Desde menino, sua autorização para chorar já tinha sido cassada.
– Homem não chora.
dizia sua mãe, reprimindo-o em tom grave, sempre que naquela época ele, fazendo bico com a boca, ameaçava cair em lágrimas, qualquer que fosse a razão. Mas há muito ele deixara de ser um menino. Ainda que seu nome de batismo, Maximiliano Pedro Pereira, tenha sido utilizado até o início precoce da idade adulta, e permanecesse em seus documentos, nada mais naquela figura, agora idosa, ali sentada envolta em um penhoar de seda, lembrava Maximiliano Pedro Pedreira: este continuava a existir apenas nos documentos. No dia a dia real, não mais. Em seu lugar, surgiu Tafetá. Dona Tafetá, senhora Tafetá, ou apenas Tafetá, não lhe importava, desde que o passado masculino fosse mantido à distância, guardado, ao abrigo de olhares ansiosos por julgarem e condenarem o que se lhes apresentasse diferente. Importava-lhe apenas o presente e sua atual condição não-masculina, embora também não totalmente feminina. O suficiente, porém, para conferir-lhe um salvo-conduto para chorar o quanto quisesse ou precisasse. E munida deste, Tafetá então chorava.
Ali, onde então a encontramos, no pequeno quarto que, trancado, fedia à solidão por todos os lados, havia uma janela em cuja vidraça podia-se avistar uma paisagem campestre, com campos e colinas em sobretons de verde, encimadas por um céu de um azul redundante. Tafetá estava sentada numa cadeira de balanço, de frente para a tal janela. Fazia demasiado calor dentro do quarto e, para refrescar-se, levantou-se e caminhou até a janela. Ao abri-la, revelou à sua frente um enorme paredão de cimento, num tom de cinza chumbo, pesado, que contrastava fortemente com o azul e os tons de verde do adesivo a imitar a paisagem campestre, que estava colado aos vidros da janela.
Uma vez aberta, além da visão da parede de cimento logo ali, a um palmo, talvez, de distância, a janela também permitia a entrada de diversos fragmentos de conversas dos moradores dos demais conjugados de quarto e sala daquele gigantesco treme-treme: um aglomerado de pequenas quitinetes, onde residiam milhares de almas. Ao odor de sua solidão vieram juntar-se inúmeros outros odores, de tantos outros solitários como ela, todos morando ou de passagem por ali. Após respirar fundo, trazendo para dentro dos pulmões essa miríade de cheiros e fedores, sentiu-se menos solitária. Seu choro cessou e, então, fizeram-se mais evidentes, para seus ouvidos, os sons que chegavam de fora: eram crianças a chorarem alto, e adultos, baixinho. Cães a ladrarem (choravam? riam-se?).
Do nada, um pardal entrou voando pela janela, indo pousar sobre o espaldar da cadeira de balanço sobre a qual, antes, Tafetá estava sentada. Por alguns instantes, ficou a olhar, arisco, para Tafetá que, de súbito, fechou a janela, deixando ela e o pássaro isolados do mundo lá fora pelos vidros adesivados com a imagem campestre.
Talvez por ter pensado ser verdadeira aquela imagem no vidro da janela, o pardal, num vôo incisivo, arremeteu-se contra ela com toda a força. Enxergara ali, provavelmente, uma rota de fuga da figura de Tafetá, que para a pequena ave bem poderia parecer ameaçadora. Tão forte fora o choque do pardal com o vidro da janela, que este chegou a trincar. O pardal, por sua vez, caiu sobre o piso laminado, a imitar madeira, e, tal qual aquele balão que avistamos ao longe, no formato de um pontinho no céu, e depois nada, também o passarinho: duas convulsõezinhas
(um pontinho de vida)
e depois nada: já morto estava.
Tafetá não se apiedou do pássaro: tanta gente ela havia perdido ao longo de sua vida, mortas ou mesmo desaparecidas. Acabou criando assim um mecanismo emocional de auto-defesa, aprimorado e, enfim, cristalizado, quando da morte violenta de sua mãe, vítima de um latrocínio até hoje sem culpados identificados. A morte, para ela, equiparava-se em ubiquidade aos pardais.
Recolheu a ave com uma pazinha, jogou-a dentro de um saco plástico de supermercado que fazia as vezes de saco de lixo, amarrou-o e arremessou-o janela afora.
Tafetá trabalhara toda a sua vida em uma guarita, na portaria de um grande edifício residencial, numa área nobre da cidade. Ali, sob o anonimato do vidro fumê, acompanhava a entrada e saída de moradores e visitantes que, embora passassem ao seu lado na guarita, não a viam nem percebiam sua presença ali dentro. Bastava-lhes, aos moradores e visitantes, que os portões do prédio fossem abertos ante sua simples aproximação: sendo a função bem cumprida, em nada lhes importava quem a cumpria. Dentro daquela pequena guarita, claustrofóbica, ninguém a via, mas ela via todo mundo, não apenas por estar do lado oposto do vidro fumê, mas também por meio dos pequenos monitores à sua frente, conectados a câmeras espalhadas por todo o condomínio. Dali Tafetá via sem ser vista.
Demitiram-na no dia em que teve de sair para abrir manualmente o portão para uma moradora. O portão enguiçara e não atendia ao comando de Tafetá de lá de dentro da guarita. A tal moradora, irritada com o defeito e a demora do mecanismo, mas sobretudo assustada e incomodada com a figura de Tafetá, quando esta saíra da guarita a fim de, manualmente, abrir-lhe o portão, foi depois aos gritos pedir ao síndico:
– Demita imediatamente aquela aberração!
De certa forma, felizmente para Tafetá, apenas a parte em que a mulher gritou:
– Isso aqui é um condomínio familiar!
chegou aos seus ouvidos: ingenuamente, entendeu que estava a ser demitida por faltar-lhe o requisito para integrar um ambiente assim, já que não tinha família nenhuma: era sozinha no mundo.
Passados quase três meses desde esse episódio, tempo de duração de seu seguro-desemprego, Tafetá ainda não havia encontrado nenhuma outra colocação no mercado de trabalho formal. Vivia de pequenos biscates, fazendo faxina, como diarista, em algumas residências durante a semana. Mas o soldo do emprego de carteira assinada na guarita fazia-lhe falta. Morava de aluguel, e este encontrava-se em atraso há pelo menos dois meses. Tafetá estava na iminência de ser despejada.
Um toque na campainha do pequeno conjugado de quarto e sala, e depois ouviu-se um:
– Seu Pedro?
e logo em seguida um novo toque da campainha, desta vez mais demorado.
Tafetá levantou-se da cadeira de balanço, ajeitou o penhoar e foi ver quem batia à porta. Espiou pelo olho mágico e não viu ninguém.
– Seu Pedro?
A voz insistia.
– Você está em casa?
Intrigada, Tafetá abriu a porta e viu que, salvo pelo lixo depositado ali no corredor por algum de seus vizinhos, não havia mais nenhum sinal de vida humana ali fora.
Fechou a porta, tomou uns comprimidos que guardara dentro de um frasco sobre o pequeno aparador, e voltou a sentar-se em sua cadeira de balanço, de onde continuou a fitar a janela. Mas a ao invés da paisagem campestre colada aos seus vidros, via através dela o paredão cinza do lado de fora: a janela estava aberta: provavelmente cedera ao impulso da corrente de ar que invadira o pequeno conjugado quando da abertura da porta.
Pela janela vinha uma luz fraca, como a de um abajur. Era, na verdade, o resquício da iluminação pública que por ali entrava, luz que, lá fora, no pouco que iluminava, apenas confirmava quão em trevas o entorno vivia mergulhado.
A luz atravessava o quarto de Tafetá e ia beijar a mão do Papa João, numa foto dele, bastante desbotada, presa à parede. O Papa, na foto, abençoava uma criança
(uma menina? um menino?)
que segurava a mão de uma senhora
(talvez fosse sua mãe)
ambas numa incontida felicidade, estado de espírito que contrastava com o ar sisudo e solene da família de Tafetá, retratada em uma foto emoldurada, presa à parede um pouco abaixo da foto do Papa, como se deliberadamente colocada ali para também receber as bênçãos do pontíficie. No foto da família: sua mãe, seu padrasto, o pequeno Maximiliano Pedro Pedreira: Tafetá, à época ainda… um menino? uma menina?
(difícil dizer apenas pela imagem da foto)
Uma lágrima brotou do canto do seu olho direito. Não desceu pelo seio de sua face: ficou ali alojada, como se resistisse a cumprir seu desígnio, o fim de todas as lágrimas: chorar.
Somente quando recebeu o impulso de outra, que vinha em seu encalço, foi que a primeira lágrima conseguiu descer, seguindo caminho até evaporar-se ao lado do direito da boca de Tafetá
(– Isso aqui é um condomínio familiar!)
que naquele instante estava a emitir seu derradeiro suspiro. Tal qual aquele balão que avistamos ao longe, no formato de um pontinho no céu, e depois nada, também Tafetá: um suspiro
(um pontinho de vida)
e depois nada: apenas um pardalzinho morto.