem até a morte separá-los, e daí em diante, se acaso a sobrevivente fosse a mulher, nunca mais se casar, vivendo como uma solitária viúva até morrer.

Felizmente, para Milagres, Antenor não deixou apenas saudade, mas também uma grande herança, que permitiu a ela viver com razoável conforto mesmo após a partida dele.

Mas se a herança era grande, também o era a saudade que ela sentia de Antenor. Para lidar com ela e também com a solidão, Milagres espalhava fotos deles dois juntos por toda a casa. Com o mesmo fim, procurava manter sua rotina a mais próxima possível de quando seu marido ainda era vivo. À noite, por exemplo, como alguém que continua a caminhar com o guarda-chuva aberto mesmo depois de cessada a chuva, Milagres continuava a dormir do mesmo lado da cama de casal, o direito, que sempre ocupara quando Antenor ainda era vivo. Nunca foram de dormir entrelaçados: Antenor era um homem calorento; Milagres era friorenta, mas preferia aquecer-se na manta Parahyba a buscar o calor junto ao corpo de seu marido.

No lado da cama que Antenor antes ocupava, há agora um pequeno declive, deixado ali, como uma sequela na estrutura do colchão, pelo peso do seu corpo. No meio daquela depressão, há uma arca, dentro da qual estão depositadas as cinzas de Antenor. Aquele lado da cama era, portanto, para Milagres, como que um altar fúnebre em memória do falecido.

Tinha sido o último desejo de Antenor, ainda em vida, ser cremado após a morte e ter suas cinzas jogadas por sobre um campinho de várzea, a alguns quarteirões da casa onde moravam, mas Milagres, que nunca tinha gostado de ver Antenor deixá-la sozinha, todos os domingos pela manhã, para ir àquele campinho jogar bola com seus amigos, decidiu não atender essa segunda parte do pedido. Não cumprir o último desejo em vida de Antenor, para após sua morte, de certa forma, ajudara Milagres a ver finalmente cumprido o seu próprio, único e singelo desejo: ter Antenor ali ao lado dela também nas manhãs de domingo.

Certo dia, logo cedo, ao despertar, Milagres estendeu seu braço direito para o lado, jogando-o sobre a parte da cama, que antes era ocupada por Antenor, e nisso, fez tombar a pequena arca com as cinzas, no que estas acabaram espalhando-se sobre aquele local do lençol onde havia o declive.

As cinzas de Antenor, esparramadas ali sobre o lençol, naquela parte onde o colchão formava um baixo relevo do tamanho do seu corpo, lembraram a Milagres o pó de café que ficava depositado no fundo do coador de pano utilizado por sua avó materna. 

Na sua infância, quando de férias, Milagres costumava passar alguns dias na casa da avó. Juntas, acordavam bem cedo, logo que os galos da vizinhança começavam a cantar, como se quisessem, com seu canto, despertar o sol de seu sono.

Enquanto punha a mesa, Milagres via sua avó preparar o café, ficando inebriada pelo aroma que tomava conta da cozinha. O cheiro daquele café preparado em coador de pano acabou registrado em sua mente, por toda a vida, como o cheiro das férias que, em sua infância, passava no interior.

Do pó de café, uma vez utilizado, sua vó fazia adubo, jogando-o por entre os xaxins das samambaias, que ornamentavam a ampla varanda na frente da casa dela. Milagres, dali do entreportas, acompanhava tudo com curiosidade. Sua avó uma vez disse-lhe:

– O pó do café faz com que elas cresçam mais frondosas.

Assim, em poucas palavras, de modo muito objetivo, como era de seu hábito, a avó justificou o porquê de jogar o pó usado do café dentro dos xaxins das samambaias.

E, de fato, as samambaias de sua avó tinham mesmo uma vitalidade surpreendente: pareciam estar ali desde os primórdios da Terra.

Despertada dessas lembranças, que por instantes tomaram sua mente de assalto, e de volta ao presente, Milagres, com certa indiferença, conseguiu, enfim, recolher as cinzas de Antenor, envolvendo-as no lençol. Levantou-se e, com o lençol enrolado a envolver as cinzas, caminhou até a janela do quarto. Lá, debruçou-se sobre o peitoril e, com os braços estendidos para fora, sacudiu as cinzas, que, ante a completa ausência de vento, acabaram por ir-se depositarem sobre o solo do que um dia tinha sido um jardim, e onde agora havia apenas terra nua, ressequida, sem nenhuma vegetação.

Depois do falecimento de Antenor, Milagres foi abandonando, um pouco mais a cada dia, a idéia de cuidar de qualquer vida que não a sua própria. Nesse processo, foi-se desinteressando, entre outras coisas, por cultivar o jardim de rosas, de variadas cores, que alegravam a entrada da casa quando Antenor ainda era vivo, no que sempre recebia a ajuda do marido, que, aliás, parecia nutrir maior amor por aquelas flores que por sua esposa. Com o abandono, as roseiras foram cedendo lugar ao mato e, num ano de muito pouca chuva, tudo secou de vez, restando ali nos canteiros apenas palha seca. Nem mesmo desta resta agora vestígio.

Não se sabe ao certo, mas não seria de todo absurdo especular que a adubação proporcionada pelas cinzas de Antenor, ajudada pelas chuvas frequentes que, a partir daquele dia, começaram a cair ao final das tardes, como que por um milagre, após um ano de muita seca, fizeram as roseiras voltarem a nascer, vestindo de verde aquela terra novamente. Em pouco tempo, surgiram os primeiros botões e, logo em seguida, as roseiras estavam floridas, sem que para isso tivesse sido necessária qualquer interferência de Milagres, outra que não ter jogado ali as cinzas do seu falecido marido, e depois lá esquecê-las. 

Um senhor que passava por ali, em frente à casa de Milagres, todas as manhãs, no caminho para o seu trabalho, ao notar as roseiras frondosas, no meio das quais rosas multicoloridas floresciam, que em poucos dias haviam dominado a frente da casa, e como apreciador de flores que era, certa vez, numa manhã ensolarada, tomou coragem e tocou a campainha da casa de Milagres. Estava curioso para saber quem era a responsável 

(assumia que fosse uma mulher)

por tão belas rosas a florirem naquele jardim.

Tocou a campainha uma, duas, três vezes e ninguém atendeu.

Pensou:

(– Vai ver ainda dorme.)

Depois, disse baixinho:

– Não quero incomodar o sono de ninguém.

E, em seguida, continuou seu caminho, como quem diz:

– Volto outro dia.

E, de fato, assim o fez. No dia seguinte, no mesmo horário, nova tentativa na campainha: uma, duas,

– Pois não?

no segundo toque, Milagres enfim atendeu.

– Bom dia.

Disse-lhe o homem, no que ela, com a voz rouca de quem acabara de acordar, respondeu:

– Bom dia. Em que posso ajudá-lo?

E ele, nervoso:

– Eu passo aqui nesse horário, diariamente, e dias atrás notei essas rosas incríveis aqui no jardim em frente à casa da senhora.

– Rosas!?

– Sim. Rosas lindas, multicoloridas como uma colcha de retalhos.

Milagres desconhecia que aquelas rosas a que o senhor ao seu portão se referia existissem. Na sua vida reclusa, pouco saía à porta da frente e, quando o fazia, a fim de ir ao banco ou para comprar algo no mercado, ou os dois, caminhava cabisbaixa

(como uma flor murcha)

indiferente a tudo e a todos ao seu redor.

– Queria dizer-lhe apenas que a senhora está de parabéns. Essas rosas em seu jardim são uma injeção de alegria nessa vizinhança tão triste.

Um tanto sem jeito, Milagres agradeceu-lhe:

– Obrigada. 

E, algo intrigada, perguntou:

– Qual o nome do senhor?

E ele respondeu:

– Antenor.

Mal o homem terminara de pronunciar o: 

– Antenor.

Milagres sentiu sua alma, de um instante para o outro, como que a crispar-se, e um rubor subiu pelo seu rosto, tingindo-o de um vermelho vivo.

– E a graça da senhora?

Ele perguntou, e ao ouvir a pergunta, Milagres, ligeira, desligou o interfone, ajeitou o penhoar sobre os ombros, fechando-o na parte dianteira de seu corpo, e correu em direção à porta da frente, abrindo sua portinhola a fim  de, com os próprios olhos, certificar-se de que seus ouvidos não lhe tinham pregado uma peça: ter ouvido o nome de seu saudoso e falecido marido da boca daquele homem desconhecido, com quem falara ao interfone, afigurava-se-lhe como algo um tanto inusitado, irreal até, ainda mais porque, mesmo através do interfone, a voz daquele homem soava demasiado semelhante à voz de Antenor.

Olhando pela portinhola, pôde ver de fato, iluminadas por um sol ainda sonolento

(sem galos a cantarem para despertá-lo do sono)

as roseiras, cujos caules, grossos e cheios de espinhos, terminavam em rosas das mais variadas cores

(como uma colcha de retalhos)

Chamou:

– Antenor?

E nada

– Antenor?

nem ninguém apareceu.