Tafetá

Desde menino, sua autorização para chorar já tinha sido cassada.

– Homem não chora.

dizia sua mãe, reprimindo-o em tom grave, sempre que naquela época ele, fazendo bico com a boca, ameaçava cair em lágrimas, qualquer que fosse a razão. Mas há muito ele deixara de ser um menino. Ainda que seu nome de batismo, Maximiliano Pedro Pereira, tenha sido utilizado até o início precoce da idade adulta, e permanecesse em seus documentos, nada mais naquela figura, agora idosa, ali sentada envolta em um penhoar de seda, lembrava Maximiliano Pedro Pedreira: este continuava a existir apenas nos documentos. No dia a dia real, não mais. Em seu lugar, surgiu Tafetá. Dona Tafetá, senhora Tafetá, ou apenas Tafetá, não lhe importava, desde que o passado masculino fosse mantido à distância, guardado, ao abrigo de olhares ansiosos por julgarem e condenarem o que se lhes apresentasse diferente. Importava-lhe apenas o presente e sua atual condição não-masculina, embora também não totalmente feminina. O suficiente, porém, para conferir-lhe um salvo-conduto para chorar o quanto quisesse ou precisasse. E munida deste, Tafetá então chorava.

Ali, onde então a encontramos, no pequeno quarto que, trancado, fedia à solidão por todos os lados, havia uma janela em cuja vidraça podia-se avistar uma paisagem campestre, com campos e colinas em sobretons de verde, encimadas por um céu de um azul redundante. Tafetá estava sentada numa cadeira de balanço, de frente para a tal janela. Fazia demasiado calor dentro do quarto e, para refrescar-se, levantou-se e caminhou até a janela. Ao abri-la, revelou à sua frente um enorme paredão de cimento, num tom de cinza chumbo, pesado, que contrastava fortemente com o azul e os tons de verde do adesivo a imitar a paisagem campestre, que estava colado aos vidros da janela.

Uma vez aberta, além da visão da parede de cimento logo ali, a um palmo, talvez, de distância, a janela também permitia a entrada de diversos fragmentos de conversas dos moradores dos demais conjugados de quarto e sala daquele gigantesco treme-treme: um aglomerado de pequenas quitinetes, onde residiam milhares de almas. Ao odor de sua solidão vieram juntar-se inúmeros outros odores, de tantos outros solitários como ela, todos morando ou de passagem por ali. Após respirar fundo, trazendo para dentro dos pulmões essa miríade de cheiros e fedores, sentiu-se menos solitária. Seu choro cessou e, então, fizeram-se mais evidentes, para seus ouvidos, os sons que chegavam de fora: eram crianças a chorarem alto, e adultos, baixinho. Cães a ladrarem (choravam? riam-se?). 

Do nada, um pardal entrou voando pela janela, indo pousar sobre o espaldar da cadeira de balanço sobre a qual, antes, Tafetá estava sentada. Por alguns instantes, ficou a olhar, arisco, para Tafetá que, de súbito, fechou a janela, deixando ela e o pássaro isolados do mundo lá fora pelos vidros adesivados com a imagem campestre.

Talvez por ter pensado ser verdadeira aquela imagem no vidro da janela, o pardal, num vôo incisivo, arremeteu-se contra ela com toda a força. Enxergara ali, provavelmente, uma rota de fuga da figura de Tafetá, que para a pequena ave bem poderia parecer ameaçadora. Tão forte fora o choque do pardal com o vidro da janela, que este chegou a trincar. O pardal, por sua vez, caiu sobre o piso laminado, a imitar madeira, e, tal qual aquele balão que avistamos ao longe, no formato de um pontinho no céu, e depois nada, também o passarinho: duas convulsõezinhas

(um pontinho de vida)

e depois nada: já morto estava.

Tafetá não se apiedou do pássaro: tanta gente ela havia perdido ao longo de sua vida, mortas ou mesmo desaparecidas. Acabou criando assim um mecanismo emocional de auto-defesa, aprimorado e, enfim, cristalizado, quando da morte violenta de sua mãe, vítima de um latrocínio até hoje sem culpados identificados. A morte, para ela, equiparava-se em ubiquidade aos pardais.

Recolheu a ave com uma pazinha, jogou-a dentro de um saco plástico de supermercado que fazia as vezes de saco de lixo, amarrou-o e arremessou-o janela afora. 

Tafetá trabalhara toda a sua vida em uma guarita, na portaria de um grande edifício residencial, numa área nobre da cidade. Ali, sob o anonimato do vidro fumê, acompanhava a entrada e saída de moradores e visitantes que, embora passassem ao seu lado na guarita, não a viam nem percebiam sua presença ali dentro. Bastava-lhes, aos moradores e visitantes, que os portões do prédio fossem abertos ante sua simples aproximação: sendo a função bem cumprida, em nada lhes importava quem a cumpria. Dentro daquela pequena guarita, claustrofóbica, ninguém a via, mas ela via todo mundo, não apenas por estar do lado oposto do vidro fumê, mas também por meio dos pequenos monitores à sua frente, conectados a câmeras espalhadas por todo o condomínio. Dali Tafetá via sem ser vista.

Demitiram-na no dia em que teve de sair para abrir manualmente o portão para uma moradora. O portão enguiçara e não atendia ao comando de Tafetá de lá de dentro da guarita. A tal moradora, irritada com o defeito e a demora do mecanismo, mas sobretudo assustada e incomodada com a figura de Tafetá, quando esta saíra da guarita a fim de, manualmente, abrir-lhe o portão, foi depois aos gritos pedir ao síndico:

– Demita imediatamente aquela aberração!

De certa forma, felizmente para Tafetá, apenas a parte em que a mulher gritou:

– Isso aqui é um condomínio familiar!

chegou aos seus ouvidos: ingenuamente, entendeu que estava a ser demitida por faltar-lhe o requisito para integrar um ambiente assim, já que não tinha família nenhuma: era sozinha no mundo. 

Passados quase três meses desde esse episódio, tempo de duração de seu seguro-desemprego, Tafetá ainda não havia encontrado nenhuma outra colocação no mercado de trabalho formal. Vivia de pequenos biscates, fazendo faxina, como diarista, em algumas residências durante a semana. Mas o soldo do emprego de carteira assinada na guarita fazia-lhe falta. Morava de aluguel, e este encontrava-se em atraso há pelo menos dois meses. Tafetá estava na iminência de ser despejada.

Um toque na campainha do pequeno conjugado de quarto e sala, e depois ouviu-se um:

– Seu Pedro?

e logo em seguida um novo toque da campainha, desta vez mais demorado.

Tafetá levantou-se da cadeira de balanço, ajeitou o penhoar e foi ver quem batia à porta. Espiou pelo olho mágico e não viu ninguém.

– Seu Pedro?

A voz insistia.

– Você está em casa?

Intrigada, Tafetá abriu a porta e viu que, salvo pelo lixo depositado ali no corredor por algum de seus vizinhos, não havia mais nenhum sinal de vida humana ali fora.

Fechou a porta, tomou uns comprimidos que guardara dentro de um frasco sobre o pequeno aparador, e voltou a sentar-se em sua cadeira de balanço, de onde continuou a fitar a janela. Mas a ao invés da paisagem campestre colada aos seus vidros, via através dela o paredão cinza do lado de fora: a janela estava aberta: provavelmente cedera ao impulso da corrente de ar que invadira o pequeno conjugado quando da abertura da porta.

Pela janela vinha uma luz fraca, como a de um abajur. Era, na verdade, o resquício da iluminação pública que por ali entrava, luz que, lá fora, no pouco que iluminava, apenas confirmava quão em trevas o entorno vivia mergulhado.

A luz atravessava o quarto de Tafetá e ia beijar a mão do Papa João, numa foto dele, bastante desbotada, presa à parede. O Papa, na foto, abençoava uma criança

(uma menina? um menino?)

que segurava a mão de uma senhora

(talvez fosse sua mãe)

ambas numa incontida felicidade, estado de espírito que contrastava com o ar sisudo e solene da família de Tafetá, retratada em uma foto emoldurada, presa à parede um pouco abaixo da foto do Papa, como se deliberadamente colocada ali para também receber as bênçãos do pontíficie. No foto da família: sua mãe, seu padrasto, o pequeno Maximiliano Pedro Pedreira: Tafetá, à época ainda… um menino? uma menina?

(difícil dizer apenas pela imagem da foto) 

Uma lágrima brotou do canto do seu olho direito. Não desceu pelo seio de sua face: ficou ali alojada, como se resistisse a cumprir seu desígnio, o fim de todas as lágrimas: chorar.

Somente quando recebeu o impulso de outra, que vinha em seu encalço, foi que a primeira lágrima conseguiu descer, seguindo caminho até evaporar-se ao lado do direito da boca de Tafetá 

(– Isso aqui é um condomínio familiar!)

que naquele instante estava a emitir seu derradeiro suspiro. Tal qual aquele balão que avistamos ao longe, no formato de um pontinho no céu, e depois nada, também Tafetá: um suspiro

(um pontinho de vida)

e depois nada: apenas um pardalzinho morto.



Os outros também somos nós

Quem de longe observasse aqueles dois homens, sentados sobre o banco da praça da igreja matriz, portando chapéus-coco sobre as cabeças e gesticulando efusivamente, poderia ser levado a crer, vendo à distância, que estavam a discutir e que seria portanto uma questão de mais hora menos hora para entrarem em briga corporal, chegando, assim, às chamadas vias de fato.

Bastaria, contudo, aproximar-se para ver que, além de nada dizerem, os dois homens estavam na verdade distantes de algo mesmo próximo de uma desavença: ambos eram mímicos e ensaiavam uma apresentação que pretendiam fazer logo mais, num cruzamento próximo dali: eram artistas mambembes: viviam disso.

Uma menina, vestida de bailarina, aproximou-se deles, com o olhar intrigado, como o de quem vela um sono alheio e intranquilo. Ficou por alguns instantes a observá-los, e eles, indiferentes, continuaram seu ensaio de mímica.

A menina levantou seu pequeno corpo, apoiando-o sobre as pontas de seus pés e, sob a regência de uma música que tocava apenas em sua imaginação, começou a dançar passos de balé. Os mímicos nem ao menos a notaram, ou, se notaram, não demonstraram, pois continuaram firmemente concentrados em seu ensaio.

Frustrada, a menina fez cessar a música em sua mente e com isso também parou de dançar.  De maneira quase irrefletida, passou então a imitá-los. Ora imitava um, ora outro, e assim conseguiu tirá-los daquela espécie de transe em que estavam metidos, fazendo-os finalmente percebê-la ali diante deles. 

O mímico um, sorrindo, olhou para a menina e cumprimentou-a:

– Olá, garotinha.

Mas em resposta: 

– …

recebeu apenas o silêncio.

Mímico dois então interferiu com um:

– Como vai você, minha pequena?

E novamente:

– …

nada retornou da menina, a não ser um olhar estatelado, como se surpresa, ou assustada, ou ambos, por ver-se diante de mímicos que falavam.

Lembrou-se de sua mãe a adverti-la, pouco antes em sua casa, enquanto punha seu vestido para sair à rua:

– Não vá falar com estranhos, menina.

Algo que sua mãe sempre lhe dizia, ao menor sinal de que a menina fosse sair de casa, mesmo sabendo da inutilidade, ou até crueldade de tal advertência, uma vez que dirigida a alguém que, como a menina, nada podia falar: era muda.

A estes três personagens: mímico um, mímico dois e a menina-bailarina, foi juntar-se uma mulher-placa, daquelas que, de um modo desumano, servem de suporte humano a anúncios publicitários, ficando prostradas pelas esquinas da cidade, sendo, quando muito, notadas em sua publicidade; raramente ou nunca em sua humanidade. Mas ali, aquela mulher-placa, miúda, tão pequena quanto a menina-bailarina, talvez até menor, a depender do ângulo do qual se olhava, havia sido enfim notada, fato que a deixou surpresa, assustada, ou ambos, tão acostumada havia sido à invisibilidade durante toda a sua vida.

Mas a placa que envolvia o corpo da mulher-placa, tapando-a tanto na parte da frente quanto atrás, não tinha anúncio nenhum: estava em branco, cor esta que, involuntariamente, servia ao propósito de mimetizar sua pele, muito alva, e que se não fosse a placa estaria totalmente exposta, pois, debaixo dela, estava nua. Isso, a nudez da mulher-placa, a placa também não anunciava, mas era possível de se notar, tanto que, como já se disse, notaram-na a menina-bailarina e os mímicos um e dois. Este último estalou os dedos de ambas as mãos diante dos olhos dos demais, quebrando o incômodo silêncio que por instantes se fizera entre eles. Quis assim chamar-lhes a atenção, pois queria dizer-lhes algo. Mas ao invés de dizer em palavras, como àquela altura já era sabido que podia fazer, disse-lhes o que pretendia dizer sob a forma de gestos. Mímico um olhou-o de esgueio, questionando-o, também em gestos, sobre a mensagem que mímico um quisera transmitir.

Ao notar, contudo, a incompreensão de mímico um sobre o significado de seus gestos, mímico dois desistiu deles e propôs em alto e bom som:

– Que tal se trabalhássemos juntos?

Ante tal indagação, cada um dos demais, a seu modo, respondeu com uma outra questão:

– Como assim?

Com efeito, essas palavras foram proferidas apenas pela mulher-placa, ainda assim bem baixinho: era bastante tímida e em geral muito calada. A menina-bailarina, por sua vez, indagou com um gesto do seu olhar; ao passo que mímico um, com gestos de suas mãos e braços. Mas tão simultâneas foram todas estas manifestações para dizer:

– Como assim?

que pareceram, todos os três, ter respondido em coro.

Horas mais tarde, numa movimentada esquina da cidade, a mulher-placa, novamente prostrada, já não tinha mais sua placa em branco, nem ela estava mais nua: usava o vestido da menina-bailarina. Sobre a placa, havia uma grande flecha vermelha desenhada a giz, que apontava para a menina-bailarina dançando ali ao lado, completamente nua, exceto pelo par de chapéus-coco, emprestados pelos mímicos, cobrindo-lhe suas vergonhas de cima e de baixo.

Hipnotizados por essa cena, ignorando por completo o anúncio da mulher-placa, que assim mais uma vez via-se invisível, os motoristas que paravam no cruzamento para aguardar o semáforo abrir, não percebiam a aproximação silenciosa dos mímicos um e dois. Estes, à maneira de gatos de tocaia, seguiam silenciosos para as laterais dos carros e, aproveitando-se da distração de alguns motoristas que, mesmo cientes da violência da cidade, mantinham as janelas de seus carros abertas, anunciavam, com as mãos imitando revolveres, gritando em alto e bom som:

– É um assalto!

Há conversas das quais não regressamos

Era alta madrugada e, exceto por uma única janela, todas as demais daquele velho edifício estavam apagadas: os moradores, àquela hora, dormiam sonos intranquilos, em uma quase vigília: avizinhava-se mais uma manhã de segunda-feira.
Sob aquela solitária luz, num tom de sépia, que se avistava na fachada encardida do prédio, lá dentro do apartamento no décimo andar, Eulália, sentada de maneira comedida sobre o sofá de corvim, olhava em silêncio para Doralice, que, sentada de um modo displicente em uma poltrona de tecido puído, do outro lado da sala, esforçava-se para não errar os pontos do seu tricô; vez ou outra, era vencida nesse seu esforço por um sono que lhe pesava sobre as pálpebras, puxando-as para baixo, como o fazem as gotas de orvalho sobre as folhas da relva nas manhãs frias e úmidas de Maio. A separar as duas amigas, além de um enorme e denso
(quase palpável)
silêncio, apenas uma mesinha de centro, sobre a qual repousava um vasinho com margaridas de plástico, algo amareladas pelo tempo. Eulália e Doralice viam-se ao menos uma vez por semana, alternando os encontros ora no apartamento de uma, ora no da outra. Há mais de uma década elas cumpriam à risca essa rotina: era a forma que haviam encontrado de tornar suportável a velhice: compartilhar experiências a respeito de vidas que foram tão distintas. Nos encontros dos últimos anos, em pauta, uma predominância repetitiva de assuntos ligados aos percalços da idade avançada: o abandono dos filhos, as doenças da terceira idade, a saudade dos entes falecidos, dos maridos: ambas eram viúvas.
Havia um momento, nessas oportunidades, a partir do qual as duas, quase simultaneamente, ficavam em silêncio e assim permaneciam até uma ou a outra, dependendo do lar de qual delas servia de recinto para o encontro, decidir-se por ir embora, o que poderia ocorrer dali a minutos ou horas: para isso não havia regra. Adentrar esse silêncio era a forma tácita, e muito própria delas, de darem por encerradas as conversas daquele encontro, forma esta que fora aperfeiçoada de uma maneira tal, que assim vinham agindo, quase inconscientemente, há muitos encontros. Logo, uma vez instalado esse silêncio, as únicas palavras que as amigas
(dali a minutos ou horas)
trocariam naquele dado encontro seriam palavras corteses de despedida, ditas sob o foco de olhares tristes, do tipo daqueles que lançamos a um amigo que parte, sendo grandes a chances de que não mais
(talvez nunca mais)
possamos reencontrá-lo na mesma pessoa da qual nos despedimos, ou que não reencontremos de fato.
Tal não ocorreria novamente nessa madrugada em que as vemos juntas. Após algumas horas ali quietas, eis que Doralice, deixando de lado as agulhas de tricô e tendo um semblante cansado, haja vista o avançado da hora, anunciou seu desejo de ir-se embora:
– Acho que já vou chegando, Lália.
Era como Doralice chamava Eulália.
– É cedo, Dorinha.
Assim Eulália chamava Doralice.
– Vou passar mais um café para você. Quer mais uns biscoitinhos de nata?
Feita a oferta à Doralice, Eulália então ignorou um quase inaudível:
– Não, obrigada.
da amiga, e saiu caminhando, um pouco atrapalhada com suas pantufas, no sentido da cozinha. Com tal gesto, ela havia quebrado o protocolo de comportamento que, para aqueles encontros com Doralice, firmara-se ao longo dos anos: pela primeira vez, o silêncio não havia sido a deixa para a despedida, fato que deixou Doralice um tanto perdida, transtornada até.
(– O que essa louca ainda quer comigo? Preciso ir embora. Já está quase amanhecendo o dia.)
Pouco depois, já na cozinha, Eulália depositava água fervente dentro de um coador de pano, preenchido com umas três colheres de sopa de café, de onde subia um vapor impregnado com o inebriante aroma dessa bebida quando feita na hora. Eulália, ali, relembrava seus tempos de menina, no interior, quando acordava junto com sua avó, ainda bem antes do alvorecer, e ficava a vê-la preparar o café, em um coador similar àquele que então utilizava, enquanto galos cantavam lá fora, anunciando que dali a logo mais um novo dia nasceria.
(embora nenhum galo estivesse a anunciá-lo, mais um dia estava de fato surgindo, como denunciava a luz esmaecida do sol nascente a iluminar os vidros foscos do vitrô da cozinha)
Eulália sempre teve uma grande admiração por sua avó, pela determinação que esta, ao longo da vida, demonstrara para criar os três filhos
(dentre os quais, o pai de Eulália)
cuidar de seu avô, administrar com competência e austeridade um orçamento enxuto, sempre colocando suas necessidades pessoais em último plano, o que, não raras vezes, fazia com que estas fossem abortadas ainda em seus primeiros instantes de gestação na mente pouco fértil de amor próprio da sua avó.
– O cobertor é curto, Lália.
(a avó, a justificar-se, cabisbaixa)
Perdia vigor, a admiração de Eulália por sua avó, quando esta era vista sob a mira exclusiva deste foco. Revoltava-a ver a mágoa profunda que essa sujeição às prioridades ou mesmo aos caprichos dos outros membros da família lhe causava. Era como se sua avó vivesse presa a um casamento de conveniência, conveniente para todos, menos para ela.
– A vida da gente que é mulher é assim mesmo, minha filha.
(resignava-se a avó, desviando o olhar)
Desde muito cedo, vendo tudo isso, Eulália decidira-se por agir diferente com relação à sua própria vida. Tornara-se para ela uma questão de honra dar esse salto geracional em relação à sua avó, já que sua mãe, mesmo se o quisesse, nem sequer teria tido a chance de tentá-lo, pois faleceu ainda adolescente, logo após ter dado à luz a então pequena Eulália.
Mas a vida, sempre ela, como sói ocorrer com todos, tinha outros planos para Eulália, bem diferentes daqueles que esta planejara e, dentro dos estreitos limites de seu mundo, até sonhara. No final, aquela menina que estufava o peito para falar de seus anseios feministas e sua ideologia libertária, acabou reproduzindo em sua vida adulta a mesma submissão aos interesses do marido e dos filhos
(todos homens)
que tanto condenara em sua avó paterna.
(– A vida da gente que é mulher é assim mesmo.)
Diferentemente de Eulália, Doralice conseguira trazer para o plano real e aplicar na prática cotidiana os anseios feministas e a ideologia libertária que, no caso de sua amiga, não conseguiam fazer a migração do plano teórico para o prático, eis que este, diante do extenuante acúmulo de dificuldades da vida, acabou tornando-se árido, completamente inóspito a qualquer elemento que não dissesse respeito à mera, estrita e mais básica sobrevivência. Eulália, velha, era a imagem de um galho seco, esturricado.
Já Doralice, não. Ao longo de sua vida, desta fez o que bem entendeu, vivendo-a de modo pleno e intenso. Foi generosa com todos, mais ainda com si mesma. Era uma hedonista. Mesmo idosa, mantinha um porte altivo, olímpico, destacado pela elegância heráldica com que sempre se apresentava. Por conta desses atributos, Eulália nutria por ela uma inveja demasiadamente tóxica.
Mesmo a força dessa personalidade não foi, todavia, capaz de livrar Doralice de cair na mesma vala comum do destino solitário em que também jazia Eulália. Nesse aspecto, eram iguais. Verdade é que, salvo pela companhia de uma para a outra, e vice-versa, sofriam de uma enorme solidão, do tipo daquela que oposicionistas argentinos, feitos prisioneiros pelo regime militar, experimentaram ao serem libertos em meio à multidão que comemorava a vitória da Argentina na Copa do Mundo de 78. Assim como ninguém ali os ouviu gritar por socorro, ninguém dá ouvidos às duas amigas, nem tampouco as vê: tornaram-se invisíveis.
Eulália a oferecer o café para Doralice:
– Eis aqui seu café. Aproveita que está quentinho.
Que com a costumeira gentileza, agradeceu-lhe:
– Muito obrigada, Lália.
(– Velha inútil. Fazendo-me esperar esse tempo todo!)
– De nada, Dorinha. Foi um prazer.
(– Seria de fato um prazer se eu pudesse…
– Pegue mais uns biscoitinhos.
… nunca mais ouvir sua voz.)
Tendo Doralice ingerido o café
(rejeitou cordialmente os biscoitinhos)
fez-se novamente um enorme e denso
(quase palpável)
silêncio entre elas, um silêncio, contudo, diverso daquele que por anos serviu para prenunciar o momento da partida ao final dos encontros semanais, pois, desta vez, ele não seria quebrado
(dali a minutos ou horas)
por palavras corteses de despedida.

Sem dúvida, talvez

Há semanas não se levantava da cama: era a primeira vez em dias que se dirigia à sala: nesse período de reclusão, limitara seus movimentos ao seu quarto, ao banheiro e à cozinha: os cômodos do apartamento que lhe ofereciam o essencial para manter-se viva: sobreviver.
Debruçada sobre o parapeito da janela, Gilda avistava o sol a nascer ao longe, com seus fachos de luz a brotarem por entre os vãos dos prédios, erguendo-se, tépidos, como os braços de um bebê polvo que pede colo.
Sentia-se aliviada, pois chegara a pensar que nunca mais veria o sol, que nunca mais veria o dia.
(que nunca mais)
Lá fora, as ruas paulistanas rapidamente eram tomadas pela multidão, cujos indivíduos iam para lá e para cá, com olhares vazios e andar apressado, como que pastoreados feito ovelhas pelos cães nervosos das contas a pagar. Era em geral nesse horário, quando a maioria das pessoas saía para o trabalho, que Gilda costumava chegar em casa, vinda de seu trabalho. Ao entrar em seu apartamento, despia-se, tirava a maquiagem, pendurava a peruca no mancebo atrás da porta do banheiro, tomava um banho e ia para sua cama, onde divertia-se a brincar um bocadinho com Mumu, sua gatinha. Depois, vencida pelo cansaço, colocava a gata para dormir em um cantinho do quarto, sobre uma almofada, envolvia sua cama com o dossel e, por fim, adormecia.
(– Acho que ela morreu.)
A luz do sol que entrava pela janela da sala contrastava com o acinzentado de seus olhos. Com pesar, lembrava-se de, naquela noite, duas semanas atrás, ter gritado muito alto, um grito que, apesar de alto, apesar de transportar a mensagem clara de uma dor lancinante, apesar de ter sido gritado uma
– Socor
duas
– roooooo!
três vezes
(– Acho que ela morreu.)
em uma rua cheia de gente passando, apesar de tudo isso, o grito de Gilda, naquela noite, não foi ouvido
(fingiram não ouvir?)
dele não se soube: acabou abafado, quiçá mesmo silenciado pela indiferença da metrópole que, com alguma contradição, quanto mais seres humanos comporta, mais desumana torna-se.
Logo após, ouviu-se um longo acorde de violoncelo e então ela perdeu a consciência, ficando seu corpo caído de um lado; sua longa peruca loira jogada dois metros adiante, com mechas de um vermelho vivo
(– Ela está sangrando!)
de sangue.
(– Vamos embora daqui!)
Acordou com os pingos de uma chuva gelada cravejando, como estilhaços de caco de vidro, seu corpo seminu e seu rosto, ambos bastante feridos.
Um hiato na memória a partir daí … … … (– Chamem uma ambulância. É uma emergência.) … … … … … …  (– Dói aqui?) … … … … … (– Amanhã ele deve ter alta.) … … … … …
(– Trouxe seu café da manhã, João.)
Passaram-se dias em que ela mal conseguiu abrir os olhos, tão inchado estava seu rosto
– Vem Mumu
a ponto de mesmo Mumu não a reconhecer quando Gilda, após ter alta do pronto-socorro, retornou a seu apartamento.
Por mais acostumada que Gilda estivesse a ser vista com estranhamento, olhada com desconfiança, observada ao longe, por olhos temerosos, como se fosse uma fera enjaulada, a ter dedos indicadores apontados em sua direção, seguidos de risos de escárnio, o fato de não ser reconhecida por Mumu pegou-a de guarda baixa, o que acabou por tornar mais pesado o sentimento de rejeição que, por toda a sua vida
(– Larga essa boneca, João!)
Gilda havia enfrentado, e este sentimento, por sua vez, naquele instante envolveu-a e, tal qual uma rocha formada pela lava vulcânica ao esfriar, fez dela, por semanas, um fóssil de seu próprio ser, até que, nessa manhã, antes do sol raiar, Mumu, com suas patinhas almofadadas, driblou o dossel que envolvia a cama, e foi brincar com uma tirinha de gaze que ainda cobria o último ferimento no rosto de Gilda, que aos poucos foi assim d e s (um bocejo) p e r t a n d o.
Gilda abriu seus olhos, olhou para dentro dos olhos de Mumu e viu ali refletido seu rosto, já quase são. Foi quando, do nada, sentiu uma saudade invadi-la, do tipo daquela que nos toma quando olhamos para nossas fotos de infância, em que a criança que fomos aparece ao lado de nossos pais, avós. Riu-se aliviada, um riso nervoso. Daí então desatou a chorar, soltando gritos guturais que acabaram por assustar Mumu: a gatinha saiu em disparada para fora do quarto, desvencilhando-se do dossel, que ali permanecia mantendo Gilda ao abrigo do mundo exterior e de suas hostilidades. Chorou a plenos pulmões, como quando nascera, rompendo o útero de sua mãe.
(– É um menino?)
Novamente em meio a lágrimas, era chegada a hora de renascer.
(– Sem dúvida, talvez.)
Vendo ali, diante de si, do lado de fora da janela do apartamento, toda a vibração de uma grande cidade, os olhos de Gilda enfim voltaram a brilhar: brilhavam como sóis.

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Faz-me falta tua ausência

Sentados lado a lado diante da televisão, acompanham, com olhos entorpecidos de cansaço e sono, as cenas da novela. As mentes de ambos trazem pensamentos dispersos, que ora pousam nas imagens projetadas no ecrã, ora nas lembranças do passado. Ali, naquela pequena casa, residiam sozinhos desde a partida do casal de filhos: primeiro, o filho primogênito, que um dia, há muito anos, desapareceu: dele nunca mais se teve notícias; depois, a filha mais nova, que, mancomunada com um sujeito nada confiável, um dia foi embora da casa dos pais sem deixar recado – nem mesmo deles se despediu. Até onde se sabe, vivia na mesma cidade, se bem que suas poucas ligações e suas ainda mais, e cada vez mais, raras visitas aos pais fizessem parecer que ela residia em alguma terra muito distante.

– Quando você vem nos visitar?

Perguntou-lhe Celina na última vez que Maria Clara, a filha, ligou para a casa dos pais. No que Maria Clara respondeu que dali a duas semanas chegaria, o que, de fato, não se concretizararia nem dali a duas semanas nem nunca mais: as duas semanas tornaram-se três, quatro, depois meses, e nada de Maria Clara aparecer. Nesse período, nem tampouco se preocupou em justificar a sua prolongada ausência. Antes desse sumiço, quando de suas raras ligações, limitava-se a perguntar à Celina, sua mãe, num tom seco:

– Está tudo bem com você e o pai?

E ao ouvir a resposta de Celina, que invariavelmente após o

– Sim.

enveredava por uma cantilena de reclamações sobre a sua saúde e a do marido, que em tudo contradiziam a afirmação anterior de Celina de que tudo ia bem, Maria Clara, sempre impaciente, encerrava a conversa com um displicente:

– Cuidem-se. Amo vocês.

e desligava antes de Celina

– Também te amamos, minha fi

terminar sua despedida.

No porta retratos, sobre a mesa de canto ao lado do sofá, ao alcance das mãos de Celina, a foto da família: ela, Antero – seu marido –, o filho primogênito e Maria Clara. Estão todos juntos ao redor do bolo de aniversário do primeiro ano de vida de Célio, o primogênito. Lá se iam pelo menos uns 30 anos desde o dia em que aquela foto havia sido tirada, na festa de aniversário de Célio, uma celebração feita de modo muito simples, pois as condições da família não permitiam, menos ainda na época, grandes dispêndios para além do essencialmente ligado à sobrevivência.

– Fazemos ao menos um bolo para a data não passar em branco.

Celina, jovem e vistosa na foto, sorri em direção à câmera. Há mais vida no olhar dela, retratada na foto, do que no olhar da Celina de carne e osso de hoje: este abatido, lasso, desesperançado.

Ao seu lado no sofá, Antero cochila, deixando escorrer uma baba branca por um dos cantos da boca. Ele em nada lembra o homem com o qual Celina, há trinta e um anos, havia se casado: um ano antes do nascimento de Célio. À época, quando Celina e Antero eram bastante jovens, ele a conquistara com sua voz pausada, que fazia contraste com a firme determinação dele para vencer na vida, outro predicado que, então, também lhe serviu para angariar a confiança e, sobretudo, o amor de Celina. No entanto, com o passar dos anos, a voz pausada de Antero foi aos poucos silenciando: as muitas dificuldades pelas quais ele e Celina, juntos, passaram pela vida, para poder criar Célio e Maria Clara, com aquilo que julgavam ser o mínimo de dignidade para seus filhos, agiram em Antero como, sobre o lustro, age a poeira que vai se depositando por cima de uma mesa de jantar, ao redor da qual, outrora, a família sentava-se, todos reunidos, para fazer suas refeições.

Uma lufada de vento entra pela janela e faz dançar a cortina de chintz, ao mesmo tempo em que agita as plumas de avestruz que, dentro de um vaso de latão, decoram um dos cantos da sala. Era com aquelas plumas que Célio costumava brincar: colocava-as às costas, por dentro do calção, de modo a imitarem a cauda do Garibaldo, no que era logo repreendido por Antero, com um tapa no traseiro seguido de um:

– Vira homem!

dito em voz grave, e não na sua habitual voz pausada.

Chorando, Célio então corria para o seu quarto, que dividia com Maria Clara, para onde Celina, em seguida, ia em seu socorro, secar suas lágrimas e oferecer-lhe consolo com sua voz calma e suas mãos sedosas

– Beba essa água com açúcar, filho. Vai te ajudar a se acalmar.

que, para ele, assemelhavam-se às mãos do padre Olavo, quando estas, sediosas, desciam em direção às partes íntimas de Célio, a fim de acariciá-las, o que o menino consentia, uma vez que, na sua idade, então 10 anos, a resultante entre as forças da culpa e do desejo favoreciam este último com folga. Os dois encontravam-se com regularidade quase diária, até que um dia acabaram pegos em flagrante atrás da sacristia da igreja de São Pedro, por Antero, que, suspeitando dos sumiços diários de Célio, sempre no mesmo horário: no final da tarde, resolvera investigar. Desde esse episódio, nunca mais nem padre Olavo nem Célio foram vistos na cidade.

A noite avançava e, em seu progresso, seguia encontrando Celina e Antero ali, sentados no sofá. Antero dorme; Celina continua acompanhando, com olhos ainda mais entorpecidos de cansaço e sono, as cenas projetadas na televisão.

(não sabe mais dizer se são cenas de uma novela)

Celina olha para Antero e, vendo-o dormir, aos poucos acaba também caindo no sono. E assim
(adormecidos?)
seguem madrugada adentro, numa noite que para eles não teve
… fim.

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