Sua primeira tarefa do dia era varrer a calçada de tijolinhos que tinha em frente de sua casa. Em dias sem chuva, quando o sol acabara de despontar no horizonte, com o ar ainda trazendo o frescor que ganhara na noite anterior, Rita ia para a frente de sua casa, munida de uma vassoura, e punha-se a varrer a poeira sem fim que aqueles tijolinhos da calçada teimavam acumular. Além da poeira, sempre havia folhas, bitucas de cigarro e outras coisas que o povo jogava ali quando passava ou então que era trazido para a frente da casa dela pelo vento.
Mas Rita não cumpria essa rotina porque tinha alguma mania de limpeza ou mesmo uma simples preocupação com a aparência externa da casa: sua intenção ao ir tão cedo para aquela calçada era espionar o movimento das casas vizinhas logo pela manhã: ver se, dentre aqueles que saiam ou chegavam pela vizinhança, havia alguém que causasse estranheza, levantando suspeita de algum caso extraconjugal: possivelmente um amante ou uma amante. Isso ou qualquer outra fofoca digna desse nome.
Rita conhecia bem toda a vizinhança, sabia de cor quem era casado com quem, se tinham ou não filhos e quantos, quem eram os filhos, se namoravam ou não. Trazia em sua cabeça um verdadeiro dossiê sobre seus vizinhos. Aposentada, viúva e morando sozinha, esse era um momento muito importante, pois era nele que Rita recolhia material para ter assunto pelo resto do dia, que podia ser mais movimentado ou mais tedioso e parado, a depender do que Rita conseguia apurar ao varrer sua calçada, com um olho na vassoura e outro na vizinhança. Para ela, um dia bom era aquele em que ela conseguia apurar uma fofoca grande ou várias pequenas. Nem todo dia era assim. Naquela cidade pequena, embora falar da vida alheia fosse um hábito comum, a rotina pacata raramente trazia algo que pudesse servir de matéria prima a essas conversas.
Dia desses, logo cedinho como de hábito, Rita varria sua calçada quando o olho que ficava rondando a vizinhança, tal como um farol, observou o movimento de um homem estranho, aparentando uns cinquenta anos, que ela nunca vira antes, saindo da casa de Dona Jurema, que ficava logo do outro lado da rua. Assim como Rita, Jurema também era uma viúva e morava sozinha. Diferentemente de Rita, porém, Jurema nunca tinha abandonado o luto: vestia-se toda de preto da cabeça aos pés desde o falecimento de seu marido, há quase quinze anos.
Como quem não quer nada, Rita foi ter com o homem – precisava apurar melhor o que acabara de ver, pois quanto mais concretude tinha uma fofoca, melhor ela ficava. Fofocas com base apenas em impressões não rendiam muita conversa.
O homem mal acabara de tomar seu rumo pela calçada, logo após deixar a casa de Dona Jurema, quando foi abordado por Rita, que sem mais delongas lhe perguntou:
— O senhor é parente de Dona Jurema?
Se o homem já caminhava apreensivo, ter ficado repentinamente sob o olhar inquisitório de Rita e receber dela aquela pergunta tão inusitada, deixou-o ainda mais assustado. Só restou ao homem responder:
— Estava cuidando de um entupimento na pia da cozinha dela.
Resposta que, aos ouvidos experientes de Rita, soou totalmente falsa e nada convincente. Então ela insistiu:
— Mas a essa hora?
Sem disfarçar a impaciência, o homem não respondeu – simplesmente virou as costas e saiu caminhando numa quase corrida, a fim de fugir de Rita e de suas perguntas. Mesmo sem dizer a verdade, fosse qual fosse, com esse comportamento o homem havia dado a Rita material suficiente para uma boa fofoca. Na cabeça dela, Jurema não havia aguentado segurar mais o luto e se entregara à luxúria levando para casa um amante, justamente o homem que, sorrateiramente, havia saído pelo portão há pouco e que dissera a Rita que estava cuidando do conserto de um entupimento de pia.
Ao retornar para sua casa, Rita correu para o telefone e começou a ligar para as vizinhas a fim de comentar o que acabara de presenciar. Passou a manhã toda a fazer ligações. Ligou para Dona Helena, Dona Fátima, as Marias – a mulher do médico e, também, a outra, mulher do dentista –, Dona Teresa, Dona Ermengarda, Dona Marta, entre outras. Para todas elas, narrou a mesma história, recebendo, do outro lado da linha, expressões de espanto e incredulidade. Naquela cidade, Jurema era tida como mulher correta, direita. Ninguém ali podia conceber que ela pudesse ter um amante, ainda mais sem ter tido abandonado o luto.
Atendendo a pedidos para melhor apurar a fofoca, Rita foi visitar Jurema na tarde daquele dia. Fritou uns bolinhos de chuva e, levando-os em uma tigela coberta com um guardanapo branco, chegou a casa de Jurema e chamou:
— Dona Jurema.
A casa de Jurema era uma típica casa de viúva: com um jardim mal cuidado na frente, sem muita decoração e com a tinta da fachada já bastante desgastada.
Na segunda vez que Rita chamou:
— Jurema.
Dona Jurema veio atender, toda vestida de preto, com seus cabelos compridos e brancos, soltos, conferindo-lhe a aparência de uma feiticeira de contos de fada.
Ao ver que Rita trazia os bolinhos de chuva que tanto gostava, Jurema convidou-a para entrar e tomar um café:
— Ô, Dona Rita. Quanto tempo. Entre, vamos tomar um café.
Faltou dizer:
— E por o papo em dia.
Mas essa mensagem era desnecessária: estava sempre implícita em qualquer encontro que contasse com a presença de Rita.
Enquanto Jurema passava um café novo, bem quentinho, Rita colocou o cesto de bolinhos de chuva sobre uma mesa forrada com uma toalha de fuxicos. Sentou-se em uma das cadeiras de madeira que estavam ao redor da mesa e ficou a observar Jurema preparar o café. Quando Jurema terminou o preparo e veio servir o café a Rita, logo ouviu desta:
— Ô, Dona Jurema, fiquei preocupada hoje de manhã.
Intrigada, Jurema quis saber o porquê:
— O que aconteceu, Rita?
No que Rita respondeu, visivelmente excitada pela adrenalina daquele momento:
— Logo pela manhã, enquanto eu varria a calçada em frente de casa, vi um homem estranho saindo daqui de seu portão.
E, caprichando na atuação, continuou:
— Nunca o tinha visto aqui na cidade e, por isso, fiquei preocupada com a senhora.
Falseando a impressão que tivera a respeito daquele encontro com o homem pela manhã, completou:
— Podia ser um assaltante, sei lá. Deus me livre!
Jurema ouviu o relato de Rita e, sabendo da fama de fofoqueira da mulher, não deu muita trela. Limitou-se a responder:
— Vixi Maria, Rita. Não sei de homem nenhum. Tem certeza que ele estava aqui?
No que Rita respondeu:
— Absoluta.
Reforçando com um aceno positivo da cabeça.
E então Jurema concluiu:
— Deve ter sido sua imaginação. Como você sabe, desde que João faleceu, eu não larguei o luto. Jamais receberia outro homem em casa.
E então reforçou:
— Isso seria uma afronta à memória de meu primeiro, grande e único amor.
Percebendo que Jurema não ia ceder, Rita foi entretendo ela com outros assuntos até que, num momento de distração de Jurema, Rita foi até o quarto dela e viu, jogada sobre a cama toda desarrumada, uma cueca samba canção. Diante daquilo, Rita deu-se por satisfeita: já tinha material mais do que suficiente, em sua cabeça, para alimentar a fofoca que pretendia levar ao conhecimento da cidade toda.
A fofoca depois ganhou proporção tão grande que, ao final daquele dia, chegou ao conhecimento de Jurema, que, ao saber do que Rita espalhava a seu respeito pela cidade, foi a casa dela tomar satisfações.
Ao chegar a casa de Rita, bateu palmas e chamou:
— Dona Rita!
Evitando dizer simplesmente Rita, pois queria deixar clara sua irritação.
Depois de chamar maus umas duas vezes, Rita veio finalmente atender ao chamado. Abriu a porta de casa e, de camisola, foi até o portão receber Jurema.
— A que devo essa honra?
Perguntou Rita, no que Jurema de pronto respondeu sacando um revólver de dentro do sutiã e desferindo um tiro à queima roupa bem no meio da testa flácida de Rita, que então caiu para trás tendo metade de seus miolos espalhados para fora da cabeça. No silêncio daquela tarde quente e modorrenta, o som do tiro acabou sendo ouvido pela cidade toda. Como ninguém ali nunca ouvira um barulho como aquele, julgaram ser tudo menos um tiro. Ninguém se importou.
Jurema colocou o revólver de volta no sutiã, por entre os peitos, e tomou o rumo de sua casa, deixando o corpo de Rita jogado ali, sem vida, com a cabeça toda explodida pelo tiro que acabara de levar.
No dia seguinte, Dona Teresa, uma das vizinhas para a qual Rita contara a respeito do misterioso homem que havia visto deixando a casa de Jurema, passou pela frente da casa de Rita e, ao ver seu corpo ali jogado, com a cabeça estraçalhada, soltou um grito de pavor, grito que, de tão alto, foi ouvido pela cidade toda. Poucos segundos depois, uma multidão a consolava enquanto, com espanto e terror, viam o corpo morto de Rita jogado na frente da casa.
Não demorou a surgirem boatos de que Rita pudesse ter sido morta por aquele homem que ela vira sair da casa de Jurema. Afinal, que homem era aquele? Perguntavam-se sem resposta.
A fonte mais confiável de esclarecimento parecia ser Jurema, e foi para a casa dela que a multidão seguiu logo depois que a ambulância recolheu o corpo de Rita. Bastava cruzar a rua.
Lá chegando, Dona Helena, a mulher que assumira a liderança do grupo, chamou:
— Dona Jurema.
E, não obtendo resposta, chamou de novo:
— Dona Jurema.
E mais uma vez, agora mais alto:
— Dona Jurema!
Mas Jurema não veio atender. De fato, não estava ali. Tinha ido ao mercado comprar mantimentos para a semana. Ao voltar, deparou-se com a multidão ainda aglomerada em frente a sua casa.
Dona Helena, nem nem esperou Jurema chegar. Foi até ela para oferecer ajuda com as sacolas do mercado. Enquanto caminhavam em direção à multidão, perguntou:
— Está sabendo que Dona Rita foi assassinada a sangue frio na frente da casa dela?
Fingindo nada saber a respeito, Jurema respondeu:
— Não pode ser! Jura?
E continuou:
— Vai ver foi aquele homem que vi saindo da casa dela hoje pela manhã. Mas na hora pensei que Rita pudesse estar recebendo uma visita qualquer, não alguém que fosse lhe retirar a vida.
De repente, na cabeça de Dona Helena, Dona Fátima, as Marias – a mulher do médico e, também, a outra, mulher do dentista –, Dona Teresa, Dona Ermengarda, Dona Marta e todas as outras pessoas que integravam a multidão, tudo passou a fazer mais sentido: Rita havia sido morta pelo seu próprio amante. O mesmo homem que, no dia anterior, ela dissera ter visto visitando Jurema.
— Que história maluca!
— Que absurdo!
— Deus nos livre!
Exclamaram por entre a multidão. Depois se dispersaram e foram para suas respectivas casas. A partir dali, como as águas de um lago que voltam a ser plácidas pouco depois da queda de uma pedra, a vida voltaria ao seu estado de suspensão naquela pequena cidade.
A calmaria só não atingiu Jurema, pois, sem ter quem mais a vigiasse, como Rita fazia, passou a receber seu amante em casa com mais frequência. Desde então, só veste luto para sair. Dentro de casa, principalmente quando acompanhada de seu amante, anda praticamente nua.