Logo é tempo demais

Fazia uns quarenta minutos ou mais que estavam sentados, um diante do outro, em lados opostos da pequena mesa redonda da sala de jantar, entretidos com a sopa que vinha servida em seus respectivos pratos, sem dizer uma palavra sequer. O silêncio só era quebrado pelo ruído do movimento dos talheres e os sons produzidos pelo ato de mastigar e engolir. Não tinham brigado nem discutido, nada disso. Simplesmente não tinham mais o que compartilhar um com o outro, nada senão o silêncio, denso como a sopa de mandioca que tomavam.

Tito e Sofia estão juntos há muitos anos, tantos que não sabem mais dizer ao certo quantos, mas certamente mais do que quinze. O tempo passa rápido e, não raro, engana nossa própria percepção sobre o tempo. Quando nos damos conta

(isso quando nos damos conta…)

lá se foi uma vida.

À semelhança de um avião em voo de cruzeiro, o relacionamento entre ambos segue um voo quase automático por uma noite escura sem fim. Ele toca a vida dele; ela, a dela. Estariam ainda casados? Formalmente, nunca estiveram. Anos atrás, pouco depois de se conhecerem, foram morar juntos e assim permaneceram desde então, sem nunca terem oficializado nada. Isso não os impediu de sempre se apresentarem como marido e mulher, como casados mesmo.

Quando terminaram de jantar, Sofia

(a primeira a terminar)            

levantou-se e seguiu para a cozinha. Tito permaneceu sentado à mesa e, sozinho, pô-se a chorar. De início, de forma discreta, mas rapidamente o choro foi ganhando corpo e vazão. Cresceu a ponto de fazer parecer um menino o homem que estava ali chorando.

Ao ouvir o choro de Tito, Sofia retornou da cozinha, em passos apressados, foi ao encontro dele e o abraçou. Também ela naquele momento chorava. Ambos choravam. Minutos depois, completamente encharcados pelas lágrimas derramadas, Tito e Sofia se separaram. Com os olhos vermelhos, os rostos inchados, sentindo suas gargantas embargadas, seguiram para o quarto que ambos dividiam no apartamento.

Ali, no local onde antes havia uma cama de casal, daquelas bem grandes, estão duas camas de solteiro, separadas por alguns palmos de mão de distância. Com cada um empurrando de um lado, juntaram as camas de solteiro para, de improviso, formar uma nova cama de casal. E é sobre esta que se deitaram e dormiram, cada um do seu lado, de costas um para o outro, sem nem ao menos um abraço ou um beijo prévios. Dormiram assim a noite toda e, pela manhã, ao acordar, Sofia viu-se sozinha. No lado da cama de casal improvisada, antes ocupado por Tito, há apenas um bilhete. Neste, uma mensagem na qual se lê: “Volto logo”, em letras de mão. A letra de Tito.

Logo é tempo demais para mim, pensou Sofia, e então rasgou o bilhete.

A verdade é que, depois daquela noite, Sofia nunca mais teve notícias de Tito. Tanto tempo se passou desde a última vez que ela o viu, que ela nem conta mais com o retorno dele. Passou a viver sozinha, solitária.

Para ela, o tempo tem ganhado a mesma densidade viscosa dos silêncios que antes preenchiam o convívio com Tito. A eternidade parece não caber nas horas, tão longas estas parecem estar. Qualquer instante se lhe apresenta como tempo demais.

Lorena

Havia encontrado a caixa de sapatos em cima da última prateleira do guarda-roupa. Dentro dela, em vez de sapatos, havia várias fotos antigas, documentos vencidos, papéis de todo tipo que tinham sido guardados ali e, ao longo dos anos, esquecidos naquela caixa. Dentre os papéis, chamou-lhe a atenção um antigo telegrama que sua mãe havia lhe enviado, há mais de 30 anos.

Lorena era então recém-chegada a São Paulo, numa época em que os telefones eram apenas os fixos, sinais de riqueza para quem os tinha, ou os públicos, encontrados naqueles icônicos orelhões de fibra amarela espalhados pela cidade.

Distraída, ela havia passado alguns dias sem ligar para sua mãe, como sempre fazia para simplesmente dizer que tudo ia bem. Lá da sua cidade natal, sua mãe, preocupada, enviou-lhe um telegrama pedindo que Lorena ligasse para ela. No telegrama, sua mãe pedia:

– Me telefona estou preocupada.

Ao receber o telegrama do porteiro do prédio onde morava em São Paulo, Lorena abriu-o imediatamente e, dali mesmo, correu em direção a um orelhão que ficava a poucos passos de onde ela estava. Enquanto a ligação chamava por sua mãe do outro lado da linha, Lorena observava o movimento ao seu redor. Era uma rua movimentada, que tinha gente a circular a qualquer hora do dia ou da noite. Quando sua mãe finalmente atendeu a ligação, Lorena distraiu-se da multidão e concentrou-se na conversa.

– Está tudo bem, minha filha?

Sua mãe quis saber.

Estava de fato tudo bem e a conversa se restringiu a perguntar e responder sobre isso, repetindo o enredo de praticamente todas as conversas ao telefone que Lorena teria com sua mãe até esta vir a falecer alguns anos depois.

Naquele seu primeiro ano na cidade grande, a adaptação de Lorena foi difícil, tudo era muito diferente da pequena cidade onde, até então, vivera a maior parte da sua vida. Depois, com o decorrer dos anos, isso se inverteu, e é justamente na metrópole onde ela registra a passagem da maior parte de seus anos de vida. Hoje em dia, sente-se parte da paisagem; antes, sentia-se um elemento estranho. A bem da verdade, aos olhos da cidade, ela era e continua sendo só mais um número, dentre os milhões que formam sua população. Haverá de chegar o dia em que, ao caminhar por São Paulo, quase ninguém a notará, pois sua imagem se diluirá na invisibilidade dos velhos.

Vez ou outra, Lorena visita locais que, naqueles seus primeiros anos na cidade, costumava ir. Nesse final de semana, foi até aquele mercado de pulgas da Praça Dom Orione, no Bixiga. Era uma manhã ligeiramente fria, com o céu azul, sem nenhuma nuvem: uma manhã típica de outono na Paulicéia.

No passado, sempre ia àquela feira, pois, para além de apreciar os objetos antigos e outros nem tão antigos assim, gostava de ouvir as histórias por trás dos objetos, em geral bastante floreadas pelos vendedores. Adoravam atribuir origens nobres, raras ou exóticas a bonecas, medalhas, móveis, roupas, esculturas e todo tipo de quinquilharia exposto à venda.

– Esse violino pertenceu a um grande violinista da rainha da Inglaterra

ou

– Essa escultura é proveniente de um achado arqueológico no Irã

e frisavam

– É muito rara

E só então o preço era divulgado e, quase sempre, estava muito acima do que Lorena podia pagar.

Ali na feira, Lorena cruzou com uma senhora que pedia ajuda para pendurar um velho casaco em uma arara de roupas. Uma velha senhora que tinha os traços de sua mãe

(vai ver foi isso que a fez escapar da invisibilidade dos velhos)

e que, apesar da idade avançada, demonstrava enorme vivacidade para estar ali, àquela hora da manhã, provavelmente vendendo roupas de seu próprio guarda-roupa para angariar alguns dinheiros para sobreviver. Uma velha senhora que vestia uma roupa tão velha quanto e usava uma maquiagem forte, que claramente buscava esconder os sinais do avanço da idade no rosto. Uma velha senhora pequenina como as bonecas de biscuit vendidas numa banca ali próxima, e frágil como uma boneca de louça. Tinha os olhos azuis de uma solidão tão profunda quanto o mar. Como os olhos de meu avô, pensou de relance.

Lorena ajudou-a a pendurar o velho casaco e, ao final, perguntou-lhe:

– Está tudo bem, minha filha?

Estava de fato tudo bem e a conversa se restringiu a perguntar e responder sobre isso.

Nem todo fim é o fim do mundo

Fuçando uma caixa de sapatos que, há anos, mantinha guardada no fundo de uma gaveta da penteadeira, Paula encontrou várias fotos antigas, de sua época de juventude; fotos em que ela aparecia sempre cercada de muitas amigas, o pessoal da faculdade, do trabalho. Gente que os anos foram levando e sobre paradeiro das quais ela atualmente nada sabe.

Daquela gente toda, cujas imagens as fotografias registraram em geral abraçadas umas às outras e sorrindo, não recorda o nome de ninguém; por vezes, também não se lembra nem sequer onde a foto foi tirada. Ainda assim, pensa Parece que foi ontem.

Pela manhã, enquanto caminhava pela rua em direção à padaria, leu em um muro que Qualquer idiota consegue ser jovem, mas que É preciso talento para envelhecer. Olha de novo para aquelas fotografias, uma a uma, manuseando-as com cuidado, como se, ao invés de fotos, estivesse a recolher as pétalas de um arranjo de flores, que caíram ao chão pela ação do tempo. Também aquelas fotos revelavam a ação do tempo, mas de um tempo muito maior, o tempo de toda a sua vida.

Uma das verdades da vida da gente é que, só quando estamos mais maduros, nos damos conta não apenas da escassez do tempo, mas também de quão rápido ele passa, Meus Deus, já estamos em abril, Parece que foi ontem que celebramos, com os corações cheios de esperança renovada, a chegada de mais um ano.

O tempo passa rápido, muito rápido, tal qual aqueles maratonistas que, em sua passagem, acenam para a plateia de pessoas a observá-los a correr. A vida é mesmo uma maratona? E diante dela somos esses corredores ou somos a plateia para quem eles acenam?

Sozinha em casa, enquanto olha para aquelas fotografias antigas, Paula permanece sentada sobre a cama de casal que, por décadas, dividiu com seu marido, falecido há alguns anos. Hoje vive sozinha, pois Marlene, sua única filha, mora em outra cidade e nunca a visita. Olha as fotos da filha, do falecido marido; não os reconhece mais, também eles lhe parecem estranhos. Emolduradas em porta-retratos, outras fotografias dividem o espaço sobre a penteadeira com escovas de cabelo, presilhas, um frasco de leite de rosas, águas de colônia, alguns bibelôs e um revólver. A arma pertenceu a seu marido, que, quando vivo, falava que era para a segurança da família, Vai que um dia entra um bandido aqui, ele dizia para justificar a presença daquele revólver, sempre carregado, dentro de casa.

Ela reconhece a arma em umas das fotos que tem em suas mãos; talvez porque fosse uma foto recente, que ela mesma tirara, numa selfie em que, com o dedo no gatilho, ela aparece apontando aquela arma para a própria cabeça. Paula consegue reconhecer a arma na foto, mas ao olhar para seu próprio rosto, não se reconhece. Pensa tratar-se de uma estranha. Aos seus olhos, contrariamente aos dizeres que lera naquele muro no caminho para a padaria, na manhã daquele dia, a mulher da foto não havia demonstrado nenhum talento para envelhecer, pois tinha a pele fina, feito papel, toda enrugada, os olhos fundos, uma expressão de profunda tristeza e solidão. Ao contrário de Paula, que julgava estar bem para alguém de sua idade, pois se acostumara a entristecer, aquela mulher da foto parecia ter sido derrotada pela vida.

Nem todo fim é o fim do mundo, ela pensou enquanto observava a imagem da mulher na fotografia com o revólver apontado para a cabeça. Pegou então o revólver, apontou para sua própria cabeça e, mais uma vez, pensou Nem todo fim é o fim do mundo. Quando ia reproduzir essa frase pela terceira vez em sua mente, só conseguiu pensar Fim.

Que passa

Se alguém lhes perguntasse, provavelmente nenhum deles dois saberia dizer com precisão desde quando eram amigos. Poderiam responder simplesmente Somos amigos há muitos anos ou Já faz tempo e respostas assim costumavam ser suficientes. Mesmo tendo cultivado uma amizade há tanto tempo, Carlos e José pouco sabem a respeito um do outro, pois, em geral, ao se encontrarem, falam apenas de trabalho. Ambos trabalham na mesma grande empresa, como contadores, e são apaixonados pelo que fazem.

Das vinte e quatro horas do dia, dedicam-se a trabalhar quinze, dezesseis horas, quase nunca menos que isso, fazendo com que sobre muito pouco, quase nada de tempo livre para se dedicarem a qualquer outra atividade. De fato, pouco lhes interessa fazer qualquer outra coisa que não seja trabalhar.

Às margens de chegarem aos sessenta anos, no caso de Carlos, e sessenta e dois, no caso de José, nem um nem outro se casou ou teve filhos. Vivem sozinhos, cada qual em seu pequeno apartamento próprio, distantes apenas uns dois quarteirões um do outro, em um bairro de muitos edifícios altos, repletos de solidão por entre suas centenas de apartamentos de quarto e sala, como são aqueles onde moram Carlos e José.

Num sábado de manhã, ao sentar-se à mesa para tomar seu café matutino em uma padaria do bairro, José vê Carlos adentrar o recinto e o convida para ir se juntar a ele naquela mesa. Depois de fazer seu pedido no balcão, Carlos dirige-se à mesa onde José toma seu café.

Após o costumeiro Bom dia de um lado, Bom dia de outro, Carlos sentou-se à frente de José e começaram a conversar.

Quase duas horas depois, a padaria via o movimento da manhã começar a arrefecer e eles ainda estavam lá, sentados, entretendo-se fortemente com um bate-papo, como se há muito não se vissem.

Fugindo ao hábito cultivado por anos, não falaram de trabalho. A conversa toda girou em torno de si mesmos, de suas alegrias, suas tristezas, seus medos, de tudo de mais íntimo que um tinha para dizer ao outro e vice-versa. Tiveram tempo de passar a vida de cada um deles em revista perante o outro, Você sabia que por várias vezes já quis me matar?, indagou Carlos, misturando confissão à pergunta, Choro todos os dias antes de dormir, confessou José, Uma vez, há muito tempo, quase me casei, mas a menina foi proibida de se casar comigo pelo pai dela, que me considerava um merda, relatou Carlos, Juntei-me a uma mulher há muitos anos e chegamos a dividir o mesmo teto, mas ela dava muito trabalho, então nós nos separamos e eu a mandei embora de casa, contou José, Quando olho para você, sinto….

disse Carlos, sem completar a frase, que assim caiu ao chão como uma flecha lançada sem tração suficiente para atingir o alvo. Mas se a boca não disse, o seu olhar disse tudo e deixou atônito o olhar do amigo.

José pediu então licença Preciso ir ao banheiro, levantou-se e caminhou em direção ao local cujo destino anunciara ao amigo.

Ao ficar longe do campo de visão de Carlos, ao invés de ir ao banheiro, foi-se embora da padaria, esquivo como um gato. José continuou ali, a tomar seu café, sem dar pela falta de Carlos.

Desde então, nunca mais se falaram, nem mesmo para falarem de trabalho como antes costumavam fazer. Quando acontece de se encontrarem, sem querer, seja no trabalho, seja em qualquer outro lugar, nem o antes costumeiro Bom dia de um lado, Bom dia de outro. Quando muito, uma troca de olhares rápida, arisca, que não se fixa, apenas passa.

Aurora

A qualquer hora do dia, quem quer que passasse ali na frente da porta daquele pequeno comércio, bem ao lado da floricultura, notaria a presença daquela mulher corpulenta, sentada de cócoras sobre um banquinho de madeira, desses de três pés, que mantinha o corpo dela a poucos centímetros do chão; mais um pouco, e ela estaria de fato sentada sobre o piso de cimento da loja, formando uma imagem que muito provavelmente a assemelharia a um sapo.

Na loja, vendia-se uma enorme variedade de bugigangas para cozinha, banheiro, alguns doces, salgados, e o que mais pudesse chamar a atenção dos transeuntes para adentrarem naquele pequeno espaço e comprarem algum produto que estava ali exposto.

Vez ou outra, via-se uma ou duas crianças a fazer companhia para a mulher. A julgar pela idade que ela e as crianças aparentavam ter, seria fácil dizer que se tratava de avó e seus netos. E de fato eram. Aurora era a avó dos dois meninos de oito e dez anos de idade, ambos filhos de Maria, a filha de Aurora, que os tivera enquanto ainda vivia com João, homem que, logo após o nascimento do segundo filho, fugiu de casa sem dar notícias de seu paradeiro. Isso há quase três anos. Maria trabalhava como caixa em uma lotérica a poucos metros de distância da loja da mãe, virando a esquina. Moravam ambas mais os meninos no andar de cima da loja de Aurora, em um quartinho que mal os acomodava: tinham de dividir a mesma cama de casal, que desencostavam da parede à noite, para dormir, e apoiavam novamente na parede depois de acordarem, de modo a livrar algum espaço para circulação ali dentro. Ainda assim, ficava apertado.

Certo dia, ao abrir a loja logo de manhã bem cedo, como costumava fazer, Aurora deparou-se com um envelope que alguém fizera passar por debaixo da porta de ferro. Ela abriu o envelope e tirou de dentro dele uma folha de papel em cujas linhas algo vinha escrito. Sem saber o que era, recolocou a folha dentro do envelope. Aurora nunca tinha podido estudar, era completamente analfabeta. Seu pai a proibira de estudar, pois não queria que ela fosse capaz de escrever cartas para os meninos do bairro, não queria a filha na boca do povo, queria que ela fosse uma menina direita. Naquela família numerosa, todos os filhos homens puderam estudar ao menos para aprender a escrever o básico. Aurora, a filha do meio, a única filha mulher, nem isso. Nunca chegara sequer a entrar em uma escola. Conseguia se virar ali na loja, pois tinha um certo tino para lidar com números, embora também não conseguisse lê-los. Ao menos, era-lhe algo mais intuitivo do que as palavras.

Ela foi então pedir a Pedro, seu neto mais velho, para ajudá-la a entender o que dizia o bilhete

– Pedro, me ajude aqui.

Vendo a avó com o envelope na mão, ele, curioso, quis saber

– O que é isso, vó?

Aurora abriu o envelope e extraiu de dentro dele a folha de papel cujo conteúdo queria decifrar e mostrou-o a Pedro

– Me diz o que está escrito aqui.

O menino pegou o papel na mão, olhou, olhou e depois respondeu para a avó

– Vó, não diz nada aqui.

Ela, incrédula, insistiu

– Como assim não diz nada?

No que Pedro confirmou

– Não tem nada escrito.

Não satisfeita, Aurora então lançou um

– Então o que é isso aqui?

enquanto apontava o dedo para o desenho de um coração vermelho a preencher a parte central da folha de papel

– É o desenho de um coração, vó

respondeu-lhe Pedro, algo incrédulo por ver a avó incapaz de entender aquele desenho tão simples.

Aurora ficava a olhar para a imagem do coração ao centro da folha de papel que segurava firme em suas mãos, como se visse e talvez sentisse algo pela primeira vez na vida, tamanho era o estranhamento expresso em seus olhos. 

— De quem é essa cartinha, vó?

Inquiriu-lhe Pedro, chamando de cartinha aquela simples folha de papel com a figura vermelha de um coração ao centro, como se tivesse sido pintada à canetinha.

Aurora refletiu por alguns instantes, enquanto seu olhar ia da folha de papel para a vigília da porta da loja, pois havia sempre o risco de trombadinhas passarem por ali e roubarem algum produto que estivesse mais à mão, e depois voltava para a folha de papel. Refletiu mais um pouco e com os olhos a brilhar devido ao orvalho dos velhos, sob o sol forte que invadia a loja naquele horário, respondeu-lhe numa tristeza bondosa de avó

— Deve ser de alguém que vê sua avó como uma gorda.

Incapaz de qualquer compreensão daquela figura fosse como órgão do corpo propriamente dito e menos ainda como símbolo do amor, ela viu na figura vermelha daquele coração ocupando todo o centro da folha de papel, desenhado com linhas irregulares, que, tal como uma carta, tinham colocado dentro de um envelope e feito passar por debaixo da soleira da porta da loja, apenas e tão somente a imagem de sua caricatura.

Adelaide

Logo de manhã, ao acordar, pegou o seu celular e leu a notícia de que os metroviários estavam em greve. Se seu ânimo para sair para o trabalho já não era dos maiores, ficou ainda mais desanimada, pois podia antever os transtornos pelos quais passaria para poder chegar à casa de família onde cumpria jornada como babá de um bebê de dez meses, filho único de um jovem casal recém-casado.

Sua patroa gostava que ela chegasse bem cedo, a tempo de assumir os cuidados da criança antes de ela sair para trabalhar. Para atender ao pedido da patroa, Adelaide procurava chegar por volta das sete da manhã, o que a forçava a sair da casa dela bem mais cedo, não depois das cinco e meia, pois, para além disso, atrasaria demais sua chegada ao trabalho, colocando-a sob a mira certa das reclamações da patroa.

Mas naquele dia seria mesmo impossível chegar no horário: com a greve dos metroviários, Adelaide teria que se espremer em ônibus ou lotações, que por certo estariam apinhadas de gente, tudo gente simples como ela, que levava para o trabalho a comida de casa, para não ter que comer na rua, um luxo definitivamente fora do alcance daquelas pessoas todas, a não ser que lhes fosse possível comer algo barato, que coubesse na fome e na falta. Para Adelaide, também isso era impossível: a casa onde trabalhava ficava em um bairro nobre da cidade, cercado de restaurantes finos, nos quais uma garrafa de vinho ou um prato qualquer podia custar mais que seu dia inteiro de trabalho.

Ela mesma já havia se deparado com pedidos de comida recebidos pelos seus patrões, que ia buscar no portão da casa, cujas notas não raramente registravam preços que deixavam à mostra a pornográfica desigualdade social do mundo.

Ao chegar à estação do metrô, como previsto, Adelaide encontrou os portões fechados, com um aviso colado às grades, escrito à mão, onde se lia: “Em greve”. Ela correu para pegar alguma das muitas lotações que se aglomeravam ali na frente, mas tamanho era o número de pessoas a se espremerem que ela mal podia se mexer. As vans de lotações, embora numerosas, mal davam para atender as pessoas que ali estavam, desesperadas para encontrar um meio de transporte que lhes permitisse chegar aos seus destinos.

Às seis e meia da manhã, Adelaide ainda lutava com a multidão para embarcar em alguma van, à semelhança de peixes que se debatem correnteza acima. Com certeza, se conseguisse chegar, chegaria atrasada. Já podia ouvir sua patroa vir reclamar Ô Deda

(era assim que a patroa a chamava)

Ô Deda, seu horário de chegar é às sete.

E a depender do horário em que ela enfim chegaria, além de ouvir o Ô Deda, seu horário de chegar é às sete, ainda teria de ouvir da patroa que Se fosse para chegar tão tarde, pelo menos poderia ter me avisado com antecedência.

Mas, naquele dia, Adelaide, ainda que quisesse, não tinha como avisar: saiu de casa num corre tão grande que acabou se esquecendo de levar seu celular. Além disso, não tinha de memória o número da patroa, de modo que nem teria como ligar para ela, ainda que fosse do orelhão.

Somente às oito da manhã que Adelaide conseguiu enfim embarcar numa van super lotada. Dali umas duas horas, chegaria ao trabalho.

A van seguia pelas ruas congestionadas da cidade, esquivando-se com dificuldade como quem cruza uma multidão, e despejando gente e trazendo gente para dentro ao longo do caminho. Pelos semáforos e cruzamentos, vendedores de balas, de guardanapos, de mapas, homens se oferecendo para limpar os para-brisas, guardas a ameaçarem multas, ladrões de celular, meninos raquíticos a levantarem placas de “estou com fome”, “preciso de ajuda”, “estou desempregado”, gente a correr para seus compromissos, gente apressada, gente pobre, pobre gente que precisa espremer a vida apertando-a entre as paredes estreitas das necessidades mais básicas.

A muitos quilômetros dali, Teresa, a patroa de Adelaide, havia acordado há pouco. Dormira tarde naquela noite, pois tinha saído para jantar com o marido, de modo que só foi conseguir se levantar quando o relógio marcava oito da manhã. Logo que notou a ausência de Adelaide, pôs-se a tentar ligar para o telefone dela, a fim de saber seu paradeiro. Tentou umas três, quatro vezes e, em todas elas, a ligação caiu na caixa postal. Teresa tomou seu café, enquanto acompanhava na televisão o noticiário de um canal estrangeiro sobre determinada guerra, greve e protestos que aconteciam em terras distantes e também notícias do mercado e da bolsa de valores. Nada sabia do que ocorria na própria cidade.

Teria de esperar a chegada de Adelaide, pois não tinha com quem deixar o bebê para ir trabalhar. Adelaide só foi chegar por volta das dez horas daquela manhã. Ao abrir a porta da casa, deu de cara com uma Teresa irritada pelo atraso e pela falta de notícias sobre seu paradeiro. Com o olhar cansado, ainda teve de ouvir da patroa Ô Deda, já te disse que seu horário de chegada é às sete, não? e quase aos gritos complementar Já são dez horas! e por fim ameaçar Se continuar assim, vou ter que descontar de seu salário.

Adelaide estava cansada demais até para responder e, via de regra, para evitar conflitos, preferia mesmo o silêncio a argumentar, fosse com sua patroa, fosse com qualquer pessoa. Não era de seu feitio, como sua mãe costumava lhe dizer quando ela era criança, já naquela época antevendo que a filha carregaria pela vida afora aquele traço de personalidade. Depois que Teresa saiu para o trabalho, Adelaide sentou-se, cansada, diante da televisão e, com o bebê no colo, ficou a assistir as notícias no telejornal a respeito da greve dos metroviários, que então ainda seguia sem solução.

Um repórter surge na tela para narrar sua versão dos fatos, tendo ao fundo um aglomerado de pessoas a tentar embarcar nas diversas vans que estão no local. Lá atrás, é possível ver Adelaide em meio aos que lutam para entrar numa dessas vans. Em determinado momento, sem saber que está sendo filmada, ela olha para a câmera, e a imagem de seus olhos tristes é transmitida pela televisão pelo país afora. Algumas de suas vizinhas, amigas e conhecidas, logo em seguida, enviam-lhe mensagens pelo celular dizendo que a haviam visto na televisão. Ela só veria as mensagens à noite, ao retornar para sua casa. Adelaide mesmo, ainda que também estivesse assistindo aquela reportagem, não a reconheceu na imagem transmitida. A realidade daquela mulher da imagem gravada de manhã, lutando para subir em uma van lotada, parecia tão distante daquela que agora estava sentada naquele enorme sofá, a compor a decoração daquela elegante sala de tevê da enorme casa da patroa. Vai ver era porque nem pareciam habitar o mesmo mundo.

Glória

Desde que retornara a seu apartamento na sexta-feira passada, não saiu mais. Já estamos na quinta-feira seguinte e Glória continua reclusa, sem sair de casa para nada senão buscar na portaria do prédio a comida que pede pelo telefone. E só.

Havia sido desligada do trabalho na sexta: no final da tarde daquele dia, seu chefe a chamara em uma sala de reunião e, dali a pouco mais de dez minutos, ela viu-se desempregada. Trabalhava como secretária executiva naquela empresa de importação e exportação, há quase quinze anos. Felizmente, não tinha ninguém mais para sustentar além dela mesma: o dinheiro da indenização haveria de poder garantir seu sustento, pensava; não sabia dizer ao certo, contudo, por quanto tempo.

Naquele dia, sentiu-se arrasada. Depois da fatídica reunião com seu agora ex-chefe, voltou para aquela que, por tantos anos, havia sido sua mesa de trabalho, recolheu alguns pertences, nada muito numeroso, e andou a passos rápidos e constrangidos

(parecia então pisar em solo estrangeiro)

até o banheiro feminino. Ali, trancou-se em uma das cabines, sentou-se sobre a tampa do vaso sanitário, e pôs se a chorar como há anos não chorava, fazendo um grande esforço para que a imensa dor emocional que sentia não fosse traduzida em gritos ou lamentos altos. Chorou baixinho. Uma hora depois, quando já ninguém mais estava no escritório, afinal era sexta e todos iam-se embora mais cedo ou trabalhavam de casa, ela abriu a porta da cabine e, com o rosto inchado e os olhos injetados de sangue devido ao choro, ajeitou a roupa e partiu para seu apartamento, onde, desde então, há quase uma semana, Glória encontra-se reclusa.

Há tempos e, mais ainda, depois de completar sessenta e cinco anos de idade, vinha passando por sua cabeça que talvez estivesse se aproximando o dia de parar de trabalhar. Muito embora gostasse muito de seu trabalho, tinha consciência de que, mais dia menos dia, a idade pesaria e aqueles comentários que, não raro, chegavam até ela pela rádio corredor da empresa, de que estaria velha demais para a função que desempenhava, resultariam em sua demissão.

Só não esperava ver-se demitida justo no mês de seu aniversário, na verdade dois dias depois. No dia em que completara seus sessenta e cinco anos, o pessoal do trabalho havia preparado uma comemoração, como faziam para todo mundo, com bolo, Coca-Cola, velinhas e todo mundo cantando para ela um parabéns a você. Ficara tão emocionada. Estava presente todo mundo de seu setor, inclusive seu chefe, o mesmo que, dois dias depois, a chamaria numa sala de reunião e a demitiria.

Bastante econômico com as palavras no dia a dia, ele havia sido ainda mais lacônico no dia em que mandara Glória para casa. Dissera-lhe apenas que a empresa estava passando por algumas restruturações e que, nesse processo, demissões eram necessárias, naturais e esperadas. Vai ver nem eu mesmo fique, ele disse, e olhando em retrospecto, parece a Glória que ele dissera aquilo só para amenizar o peso na consciência dele por estar mandando-a embora.

Glória tinha em casa uma caixa cheia de fotografias que, ao longo dos anos, tirou ao lado do pessoal da empresa, em comemorações as mais diversas. Por todo esse tempo, considerou-os família. Não mais. Desde que saíra da empresa, não recebeu nem sequer uma ligação de nenhuma daquelas pessoas, nem ao menos para dizer-lhe Vai ficar tudo bem ou Estou aqui caso precise de algo. Nada. Bando de ratos e ratazanas, ia pensando enquanto reduzia a pedacinhos todas aquelas fotos. Depois de terminar de destruir aquelas fotografias, levou os pedacinhos a que as reduzira ao já então volumoso saco de lixo, que seguia sem ser descartado desde sexta-feira.

Não demorou para os vizinhos do andar começarem a sentir o mal cheiro que saía do apartamento de Glória, devido ao acúmulo de lixo ali dentro. Dona Helena, a senhora viúva que era vizinha de porta de Glória, começou a estranhar não apenas o mal cheiro, mas também não ver nem ouvir mais Glória sair ou entrar, nas raras vezes que tinha que buscar a comida que os entregadores deixavam na portaria. Foi avisar o síndico, Seu Zé, e pedir a ele Vai bater lá na porta dela e ver se tem alguém em casa, já que ela mesma não tivera resposta ao tocar a campainha do apartamento de Glória. Quando Seu Zé foi lá, viu as contas acumuladas na soleira da porta e sentiu o mal cheiro nauseabundo que saía por entre as frestas da fechadura. Chamou Ô Dona Glória, bateu, chamou de novo Ô Dona Glória. Ao ouvir Seu Zé chamando lá fora, Dona Helena saiu à porta para acompanhar o que acontecia. Nada de Glória vir atender. Por alguns minutos, os dois ficaram em silêncio em frente à porta do apartamento de Glória, sob o olhar misericordioso de uma Nossa Senhora de gesso que a ornava, escondendo o olho mágico.

Seu Zé chamou a polícia e, quando os policiais chegaram, outros vizinhos haviam se juntado a Seu Zé e Dona Helena na frente da porta do apartamento de Glória. Uma dupla de policiais, dois homens fortes, bateram à porta e chamaram Dona Glória, Ô Dona Glória. Nada de ela vir atender. Ao fundo, vindo de algum apartamento próximo, ouvia-se o choro insistente de um bebê. Já temendo pelo pior, os policiais pediram aos vizinhos que se afastassem e arrombaram a porta do apartamento de Glória.

Para surpresa e choque de todos, que devido ao mal cheiro nauseante que o apartamento há dias exalava, esperavam pelo pior, algo como um corpo em decomposição, o apartamento estava completamente vazio, limpo, prístino, todo branco como uma nuvem de um dia ensolarado. Nem Seu Zé nem Dona Helena nenhum outro vizinho tinha visto qualquer movimento de mudança. Tudo muito estranho, pensaram todos. As mulheres até se benzeram, fazendo o sinal da cruz sobre seus peitos.

Caminharam todos em passos de procissão até o fundo do apartamento. Foi quando chegaram ao quarto que era de Glória que o maior espanto os tomou de assalto. Em meio ao cômodo vazio, viram uma caixinha de música, com uma bailarina a girar na ponta dos pés, tocando uma melodia de ninar como que acionada por uma pilha de energia infinita.

a faxineira

Naquela manhã, ao acordar, sentiu um certo mal-estar, um enjoo, tudo acompanhado de uma angústia, uma tristeza… não sabia bem dizer o quê. Era como se, durante a noite, tivesse pulado de pesadelo em pesadelo, e isso ao final a tivesse deixado nauseada. Mas Julia não se recordava de ter tido pesadelos naquela noite; de fato, eram raras as manhãs, muito raras mesmo, em que acordava com lembranças dos sonhos havidos na noite anterior.

Julia levantou-se da cama e foi ao banheiro para fazer sua toalete, tomar seu banho matinal, escovar os dentes, pentear-se, passar um perfume, maquiar-se, tudo para ficar, enfim, pronta para enfrentar mais um dia. Já se encaminhava para a cozinha, onde tomaria o seu café da manhã, mas nada daquele mal-estar que vinha sentindo desde que acordara a abandonar.

Tomou um café puro, pois se sentia enjoada demais para comer qualquer coisa. Nem as bolachinhas integrais que gostava de comer pela manhã estavam descendo. Terminado o café, pegou sua bolsa e saiu de casa, deixando a chave embaixo do capacho, em frente à porta do apartamento, para a faxineira poder entrar quando chegasse mais tarde. Era a mesma que trabalhava com ela há mais de cinco anos. Sentia-se confiante de deixar a chave para a faxineira entrar e sair. Mesmo tendo estabelecido essa relação de confiança, não sabia o nome da mulher que logo mais adentraria seu apartamento para fazer a faxina diária, abrindo a porta com a chave que ela sempre deixava embaixo do capacho.

A faxineira costumava trabalhar ali três vezes por semana, todas as semanas. Chegava cedo, pouco depois de Julia sair para o trabalho, e terminava seu expediente no final da tarde, algumas horas antes da dona da casa chegar. Ao longo dos anos em que a faxineira trabalhou para Julia, praticamente nunca haviam se encontrado. Eram quase como estranhas uma para a outra. Nos dias de pagamento, a faxineira recebia um cheque que Julia deixava sobre o aparador, com o valor da semana, descontado o valor dos alimentos que ela pegava da geladeira ou da despensa para consumo próprio. Julia tinha controle de tudo o que entrava e saía de casa e, portanto, sabia quando a faxineira consumia algo que não lhe pertencia. Para Julia, combinado era combinado e não fazia parte do ajuste que a faxineira pudesse comer de graça enquanto em serviço no apartamento dela. Por isso, a seu ver, esses descontos eram justos. Na primeira vez em que se viram, na entrevista de emprego, Julia chegou a perguntar-lhe:

— Qual seu nome?

Qualquer que tenha sido a resposta naquele dia, Julia não mais se recordava. Desde então, chamava aquela mulher simples, vinda da periferia distante e pobre da cidade, que em três vezes por semana ia até sua casa, tão somente pela função que ela desempenhava ali: faxineira.

Naquele dia, Julia teve que retornar bem mais cedo do trabalho: o mal-estar que vinha sentindo desde a hora em que acordara foi piorando ao longo do dia e ela se sentia demasiadamente fraca para continuar trabalhando. Ao chegar em casa, já quase prestes a desmaiar, tamanha a fraqueza que sentia, encontrou com a faxineira a terminar de limpar a sala.

— Oi, Dona Julia.

Disse a faxineira, sem esboçar grande entusiasmo, talvez por conta do susto que levara: tão raro era poderem se encontrar pessoalmente.

Sem se lembrar do nome da mulher que limpava sua casa, não restou a Julia outra alternativa senão dizer:

— Oi.

Assim, seco.

Enquanto caminhava na direção de seu quarto, Julia pediu a faxineira que lhe preparasse um chá, algo que estava fora do escopo de seus serviços. Ainda assim, a faxineira preparou um chá de boldo e levou para Julia, que então já descansava em sua cama.

—Tome, Dona Julia.

Disse a faxineira ao chegar ao quarto e se deparar com Julia deitada, toda enrolada em cobertas: ela estava febril.

— Cuidado pois está muito quente.

Advertiu-lhe a faxineira, antes de deixar a xícara passar de suas mãos para as mãos de Julia, que, em seguida, bebeu todo o chá quase que de um gole só, sem se importar com quão quente estava a bebida. Intrigada pela visão daquela mulher que, há pouco, havia sido tão gentil com ela, parada ali diante de sua cama, a olhá-la com uma ternura distante, Julia perguntou-lhe:

— Qual o seu nome?

A essa pergunta, sucedeu-se uma longa pausa.

Julia então caiu no sono por efeito do chá de boldo, que de fato nada tinha dessa erva: havia nele uma mistura de cogumelos que poderia ser letal, a depender da quantidade consumida. Era o mesmo chá que ela tomara no dia anterior o que acabou por causar-lhe o mal-estar à noite. A faxineira tinha deixado o chá pronto dentro de uma garrafa térmica posta sobre a bancada da cozinha, com um bilhete avisando Julia que era o chá que ela pedira para fazer. Diferentemente daquele tomado no dia anterior, o de agora tinha uma quantidade letal de cogumelos.

Julia ainda conseguiu juntar forças para novamente perguntar à faxineira:

— Qual o seu no…?

Mas antes mesmo de conseguir completar a pergunta, desfaleceu… ou morreu?

Por coincidência ou não, foi nesse momento que tocou o telefone celular que Julia deixara na mesinha ao lado da cama. Num gesto impensado, a faxineira o atendeu.

— Alô, é a Julia?

Alguém perguntou do outro lado da linha.

— Ela mesma.

Respondeu-lhe a faxineira, com os lábios e os olhos a sorrirem, pois finalmente alguém naquela casa a chamara por um nome.

Na sala de casa

Na sala da casa, encontramos pai, mãe, filho e filha, todos diante da televisão

Que segue ligada em uma novela qualquer

Na novela que ninguém presta atenção

Pareciam tão felizes na fotografia

Há pouco publicada numa rede social

Na rede na qual todos tinham perfis

Curtiam e eram curtidos

Mas não se tocavam

Não se olhavam

Não conversavam

Apenas gostavam

E odiavam

E invejavam

E compravam

E descartavam

Adicionando

Deletando

Bloqueando

Silenciando

Qual silêncio

Quanto barulho

Na sala de casa.

Madalena

O aroma inebriante que tomava conta da cozinha denunciava qual era o prato cujo preparo ficava a cargo do forno, que, a julgar pelo calor do ambiente, estava ligado em fogo alto há algum tempo. E assim ficaria por pelo menos mais meia hora, tempo suficiente para completar o necessário para que aquele prato que Madalena assava no forno ficasse pronto, segundo a receita que ela havia visto em um programa matinal de culinária no dia anterior. Dentro do forno, Madalena assava uma lasanha, o prato preferido de seu único filho, Pedramérico, que, dali alguns minutos, chegaria para reencontrá-la após quase cinco anos distantes.

Durante esses anos, mãe e filho mal se falaram – as raras vezes em que isso ocorreu foi sempre por telefone, em breves ligações nas quais ele e ela trocavam meros cumprimentos que, no caso dele, serviam apenas para saber se a mãe ainda estava viva ou se batera as botas. Nada além disso.

No passado, com quinze anos então recém-completados, Pedroamérico fugiu da casa da mãe, pois não suportava mais apanhar dela quase todos os dias. Vítima de uma educação severa, na qual crianças não tinham voz nem tampouco vez, desde sua infância Madalena somente havia aprendido a educar fazendo uso da violência física, a mesma que ela sempre aplicara na educação de Pedroamérico. Para azar dele, havia um agravante: Madalena acreditava que, quanto maior a violência utilizada para educar, melhor era a educação que daí resultaria.

Ao fugir de casa, Pedroamérico havia jurado para si mesmo que nunca mais voltaria, mas, com o passar do tempo, ele foi aos poucos revendo essa decisão até se convencer de que sua velha mãe merecia ao menos uma segunda chance.

E o dia do encontro que marcaria ao menos uma aposta nessa segunda chance havia enfim chegado: um sábado que, não fosse por isso, seria um sábado qualquer na vida dele ou de sua mãe. Pela manhã, Madalena tinha ido ao mercado para comprar os ingredientes da lasanha. Fez questão de comprar a melhor massa, presunto e queijo que seu escasso dinheiro de aposentada permitia. Pensou em também levar um pote de sorvete, a sobremesa preferida de Pedroamérico, mas não tinha como pagar por essa extravagância: Madalena tinha um pacote de boletos aguardando quitação para a semana seguinte e não queria ver-se na situação de má pagadora perante a companhia de luz ou a de gás, só para mencionar algumas das contas que teria que honrar já na próxima segunda-feira.

Enquanto a lasanha seguia assando no forno, Madalena cuidou de arrumar a mesa, jogando por sobre seu tampo redondo uma toalha estampada com motivos florais, em cima da qual depositou dois pratos, dois pares de talheres e dois copos. Deixou livre o centro da mesa, pois ali depositaria o marinex com a lasanha. Ela também aproveitara a manhã para fazer uma faxina na casa e, assim, sinalizar para Pedroamérico que aquela Madalena que aguardava por ele naquele sábado não era a mesma desleixada que convivera com ele antes de sua partida dali, que pouco ou nada se interessava em zelar para que a casa estivesse limpa e organizada: à época, vivia-se ali em meio a roupas jogadas pelos cantos, lixo para retirar, poeira e odores para todos os lados. 

Madalena passara toda sua infância e adolescência tendo de lidar com um pai alcoólatra e violento, daí por que, para além de sua complicada relação com autoridade, organização, também sua relação com qualquer bebida alcoólica era cercada de ressentimentos. Nas várias vezes em que seu pai chegava em casa bêbado, ele fazia de Madalena uma vítima fácil das revoltas e frustrações dele: as surras eram frequentes, sempre sob o olhar indiferente de sua mãe, uma mulher cujo santo jamais bateu com o de Madalena – eram como estranhas uma para a outra. Mesmo diante desse histórico conturbado, Madalena gostava de tomar um pinga, beber uma cerveja. Bebia todos os dias, mas não se julgava dependente da bebida. Porém, não serviria nada alcoólico para acompanhar a lasanha. No lugar de um vinho, que raramente bebia por causa do preço, ou da cerveja, Madalena ofereceria apenas uma Coca-Cola, que ficaria guardada na geladeira até a hora de servir.

O forno apitou avisando que o tempo de cozimento da lasanha chegava ao fim. E nada de Pedroamérico chegar. Vai ver pegou trânsito, Madalena pensou. Ela imaginava que ele vinha de longe, não sabia dizer de onde, e que, portanto, poderia demorar, era natural, pensou. Foi checar se havia alguma mensagem dele no celular dela. Nada. Pensou em mandar uma mensagem para ele perguntando

— Onde está?

ou

— Está chegando?

mas jamais um

— Está tudo bem?

pois seria uma questão demasiadamente ampla. E sempre cabem muitas respostas para questões amplas. E Madalena não queria tantas respostas, queria apenas saber se Pedroamérico estava chegando dentro do horário que dissera a ela que chegaria.

Ela então desligou o forno, tirou a lasanha lá de dentro e a pôs sobre o centro da mesa, para esfriar um pouco. Depois, sentou-se em uma das cadeiras e ficou a contemplar a lasanha quente e fumegante sobre a mesa, enquanto bebericava uns goles de Coca-Cola misturada com cachaça.

Sobre o aparador, ao lado da porta de entrada da casa, havia dois porta-retratos com fotos, uma com Madalena tendo ao colo Pedroamérico bebê e outra com uma selfie recente de Madalena a ocupar toda a quadratura da foto, sem revelar ao fundo o local onde fora tirada. Na foto com Pedroamérico bebê, ela sorri para a câmera emulando as mães da igreja que frequentava, que também faziam questão de sorrir nas fotos com seus bebês. Essas fotos eram coladas no mural da igreja, como forma de avisar os fiéis que a frequentavam sobre para quem direcionar suas doações e preces.

Duas horas já haviam se passado desde que a lasanha ficara pronta e Madalena ainda seguia sem notícias do paradeiro de seu filho. Nesse tempo, a lasanha acabou esfriando. Madalena voltou a verificar se havia alguma mensagem de Pedroamérico em seu celular. Novamente nada.

Então se levantou e foi até a frente da casa a fim de olhar, até onde sua vista alcançava, se ali pela rua havia sinais da chegada do filho. Naquela hora da tarde, com o sol tinindo de quente, a rua jazia praticamente deserta, sem ninguém a percorrer suas calçadas. Voltou para dentro da casa e recolocou a lasanha no forno, mas sem acendê-lo novamente. Abriu apenas a chave do gás e, mantendo o forno aberto, deixou que o gás se espalhasse pela casa toda, preenchendo todos os seus espaços com aquele seu cheiro metálico tão característico.

Com a caixa de fósforos na mão direita, Madalena preparava-se para acender o forno, quando alguém bateu à porta e chamou:

— Mãe?

Era Pedroamérico que chegava, pensou Madalena.

Deixou de lado a caixa de fósforos e correu meio desembestada até a porta de entrada. Ao abri-la, não viu ninguém ali fora: a frente da casa estava tão vazia quanto no momento em que ela saíra para ver se avistava o filho a chegar pela rua. Ela jurava ter ouvido seu filho bater à porta e chamar:

— Mãe?

Decidiu deixar a porta aberta para dispersar o gás, fazendo-o ir para o lado de fora da casa. Feito isso, foi conferir novamente seu celular e viu ali na tela o aviso de uma ligação perdida que havia partido do celular de Pedroamérico. Com as mãos trêmulas, ela pegou o telefone e apertou o botão para chamar de volta o telefone do filho. Do outro lado da linha, mesmo diante da insistência dos toques da ligação, ninguém atendeu.

— Mãe?

De novo, era Pedroamérico que ela ouvia chamar, mas desta vez o chamado vinha do quarto que o menino ocupara quando ainda morava com ela. Aos tropeços, Madalena foi caminhando até lá, temerosa de mais uma vez ser um chamado em falso.

Ao abrir a porta do quarto do menino, que Madalena tinha preservado do mesmo modo como ele deixara quando fugiu daquela casa, ela viu, sem esboçar surpresa, Pedroamérico deitado sobre sua cama, com o corpo todo cheio de lesões e hematomas das surras que levara de sua mãe.

Madalena sentou-se na beira da cama, pousou a mão direita sobre a pele fria do rosto de Pedroamérico e, com voz serena, perguntou-lhe:

— Está tudo bem?

A mesma pergunta demasiadamente ampla que tinha evitado até então, por receio das muitas respostas que poderia contemplar.

Receio que se provou desnecessário, ao menos naquela ocasião, pois de Pedroamérico não recebeu resposta nenhuma.

A padaria

Elemento típico de muitas

(quiçá todas)

as padarias paulistanas, a catraca também recebia os clientes que visitavam a padaria do bairro para onde Dalva ia, todas as manhãs, a fim de comprar pão e, quando o dinheiro dava, alguns frios. Nunca ia sozinha: estava sempre acompanhada de sua filha, Teresa, uma menina de cinco anos de idade que, aproveitando-se de seu tamanho diminuto, passava por debaixo da catraca, burlando assim a contabilidade da padaria sobre o número de clientes que a frequentavam.

Numa manhã nublada de sábado, quando ainda poucos clientes estavam dentro da padaria, Teresa

(ou Teresinha, como alguns gostavam de chamá-la)

chegou sozinha e, como de hábito, passou por debaixo da catraca na entrada da padaria.

Depois de cruzar a pequena selva de pernas que separava a entrada do balcão, ela finalmente chegou até onde costumava ficar Seu João, o velho padeiro que, desde menino, trabalhava naquele estabelecimento que herdou de seu pai, que por sua vez herdara de seu pai, o avô de João.

Ao ver Teresinha se aproximar do balcão, Seu João perguntou à menina:

– Os mesmos 4 pãezinhos de sempre?

E então ouviu dela:

– Minha mãe está deitada na cama, sem conseguir se mexer nem falar.

Assustado, Seu João mandou avisar que:

– Ô Dirceu, olha aqui o balcão para mim que preciso ir ajudar Dona Dalva.

Pegou Teresinha pelo braço e saíram os dois pela mesma catraca que a menina havia passado por debaixo, há pouco, quando chegara à padaria.

Poucos minutos depois, ele e Teresinha chegaram à casa onde a menina morava mais sua mãe, Dona Dalva.

Esbaforido, Seu João entrou pela porta da frente sem bater e se deparou com Dalva sentada à mesa, toda ela generosamente arrumada para o café da manhã. Dalva vestia a camisola com que dormira à noite e tinha o rosto amarrotado de quem acabara de acordar e se levantar da cama, sem nem ao menos passar pelo toalete para se lavar ou mesmo pentear os cabelos.

Ainda assim, Seu João suspirou aliviado por ao menos ver que Dalva não estava deitada na cama sem conseguir se mexer, como Teresinha lhe dissera. Com um olhar ainda sonolento e lânguido, Dalva então lhe perguntou:

– Seu João, aceita um café?

Seu João bem quis dizer sim e aceitar o café que Dalva estava lhe oferecendo – há anos, ele nutria uma paixão platônica por ela. Mas declinou ao ver que a xícara do café trazia o logotipo de uma padaria concorrente, justo aquela cujo dono era um antigo e grande desafeto dele. Disse então:

– Obrigado, Dona Dalva.

E continuou:

– Só vim me certificar que a senhora estava bem.

E, por fim,

– Vou chegando.

Querendo dizer

­– Vou indo.

Em seguida, sentindo-se como que apunhalado no peito, levantou-se e partiu, sem nem ao menos se despedir da menina Teresa.

Ao retornar à sua padaria, pediu que trocassem a catraca da entrada por uma que não permitisse a ninguém passar por debaixo. Embora Dona Dalva nunca mais tenha ido à padaria dele, nem tampouco Teresinha, o faturamento daquele estabelecimento sofreu um incremento nada desprezível depois daquela simples medida de troca da catraca.

Para celebrar a conquista, Seu Dirceu mandou fabricar algumas xícaras com o logotipo da sua padaria. Em cada uma das centenas de xícaras que ele distribui aos seus clientes mais assíduos, como uma retribuição pela fidelidade, pode se ler, em letras douradas sobre um fundo branco, o nome da padaria dele, “Padaria Dona Dalva”, rodeado por um pãozinho em formato de coração.

A fofoca

Sua primeira tarefa do dia era varrer a calçada de tijolinhos que tinha em frente de sua casa. Em dias sem chuva, quando o sol acabara de despontar no horizonte, com o ar ainda trazendo o frescor que ganhara na noite anterior, Rita ia para a frente de sua casa, munida de uma vassoura, e punha-se a varrer a poeira sem fim que aqueles tijolinhos da calçada teimavam acumular. Além da poeira, sempre havia folhas, bitucas de cigarro e outras coisas que o povo jogava ali quando passava ou então que era trazido para a frente da casa dela pelo vento.

Mas Rita não cumpria essa rotina porque tinha alguma mania de limpeza ou mesmo uma simples preocupação com a aparência externa da casa: sua intenção ao ir tão cedo para aquela calçada era espionar o movimento das casas vizinhas logo pela manhã: ver se, dentre aqueles que saiam ou chegavam pela vizinhança, havia alguém que causasse estranheza, levantando suspeita de algum caso extraconjugal: possivelmente um amante ou uma amante. Isso ou qualquer outra fofoca digna desse nome.

Rita conhecia bem toda a vizinhança, sabia de cor quem era casado com quem, se tinham ou não filhos e quantos, quem eram os filhos, se namoravam ou não. Trazia em sua cabeça um verdadeiro dossiê sobre seus vizinhos. Aposentada, viúva e morando sozinha, esse era um momento muito importante, pois era nele que Rita recolhia material para ter assunto pelo resto do dia, que podia ser mais movimentado ou mais tedioso e parado, a depender do que Rita conseguia apurar ao varrer sua calçada, com um olho na vassoura e outro na vizinhança. Para ela, um dia bom era aquele em que ela conseguia apurar uma fofoca grande ou várias pequenas. Nem todo dia era assim. Naquela cidade pequena, embora falar da vida alheia fosse um hábito comum, a rotina pacata raramente trazia algo que pudesse servir de matéria prima a essas conversas.

Dia desses, logo cedinho como de hábito, Rita varria sua calçada quando o olho que ficava rondando a vizinhança, tal como um farol, observou o movimento de um homem estranho, aparentando uns cinquenta anos, que ela nunca vira antes, saindo da casa de Dona Jurema, que ficava logo do outro lado da rua. Assim como Rita, Jurema também era uma viúva e morava sozinha. Diferentemente de Rita, porém, Jurema nunca tinha abandonado o luto: vestia-se toda de preto da cabeça aos pés desde o falecimento de seu marido, há quase quinze anos.

Como quem não quer nada, Rita foi ter com o homem – precisava apurar melhor o que acabara de ver, pois quanto mais concretude tinha uma fofoca, melhor ela ficava. Fofocas com base apenas em impressões não rendiam muita conversa.

O homem mal acabara de tomar seu rumo pela calçada, logo após deixar a casa de Dona Jurema, quando foi abordado por Rita, que sem mais delongas lhe perguntou:

— O senhor é parente de Dona Jurema?

Se o homem já caminhava apreensivo, ter ficado repentinamente sob o olhar inquisitório de Rita e receber dela aquela pergunta tão inusitada, deixou-o ainda mais assustado. Só restou ao homem responder:

— Estava cuidando de um entupimento na pia da cozinha dela.

Resposta que, aos ouvidos experientes de Rita, soou totalmente falsa e nada convincente. Então ela insistiu:

— Mas a essa hora?

Sem disfarçar a impaciência, o homem não respondeu – simplesmente virou as costas e saiu caminhando numa quase corrida, a fim de fugir de Rita e de suas perguntas. Mesmo sem dizer a verdade, fosse qual fosse, com esse comportamento o homem havia dado a Rita material suficiente para uma boa fofoca. Na cabeça dela, Jurema não havia aguentado segurar mais o luto e se entregara à luxúria levando para casa um amante, justamente o homem que, sorrateiramente, havia saído pelo portão há pouco e que dissera a Rita que estava cuidando do conserto de um entupimento de pia.

Ao retornar para sua casa, Rita correu para o telefone e começou a ligar para as vizinhas a fim de comentar o que acabara de presenciar. Passou a manhã toda a fazer ligações. Ligou para Dona Helena, Dona Fátima, as Marias – a mulher do médico e, também, a outra, mulher do dentista –, Dona Teresa, Dona Ermengarda, Dona Marta, entre outras. Para todas elas, narrou a mesma história, recebendo, do outro lado da linha, expressões de espanto e incredulidade. Naquela cidade, Jurema era tida como mulher correta, direita. Ninguém ali podia conceber que ela pudesse ter um amante, ainda mais sem ter tido abandonado o luto.

Atendendo a pedidos para melhor apurar a fofoca, Rita foi visitar Jurema na tarde daquele dia. Fritou uns bolinhos de chuva e, levando-os em uma tigela coberta com um guardanapo branco, chegou a casa de Jurema e chamou:

— Dona Jurema.

A casa de Jurema era uma típica casa de viúva: com um jardim mal cuidado na frente, sem muita decoração e com a tinta da fachada já bastante desgastada.

Na segunda vez que Rita chamou:

— Jurema.

Dona Jurema veio atender, toda vestida de preto, com seus cabelos compridos e brancos, soltos, conferindo-lhe a aparência de uma feiticeira de contos de fada.

Ao ver que Rita trazia os bolinhos de chuva que tanto gostava, Jurema convidou-a para entrar e tomar um café:

— Ô, Dona Rita. Quanto tempo. Entre, vamos tomar um café.

Faltou dizer:

— E por o papo em dia.     

Mas essa mensagem era desnecessária: estava sempre implícita em qualquer encontro que contasse com a presença de Rita.

Enquanto Jurema passava um café novo, bem quentinho, Rita colocou o cesto de bolinhos de chuva sobre uma mesa forrada com uma toalha de fuxicos. Sentou-se em uma das cadeiras de madeira que estavam ao redor da mesa e ficou a observar Jurema preparar o café. Quando Jurema terminou o preparo e veio servir o café a Rita, logo ouviu desta:

— Ô, Dona Jurema, fiquei preocupada hoje de manhã.

Intrigada, Jurema quis saber o porquê:

— O que aconteceu, Rita?

No que Rita respondeu, visivelmente excitada pela adrenalina daquele momento:

— Logo pela manhã, enquanto eu varria a calçada em frente de casa, vi um homem estranho saindo daqui de seu portão.

E, caprichando na atuação, continuou:

— Nunca o tinha visto aqui na cidade e, por isso, fiquei preocupada com a senhora.

Falseando a impressão que tivera a respeito daquele encontro com o homem pela manhã, completou:

— Podia ser um assaltante, sei lá. Deus me livre!

Jurema ouviu o relato de Rita e, sabendo da fama de fofoqueira da mulher, não deu muita trela. Limitou-se a responder:

— Vixi Maria, Rita. Não sei de homem nenhum. Tem certeza que ele estava aqui?

No que Rita respondeu:

— Absoluta.

Reforçando com um aceno positivo da cabeça.

E então Jurema concluiu:

— Deve ter sido sua imaginação. Como você sabe, desde que João faleceu, eu não larguei o luto. Jamais receberia outro homem em casa.

E então reforçou:

— Isso seria uma afronta à memória de meu primeiro, grande e único amor.

Percebendo que Jurema não ia ceder, Rita foi entretendo ela com outros assuntos até que, num momento de distração de Jurema, Rita foi até o quarto dela e viu, jogada sobre a cama toda desarrumada, uma cueca samba canção. Diante daquilo, Rita deu-se por satisfeita: já tinha material mais do que suficiente, em sua cabeça, para alimentar a fofoca que pretendia levar ao conhecimento da cidade toda.

A fofoca depois ganhou proporção tão grande que, ao final daquele dia, chegou ao conhecimento de Jurema, que, ao saber do que Rita espalhava a seu respeito pela cidade, foi a casa dela tomar satisfações.

Ao chegar a casa de Rita, bateu palmas e chamou:

— Dona Rita!

Evitando dizer simplesmente Rita, pois queria deixar clara sua irritação.

Depois de chamar maus umas duas vezes, Rita veio finalmente atender ao chamado. Abriu a porta de casa e, de camisola, foi até o portão receber Jurema.

— A que devo essa honra?

Perguntou Rita, no que Jurema de pronto respondeu sacando um revólver de dentro do sutiã e desferindo um tiro à queima roupa bem no meio da testa flácida de Rita, que então caiu para trás tendo metade de seus miolos espalhados para fora da cabeça. No silêncio daquela tarde quente e modorrenta, o som do tiro acabou sendo ouvido pela cidade toda. Como ninguém ali nunca ouvira um barulho como aquele, julgaram ser tudo menos um tiro. Ninguém se importou.

Jurema colocou o revólver de volta no sutiã, por entre os peitos, e tomou o rumo de sua casa, deixando o corpo de Rita jogado ali, sem vida, com a cabeça toda explodida pelo tiro que acabara de levar.

No dia seguinte, Dona Teresa, uma das vizinhas para a qual Rita contara a respeito do misterioso homem que havia visto deixando a casa de Jurema, passou pela frente da casa de Rita e, ao ver seu corpo ali jogado, com a cabeça estraçalhada, soltou um grito de pavor, grito que, de tão alto, foi ouvido pela cidade toda. Poucos segundos depois, uma multidão a consolava enquanto, com espanto e terror, viam o corpo morto de Rita jogado na frente da casa.

Não demorou a surgirem boatos de que Rita pudesse ter sido morta por aquele homem que ela vira sair da casa de Jurema. Afinal, que homem era aquele? Perguntavam-se sem resposta.

A fonte mais confiável de esclarecimento parecia ser Jurema, e foi para a casa dela que a multidão seguiu logo depois que a ambulância recolheu o corpo de Rita. Bastava cruzar a rua.

Lá chegando, Dona Helena, a mulher que assumira a liderança do grupo, chamou:

— Dona Jurema.

E, não obtendo resposta, chamou de novo:

— Dona Jurema.

E mais uma vez, agora mais alto:

— Dona Jurema!

Mas Jurema não veio atender. De fato, não estava ali. Tinha ido ao mercado comprar mantimentos para a semana. Ao voltar, deparou-se com a multidão ainda aglomerada em frente a sua casa.

Dona Helena, nem nem esperou Jurema chegar. Foi até ela para oferecer ajuda com as sacolas do mercado. Enquanto caminhavam em direção à multidão, perguntou:

— Está sabendo que Dona Rita foi assassinada a sangue frio na frente da casa dela?

Fingindo nada saber a respeito, Jurema respondeu:

­­— Não pode ser! Jura?

E continuou:

— Vai ver foi aquele homem que vi saindo da casa dela hoje pela manhã. Mas na hora pensei que Rita pudesse estar recebendo uma visita qualquer, não alguém que fosse lhe retirar a vida.

De repente, na cabeça de Dona Helena, Dona Fátima, as Marias – a mulher do médico e, também, a outra, mulher do dentista –, Dona Teresa, Dona Ermengarda, Dona Marta e todas as outras pessoas que integravam a multidão, tudo passou a fazer mais sentido: Rita havia sido morta pelo seu próprio amante. O mesmo homem que, no dia anterior, ela dissera ter visto visitando Jurema.

— Que história maluca!

— Que absurdo!

— Deus nos livre!

Exclamaram por entre a multidão. Depois se dispersaram e foram para suas respectivas casas. A partir dali, como as águas de um lago que voltam a ser plácidas pouco depois da queda de uma pedra, a vida voltaria ao seu estado de suspensão naquela pequena cidade.

A calmaria só não atingiu Jurema, pois, sem ter quem mais a vigiasse, como Rita fazia, passou a receber seu amante em casa com mais frequência. Desde então, só veste luto para sair. Dentro de casa, principalmente quando acompanhada de seu amante, anda praticamente nua.

Asas sem ninho

Nunca tinha estado em meio a uma multidão como aquela, com todo mundo vestindo fantasias exuberantes ornadas com plumas, lantejoulas, muito dourado e prateado, caminhando com passos ritmados ao som de uma potente bateria.

Era a primeira vez de Manuela em um desfile de escola de samba. Sentia-se inebriada pela alegria que a circundava, embora não estivesse ali para desfilar, mas a trabalho: integrava a equipe de garis encarregada da limpeza da avenida. Era a única mulher em um grupo de trinta homens, todos, assim como ela, trajando o uniforme cor de laranja da companhia de limpeza para a qual trabalhavam.

Da arquibancada, o público que acompanhava o desfile julgava ver ali, naquele grupo de garis, mais uma ala da escola de samba, cujo samba enredo homenageava reis e rainhas de tempos passados.

Com a mesma maestria com que, com a vassoura, varria a sujeira deixada pelos sambistas na avenida, Manuela sambava. No gingar de suas pernas, ritmadas pela bateria, brotava uma enorme alegria, que crescia e desabrochava feito flor.

Ao final do desfile daquela escola de samba, foram para ela os aplausos do público, que ali então elegia uma nova rainha do samba.

Quando o dia amanheceu, findou o expediente de trabalho dela e de seus colegas garis. Cada um a seu modo, voltaram para suas respectivas casas. Estavam exaustos. Manuela ficou. Foi remexer, por entre o lixo, restos de fantasias deixados pelos foliões. Encontrou de tudo, mas depois de uma seleção com base na memória da música que mais havia lhe comovido naquela noite, selecionou um par de asas angelicais, puídas pelo uso, e uma coroa de lamê dourado. Vestiu as asas nas costas e pôs a coroa sobre a cabeça. E foi ornamentada assim, que ela seguiu para sua casa, na distante periferia da cidade, onde, ao chegar, ainda teve que cozinhar o café da manhã para seus irmãos e lavar a louça antes de poder se deitar e descansar. Fez tudo isso sem tirar as asas das costas e a coroa da cabeça. Dormiu então o dia inteiro, indo acordar somente quando o despertador tocou, avisando da chegada da hora de voltar ao trabalho, para onde seguiu de ônibus, ainda trajando sua fantasia da noite anterior. Fantasia que, ao chegar ao trabalho, pediram-lhe para retirar. Por regra do empregador, os funcionários só podiam trabalhar vestindo o uniforme laranja que trazia, no peito, o logotipo da empresa.

Resignada, ela pegou as asas e a coroa e guardou em um armário no vestiário feminino, que ela, sendo a única mulher empregada, não dividia com mais ninguém. Enquanto seus colegas de trabalho partiam em direção à avenida onde, mais uma vez, passariam a noite a limpar a sujeira deixada após a passagem das escolas de samba, Manuela ficou ali, sozinha, no vestiário. De repente, não viu mais sentido naquela alegria que, como um fogo fátuo, tão rapidamente viria quanto depois desapareceria. Asas sem ninho. Mas se isso não for o Carnaval, então o que seria? Refletiu.

Movimentada por essa reflexão, tomou coragem, levantou-se e acompanhou seus colegas de trabalho para a avenida, a fim de cumprir seu ofício de varrer e limpar.

Varreu, limpou, mas também sambou. Ao final dos desfiles de cada escola de samba, era sempre ela a mais aplaudida. Chegou até a dar entrevista para uma emissora de televisão. Na imagem transmitida a tantos lares, pôde-se ver Manuela no seu traje laranja da empresa de limpeza, trazendo no alto da cabeça uma coroa de lamê dourado e, penduradas nas costas, asas de penas puídas, ambas peças que ela recolhera do lixo no dia anterior. Contrariando a política da empresa, ela havia cumprido sua jornada de trabalho vestindo sua fantasia de restos de lixo. Tão dura era sua realidade de vida, que mesmo a mais precária fantasia, como era aquela que Manuela vestia, conseguia fazê-la mais suportável de viver. Afinal, pensou com alegria, não é para isso mesmo que serve o Carnaval?

Luiza e Manuel

Casados há mais de trinta anos, chegava a ser difícil imaginar Luiza sem Manuel e vice-versa, tão grudados um ao outro ambos viviam.

Seu único filho, João, já não morava mais com os pais, de modo que tinham a casa só para si mesmos. Livres, passavam os dias ali dentro, pelados, a cuidar dos afazeres domésticos, que não eram muitos: a casa era pequena e não exigia muita manutenção. O tempo livre, passavam a assistir televisão ou lendo, tudo muito prosaico.

Só quando precisavam sair de casa ou quando recebiam alguma visita, duas situações muito raras, é que vestiam roupas. Fora isso, estando frio ou calor, andavam nus.

Era uma manhã nublada, dessas em que o céu parece estar de mau humor, ranzinza, de tão fechado que está seu semblante. Luiza acabara de por a mesa para o café da manhã e foi chamar Manuel, que àquela hora ainda estava no banheiro, tomando seu banho matinal.

— Manuel, o café está pronto.

Ela avisou.

— Vem.

Ela chamou, sem muito entusiasmo.

Mas Manuel demorou a responder. Lá do banheiro, ouvia-se apenas a água do chuveiro a cair dentro do box.

— Manuel?

Ela perguntou, já esboçando um semblante de preocupação. Luiza foi então em direção ao banheiro e, lá chegando, abriu a porta e entrou sem bater, deparando-se com Manuel, não tomando banho como o chuveiro ligado dava a impressão de estar, mas sentado sobre o vaso sanitário a olhar o seu celular.

— O que você está fazendo?

Ela quis saber.

Manuel, sorrindo, mostrou a ela uma foto que estava guardada no celular, uma foto antiga que ele encontrara em seus arquivos de imagens.

— Olhe isso.

Ele disse.

Luiza apertou os olhos para poder enxergar o que Manuel mostrava na tela de seu celular. A foto era do casamento do casal, uma foto antiga, portanto, na qual ele estava vestindo um fraque com duas longas aberturas traseiras, à semelhança de asas de gafanhoto; e ela com um vestido de noiva com muitas camadas de véus e tules brancos, parecido com uma rosa gigante, os dois de mãos dadas diante da porta da igreja, enquanto tentavam se proteger de uma chuva de arroz que caía sobre suas cabeças, lançada pelos convidados que os esperavam ali fora, logo depois de terminada a cerimônia matrimonial.

Na foto, o então jovem Manuel e uma Luiza ainda na flor da idade sorriam para um futuro que, no instante capturado pela imagem, era uma terra virgem, como um vasto descampado prestes a ser conquistado e explorado.

— Parece que foi ontem.

Disse Manuel, sem tirar os olhos da foto, no que Luiza concordou com um meneio da cabeça. E, por alguns instantes, pareceu-lhes mesmo que tinha sido ontem aquele momento retratado naquela imagem de quase trinta anos atrás, guardada no celular de Manuel. Era como se os anos de casados, que viveram juntos, não fossem nada senão as últimas vinte e quatro horas que os separavam da manhã do dia anterior.

– Como o tempo passa rápido.

Disse Luiza, esboçando um olhar algo cansado.

– Passa mesmo.

Confirmou Manuel, enquanto fechava a tela do celular e se levantava.

Ao ficar em pé, Manuel pôde olhar-se no espelho do banheiro e, por sobre a superfície embaçada pelo vapor do chuveiro, viu a sua imagem refletida junto a de Luiza. Diferentemente da foto do casamento, em que estavam vestidos a rigor, ali diante do espelho, ambos estavam nus, seguindo hábito cultivado em anos recentes, depois que seu filho deixara a casa dos pais.

Como uma metáfora do tempo que se esvai, o chuveiro continuava ligado despejando litros e litros de água diretamente sobre o ralo dentro do box do banheiro.

(como o tempo passa rápido)

— Desliga esse chuveiro, Manuel.

Ordenou Luiza.

— A gente não é sócio da companhia de água.

Justificou.

Manuel fechou o chuveiro, fazendo cessar o desperdício de água, e então seguiram para a cozinha onde tomaram seu café da manhã, como sempre faziam, fiéis à rotina dos dias que seguiam a passos lentos, surpreendendo-os, vez em quando ou quase sempre, com a sensação de que o tempo não passava, sentimento que parecia ainda mais marcante em dias nublados como aquele que então apenas se iniciava, certamente um longo dia.

Carolina

Bastava fevereiro se aproximar para que seu estado de humor, em geral sujeito a poucas variações, apático mesmo, sofresse um abalo, baixando até quase o ponto de uma verdadeira melancolia. Tal ocorria porque, junto com fevereiro, tradicionalmente também chegava o Carnaval.

E, para Carolina, os Carnavais eram datas tristes como, para muitos, são os Natais e os aniversários da morte de entes queridos: ao longo dos anos, ela sofreu as maiores perdas de sua vida sempre nesse feriado: primeiro foram seus pais; dois anos depois, seu primeiro marido, e, anos mais tarde, foi-se o segundo.

Aos 73 anos, viúva por duas vezes, sem filhos, sozinha, ela passa os dias do Carnaval a olhar, do alto da diminuta janela de sua quitinete, os bloquinhos de foliões que desfilam lá na rua, alguns andares abaixo daquele de sua morada.

Gosta de dizer para si mesma, em pensamento, que no seu tempo de moça jovem, tudo era muito diferente e melhor.

De fato, naqueles idos anos, a lei de então não obrigava ninguém a ser feliz, como faz a lei atual, cuja vigilância, fazendo uso de táticas de uma blitz policial, cresce exponencialmente nessa época do ano. Não por outra razão, para muitos o Carnaval é uma época tão obrigatoriamente festiva e alegre: estão apenas a cumprir a lei.

Receosa de ver-se privada de sua liberdade, de ser presa em flagrante por desobediência a essa lei, Carolina prefere então passar esses dias a salvo na segurança das quatro paredes de sua quitinete, onde ao menos é livre para sentir-se triste.

Está feliz assim.

A estação de trem

Desativada há anos, a antiga estação de trem ficava às margens da cidade, numa periferia distante situada para além do cemitério municipal. As suas plataformas, que outrora foram repletas de gente a chegar e partir, encontram-se vazias. Ao invés do apito do trem e do burburinho dos passageiros, ouve-se apenas o sopro do vento, que, em tom de sussurro e sob testemunho das aranhas que habitam os cantos do telhado, diz aos poucos desavisados que por ali aparecem:

— Perigo.

sobre quão perigoso é estar ali, dado que o local, bastante degradado após anos de abandono, não oferece segurança nenhuma àqueles que o visitam. A poeira, os buracos, o mato alto e a água suja empoçada criam ambiente propício para cobras, aranhas, ratos e pessoas desabrigadas.

Um dessas pessoas é uma mulher de nome Isabel, que vive ali numa das plataformas, sob uma barraca precária de panos sujos, desde quando a estação foi desativada.

Há 10 anos, quando o derradeiro trem dali partiu, levando seu único filho dentro do último vagão, aquele destinado à segunda classe, ela, em pé sobre a plataforma, ficou a acenar com um lenço que trazia na cabeça, o mesmo com que também enxugava as lágrimas que, em profusão, desciam pelos cantos de seus olhos. O filho partia para tentar a vida em outra cidade, maior e distante, com a promessa de que

— Um dia eu volto, mãe.

um dia voltaria.

Desde então, todavia, nunca mais voltou.

Refém da esperança de que ele um dia cumpriria sua palavra de voltar, Isabel permaneceu ali esperando por todos esses anos. Para isso, largou tudo para trás: casa, marido, pai, mãe, irmãos. Ninguém entendia o porquê, mas para ela isso não importava: ficava naquela estação de trem como se estivesse ali condenada à prisão.

Isabel vivia à base dos restos de alimentos que recolhia do lixo deixado ao redor daquele lugar pelo serviço de coleta da cidade. Para beber, ia até o riacho que passava ao lado da estrada de terra ao fundo da estação de trem. Fazia as suas necessidades onde e quando sua vontade ditava.

Abandonada pelos pais quando ainda era uma criança de pouco mais de 4 anos, Isabel foi criada por sua avó, seguindo uma criação muito simples, como eram aquelas que se davam às crianças, pobres como ela, em sua época, na cidade onde nasceu.

Quanto teve Lourenço, seu primeiro e único filho, jurou a si mesma que nunca o abandonaria, como fora abandonada por seus pais. Pena, para ela, que Lourenço não fizera a mesma promessa em relação à própria mãe.

Às vezes, quando, à maneira dos passageiros de outrora, o vento cruza, apressado, as plataformas da velha estação, é possível ouvir Isabel chorando baixinho. Em meio ao choro, ela reza: tem fé de que um dia seu filho vai voltar.

Certa noite, uma luz, forte como a de um farol, irrompeu o breu que envolvia a estação, seguindo a linha do trem. Vinha de longe e, rapidamente, foi chegando cada vez mais e mais perto. Ao presenciar aquela cena, Isabel sentiu seus olhos serem injetados por lágrimas, enquanto seu coração batia em disparada: para ela, aquela luz era a da locomotiva do trem que trazia seu filho de volta.

À medida que foi se aproximando, a luz foi se revelando não como a luz da locomotiva do trem, como pensava Isabel, mas a de um carro alegórico que trazia, em cima de sua carroceria, um trem feito de madeira e isopor. Da janela daquele trem de fantasia, acenava um homem vestido como um maquinista. A cada vez que ele puxava a cordinha da cabine da locomotiva, ouvia-se um apito alto e agudo.

Junto com o trem, chegou o som de uma potente bateria de escola de samba, que por sua vez puxava, à maneira do Flautista de Hamelin, um cordão de centenas de sambistas, todos fantasiados de multicoloridos maquinistas. Seguindo o ritmo compassado da bateria, carro alegórico e sambistas avançavam na direção de Isabel, que, como se estivesse hipnotizada, acompanhava aquilo tudo sem mexer um músculo, com os olhos fixos e brilhantes como de um gato que, ao cruzar a estrada à noite, é surpreendido pelos faróis de um carro.

Depois de anos de tristeza e resignação, tudo aquilo lhe parecia tão estranho, mas ainda assim tão espetacularmente belo.

Minutos depois, fez-se novamente silêncio na estação de trem abandonada: o carro alegórico e os sambistas já iam longe, bem distante dali, deixando para trás muito lixo, não do tipo orgânico e fétido em cujo meio Isabel, nos últimos anos, acostumara-se a viver, mas sim restos de festa e alegria: serpentinas, confetes, plumas e restos de paetês, cujas cores e brilhos eram então realçados pelas luzes, tépidas mas ainda assim vibrantes, que o sol da manhã lançava sobre a antiga estação de trem.

Vendo tudo aquilo espalhado pela estação e pelos trilhos do trem, Isabel se lembrou que, quando menino, Lourenço, festeiro como ele só, gostava de ir às matinês de Carnaval, vestindo fantasias diversas, que variavam conforme o tema da festa ou mesmo seu desejo de se destacar, mas sua preferida era justamente a de maquinista de trem. Ao voltar dos bailes de Carnaval, ele trazia grudado ao corpo suado restos de serpentinas, confetes, plumas e paetês similares àqueles que Isabel então via, ao seu redor, jogados ao chão. De repente, seu olhar para aqueles restos de festa e alegria mudou, e ela passou a ver ali a realização do tão aguardado retorno de seu filho que partira há 10 anos. No fundo, sabia que não era verdade que ele tinha voltado, mas se permitiu, ao menos por um instante, breve como o apito de um trem, deixar-se levar por aquela fantasia, afinal, era Carnaval.

a mãe

A mesa de jantar, no centro da sala ao lado da cozinha, costumava receber a família para as refeições do dia a dia: pai, mãe e três filhos sentavam-se ao seu redor, e ali tomavam os cafés da manhã, almoçavam e jantavam.

Depois de preparar as refeições, a mãe punha a mesa estendendo sobre ela uma toalha com motivos florais, sobre a qual dispunha os pratos, os talheres e os guardanapos. Finalizava a arrumação com a colocação dos alimentos.

Depois de terminarem de comer, saíam todos da mesa para cuidar de outros assuntos, enquanto a mãe ficava ali, afinal era ela a encarregada única de terminar de lavar a louça, secar e guardar, num ciclo que se repetia ao menos três vezes ao dia, todos os dias da semana. Além de cuidar das refeições, era a mãe que cuidava da limpeza da casa, das roupas, das compras do mês, da educação dos filhos, cumprindo assim uma jornada de trabalho que não tinha intervalo. Era a primeira a acordar e a última a ir dormir.

Com o passar dos anos, os filhos foram crescendo e, aos poucos, indo embora da casa dos pais. Formaram-se, casaram-se e se foram. A casa foi ficando vazia.

Quando o pai faleceu, a mãe ficou morando sozinha naquela casa que, antes tão pequena, parecia ter se tornado maior com o tempo, fazendo ainda mais presentes as ausências que a vida e a morte trouxeram ao longo dos anos.

Mesmo sem ter ninguém mais a quem cuidar senão ela mesma, a mãe continua a agir como se a casa estivesse cheia, como de fato fora outrora. Prepara as refeições, põe a mesa, lava a louça, limpa a casa, lava as roupas, faz as compras do mês, procura se manter ocupada.

Todavia, sem ter mais a quem servir, não vê sentido para sua vida.

A vida é um sopro

Vistas de longe, as luzes da cidade pareciam estrelas tristes, com seu brilho amarelado como os sorrisos das gentes com quem, todos os dias, Ana cruzava pelos corredores do escritório onde trabalhava como secretária.

Era madrugada de domingo para segunda, quando o ônibus em que ela estava, depois de fazer o desvio da estrada principal, tomou a estrada secundária que daria direto na cidade. Ana voltava das férias em sua cidade natal e, na manhã daquele dia, voltaria ao trabalho. Embora tivesse ficado fora por quase um mês, parecia-lhe que tudo passara tão rápido.

Quando criança, sua mãe sempre lhe dizia:

— A vida é um sopro.

Volta e meia, para ilustrar, dizia isso e, em seguida, soprava uma flor de dente-de-leão que colhera no quintal, fazendo-a se dissolver no vento.

— Está vendo?

Perguntava a mãe, enquanto cada florzinha do dente-de-leão voava para um lugar diferente, tomando os rumos mais distintos.

Para sua mãe, de fato, a vida tinha sido breve como um sopro: morreu ainda jovem, quando Ana não tinha mais que 5 anos de idade. Órfã da mãe, ela acabou sendo criada por seu pai, Orlando. Foi graças a ele que ela conseguira estudar e ter, enfim, condições de deixar a sua cidade natal e seguir para a cidade grande, a fim de buscar uma vida melhor. A mesma cidade para a qual ela voltava depois de ficar fora de férias por quase um mês.

Muitos anos atrás, quando, ainda jovem, esperava o ônibus na rodoviária que a levaria da sua cidade natal para a cidade grande, foi-lhe inevitável comparar aquela rodoviária, com toda a gente que estava ali esperando ônibus para vários destinos, com uma flor de dente-de-leão, que a partir de um sopro, lança suas florzinhas ao vento para seguirem, cada uma delas, um destino. Também aquelas pessoas seguiriam por destinos variados, não só de viagem, mas de vida mesmo. Muitos que ali estavam, mesmo morando naquela cidade tão pequena, ela nunca tinha visto. Outros, depois de embarcarem, ela jamais veria de novo.

Ao enfim chegar a seu apartamento, onde vivia sozinha, Ana sentou-se por alguns instantes no sofá, enquanto olhava ao redor os móveis e objetos que há dias não via. Tudo era tão familiar e estranho ao mesmo tempo.

Pouco depois, algumas horas apenas, Ana teria que estar a caminho do trabalho, onde novamente encararia os seus colegas com seus sorrisos amarelos, virem na direção dela e a cumprimentarem pelo retorno dizendo:

— Bom retorno.

Depois de perguntarem, só por perguntar:

— Como foi de férias?

Tudo dito por entre cumprimentos de mãos débeis e beijos à distância. Às vezes, nem isso.

Ana não aguentava mais trabalhar naquele lugar, mas infelizmente, em sua idade, de quase se aposentar, conseguir um outro trabalho, um trabalho qualquer que fosse, era algo quase impossível.

Tentando reunir forças e coragem, ela tomou um banho, se trocou e partiu, indo em direção ao ponto do ônibus que a levaria até o escritório onde trabalhava, no centro.

Ao chegar lá, os sorrisos amarelos, que então lhe pareceram ainda mais amarelos, vieram ao seu encontro para cumprimentá-la dizendo:

— Bom retorno.

Depois de perguntarem, fingindo interesse:

— Como foi de férias?

Apesar de ser o primeiro dia de trabalho, após quase trinta dias de férias, Ana sentia-se muito cansada, afinal, viajara de ônibus a madrugada toda sem conseguir dormir direito. Mal havia ocupado seu lugar na mesa de trabalho, foi chamada a comparecer à sala da diretoria. Fez um muxoxo de chateação e seguiu para onde havia sido chamada. Lá, depois de cumprimentos protocolares, ouviu de seu chefe que, devido a uma reorganização interna, ele não mais a via como integrante da equipe.

— Não há espaço para você nessa nova estrutura.

Friamente, entregou-lhe um papel para ela assinar e, depois que ela assinou, despediu-se agradecendo pelos anos de serviços prestados.

Ana trabalhara naquela empresa por quase 30 anos. Não só ela, mas também muitos dos sorrisos amarelos foram desligados naquele mesmo dia.

Enquanto esperava pelo ônibus que a levaria de volta para casa, foi-lhe inevitável lembrar-se, sob lágrimas, de Seu Orlando, seu pai, a lhe dizer:

— Nem tudo são flores nesta vida.

ou

— A vida é como uma rosa: bela e perfumada, mas ao mesmo tempo cheia de espinhos.

Vendo toda aquela gente ali ao redor dela, no ponto de ônibus, gente que ela nunca vira e, muito provavelmente, não mais veria depois de tomarem seus rumos, lembrou-se da flor de dente-de-leão a espalhar suas florzinhas pelo mundo quando sua mãe a soprava.

( — A vida é um sopro)

Lembrou-se também do dia em que partira de sua cidade natal para vir à cidade grande; lembrou-se dos quase trinta anos que passara trabalhando no escritório que acabara de a demitir.

Enquanto sua mente vagava por essas memórias e lágrimas escorriam de seus olhos, chegou o ônibus que ela esperava. Por sorte, conseguiu um assento livre. Sentou-se ali logo na frente do veículo, de onde, olhando pela janela, acompanhava as cenas que se desenrolavam pelas ruas por onde o ônibus passava. Ruas que, por anos, ela cruzara, indo e voltando do trabalho. Tudo lhe parecia tão familiar. Tudo mesmo, exceto por uma multidão de bailarinas metidas em vestidos de tule rosa que, à maneira militar, marchavam sobre as pontas dos pés por uma rua, carregando em seus braços, cada uma delas, uma arma de grosso calibre.

De ti sem mim

Ela julgava que seu casamento deveria ser tido como bem-sucedido, pois, passados 20 anos desde a cerimônia em que ela, diante do padre, dissera sim a Lourenço, e este dissera sim a ela, o casal conseguiu adquirir um apartamento próprio, nada muito grande, apenas o suficiente para acomodá-los mais a família de maneira confortável; tiveram dois filhos, que já estão quase saindo da “saia da mãe”, como se diz; puderam construir, cada um deles, sua carreira própria: ele é advogado, ela é manicure e trabalha em um salão de beleza. Não raro, dos salários de ambos sobra algo ora para economia, ora para alguma extravagância; cada um tem seu carro próprio – o dela foi ele quem deu; conseguem viajar algumas vezes por ano, sem muito sacrifício financeiro, inclusive para o exterior. O casamento é abençoado e estimado pelos pais dele e dela, gente conservadora e temente a Deus. Tudo, enfim, parece perfeito, mas apenas quando visto de longe.

De dentro, sob os olhos de Catarina, a esposa, a relação com Lourenço parece uma sessão lenta de tortura. Ela não se lembra quando foi a última vez em que fizeram amor; de fato, mal se lembra o que é isso. Para piorar, desconfia que ele tenha uma amante (quiçá várias). Já pensou em contratar até um detetive para investigar, mas diante do medo do que poderia descobrir, prefere conceder-lhe o benefício da dúvida. Afinal, um casamento de 20 anos não se joga pela janela por qualquer coisa. Ele é homem, reflete, e homens são assim mesmo. Além disso, o que diriam seus pais, seus sogros, seus filhos, suas colegas de trabalho, a vizinha de porta do apartamento, todo o condomínio, se acaso descobrissem que ela tem sido traída pelo marido? Não descarta a hipótese de que, mesmo inocente, venha a ser julgada e condenada como se culpada fosse. Foi você quem procurou, ou você não fez por merecê-lo, diriam apontando o dedo para seu nariz. Seria queimada no inquisitório tribunal da família e amigos. Há dias, esses pensamentos a perseguem e, para dormir, tem apelado para substâncias vendidas apenas com prescrição médica, que consegue facilmente por meio de uma amiga pediatra. Começou ingerindo algumas poucas gotinhas; hoje, quase engole um frasco por semana e, ainda assim, dorme mal.

O desgaste físico e emocional já se faz visível em seu rosto, cabelos e corpo: olheiras, fios ressecados e sobrepeso. Tudo isso só vem piorar a sua fraca autoestima fazendo-a cair ao chão. Chão sobre o qual caminha quase se arrastando.

Quando ele chega em casa depois do trabalho, ela vai ao encontro dele ali mesmo na porta para dar-lhe as boas-vindas com um beijo que tenta acertar a boca, mas que acaba na bochecha dele após ele desviar o rosto. Catarina investiga com o olhar e o nariz se ele traz no corpo ou na roupa alguma pista de traição: uma marca de batom no rosto, por exemplo, ou um perfume feminino a envolver seu pescoço. Está paranóica. Cansado e visivelmente incomodado com aquela atenção toda da mulher que ele atura todos os dias, há anos, ele mal a cumprimenta e vai se sentar no sofá onde, com um copo de whisky na mão passa algumas horas sentado a assistir séries na televisão.

Quando o sono dela chega, enquanto ele segue na sala assistindo televisão por mais algum tempo, ela vai dormir sozinha e, na cama, fica virando de um lado para o outro até conseguir cair no sono, por efeito dos remédios. Mesmo dormindo, o desejo continua vivo dentro dela, o que a faz sonhar diversas vezes o mesmo sonho: ela está na cama, uma cama qualquer que não a dela, e faz amor com um outro homem, não aquele com quem está casada. Acorda suada e assustada. Naquela noite, depois de sonhar que fazia amor com um colega de trabalho, um cara bem mais novo que ela, quase a idade de seus filhos, ela acordou gritando o nome dele, do cara, e com isso acordou Lourenço. Sentindo-se traído, o marido quis saber com quem ela anda saindo. Ela diz que foi apenas um sonho. Ele não acredita. Ela jura e chora. Ele dá de ombros e vira as costas. Brigam a noite toda. Mal o dia amanhece, ele vai embora, levando consigo tudo que pode e xingando alto, para deleite dos vizinhos do prédio. Em posição fetal sobre a cama, ela passa aquele dia todo chorando. Ao se levantar, já bem tarde naquele dia, vê um envelope deixado à frente da soleira da porta da sala, com seu nome escrito. Corre até ele na esperança de que seja alguma mensagem de Lourenço. Sim, é a caligrafia dele. Ela abre o envelope sem muito cuidado para não rasgá-lo e lê a mensagem que o marido lhe escrevera. Em algumas poucas linhas, ele diz a ela o quanto ele se sentiu mal com a traição e que buscará na justiça todos os seus direitos sobre o patrimônio do casal. Incrédula, depois de ler a mensagem, ela começa a rir histericamente. E foi rindo assim, que ela foi resgatada, horas depois, pelos paramédicos, e levada de ambulância até o hospital. Há dias, está internada ali sob acompanhamento de uma médica especializada. Sobre a parede atrás da cabeceira de sua cama, onde há dias ela segue deitada e medicada, há um crucifixo com a figura do Nazareno nu e ensanguentado. Catarina passa o dia todo a observar aquela figura de madeira, pensando em como seria bom se ele fosse de carne e osso, descesse daquela cruz, se deitasse ao lado dela e, ali mesmo naquela cama de hospital, a possuísse.

Copo vazio

Na feira que acontecia todas as quintas, ocupando três quarteirões da rua principal do bairro, sempre havia muito burburinho de pessoas que iam até ali para comprar alimentos frescos, ou mesmo para simplesmente ver o movimento e fofocar. Quem quisesse encontrar preços mais em conta, chegava mais tarde, lá pela hora do almoço, horário a partir do qual os feirantes baixavam os preços na tentativa de zerar os produtos das barracas. Nem sempre funcionava para eles, mas os clientes comemoravam os preços mais baixos, ainda que, por outro lado, a variedade de produtos não fosse a mesma que aquela do início da feira.

Maria Helena gostava de ir à feira bem cedo para dar uma geral nos produtos que estavam à venda, ver o que ela queria levar, mas de fato só levava mais tarde, na hora da xepa, quando os feirantes baixavam os preços, tornando-os mais condizentes com o dinheiro que ela recebia mensalmente da aposentadoria. Vez ou outra, não sempre, sobrava para alguma extravagância como, por exemplo, comer um pastel e tomar um caldo de cana. Mais comum era ela voltar para casa com a sacola preenchida apenas pela metade.

De seu falecido marido, que trabalhara a vida toda na construção civil, um homem rude, porém de modos muito corretos, sempre ouvia:

– Há que se ver sempre pela perspectiva do meio cheio.

Referindo-se a situações da vida em que, metaforicamente ou não, o copo encontrava-se preenchido apenas pela metade.

Era o jeito dele de cultivar algum otimismo, mesmo diante de tantas dificuldades. Às vezes funcionava, como quando ele, ao se deparar com o diagnóstico de uma doença terminal, que, segundo o médico, o levaria a óbito em, no máximo, dois meses, olhou para Maria Helena e, sorrindo, disse-lhe:

– Pense pelo lado positivo.

E, diante do olhar incrédulo dela, esclareceu-lhe:

– Pelo menos vou parar de peidar.

E então complementou:

– Assim você vai conseguir dormir melhor daqui pra frente.

De fato, com a morte de Luiz, seu marido, Maria Helena passou a dormir melhor. À época, não se sentiu nem um pouco culpada pela alegria que tomou sua mente quando conseguiu dormir sem o incômodo do ronco e, pior, dos peidos que seu marido emitia continuamente todas as noites, tornando desafiante a simples tarefa de respirar dentro do quarto do casal.

Naquele dia, lá na feira, na barraca de legumes do Seu João que ela frequentava havia mais de dez anos, o próprio Seu João veio perguntar-lhe como andava a vida, pergunta que muitas vezes a faziam de maneira desinteressada, apenas para jogar conversa fora. Mas no caso de Seu João, não. A pergunta tinha um propósito absolutamente alinhado às palavras proferidas: ele estava sinceramente preocupado com o bem-estar de Maria Helena, pela simples razão de que nutria um amor platônico por ela.

Como a cordialidade de sempre, Maria Helena respondeu-lhe:

– Ô, Seu João, estou que nem essa sacola de feira.

E então esclareceu:

– Nem cheia nem vazia.

E diante da indagação de Seu João, feita apenas por meio de um frisar de sobrancelhas, Maria Helena concluiu:

– Ando meio triste.

Vendo ali uma oportunidade de ser um ombro de apoio, Seu João quis saber dela:

– Mas por quê, Dona Maria?

– Ah, sei lá.

Ela respondeu, não dando muita pista do que ia em sua mente nem em seu coração.

O feirante então convidou-a para um pastel e um caldo de cana, na barraca dos japoneses a poucos passos dali, convite que foi prontamente aceito por Maria Helena, afinal ela nem tinha tomado café da manhã: estava faminta.

Lá chegando, ao perguntar-lhe que sabor de pastel que ela queria, João ouviu dela algo completamente inusitado. Disse-lhe Maria Helena:

– Quero me casar de novo, sabe?

E prosseguiu:

– Tenho pensado muito nisso ultimamente, dado que ando me sentindo muito sozinha.

Ainda ela:

– Além disso, não tem sido fácil fechar as contas do mês só com o que ganho de aposentadoria. Os preços têm subido muito.

Vendo ali a deixa que precisava para dizer a ela o que ele sentia, João soltou um:

– Quer se casar comigo?

Dito de joelhos, diante de uma Maria Helena incrédula com a cena que se desenrolava diante de si.

Um tanto assustada, ela não conseguiu proferir outra resposta senão:

– Tem de queijo?

Na verdade, uma pergunta que ela dirigiu ao pasteleiro japonês que, ali ao lado dela e de João, aguardava pelo pedido dos dois.

Constrangido pelo fora que levara, João tirou a carteira do bolso e, como prometido, pagou pelo pastel de queijo e pelo caldo de cana pedidos por Maria Helena. Ele mesmo não comeu nem tampouco bebeu nada.

Quando Maria Helena chegou à metade do copo de caldo de cana, olhou para João e, do nada, disse-lhe:

– Aceita?

João, pensando que aquela pergunta era a aguardada resposta para a proposta que ele fizera a ela poucos minutos antes, gritou de alegria, grito que, de tão inesperado e alto, acabou assustando Maria Helena a ponto de fazê-la derrubar ao chão o copo de caldo de cana que então estava pela metade, esvaziando-o por completo.

as estrelas

Do parapeito da janela do sobradinho onde mora, a mirar o horizonte diante de si, acompanhando o pôr do sol, distante como seu olhar, Conchita aprecia as últimas horas do domingo, com a mesma melancolia com que, em sua infância distante de menina pobre, olhava para a última fatia do delicioso bolo de cenoura com cobertura de chocolate, que sua avó preparava para os netos, torcendo para que aquele pedaço fosse dela.

À medida que a noite se aproxima, o forte calor daquele dia vai cedendo algum espaço. As damas da noite então florescem e, com seu perfume, dão as boas-vindas às estrelas, aqueles sóis distantes que Conchita tanto gostava de observar imaginando serem as almas daqueles que já morreram. As estrelas mais brilhantes, ela acreditava, seriam as almas das pessoas que teriam desfrutado vidas interessantes. Não necessariamente vidas que merecessem uma biografia, uma estátua, um nome de rua; apenas vidas cheias de histórias para contar. Como fora a própria vida dela.

Última de sua família, Conchita nunca se casara nem tivera filhos, e vivia na mesma casa onde seus falecidos pais tinham morado enquanto vivos. Embora cheia de histórias, não tinha a quem contá-las, então as escrevia em um caderninho que levava a tiracolo para todos os lugares onde ia. Quando terminava de preencher um, iniciava outro. Assim, ao longo dos anos, a sua coleção desses caderninhos foi ficando cada vez maior e preenche todo o espaço de uma estante da sala. Justamente a estante para a qual ela fica de costas quando, debruçada sobre o parapeito da janela do sobradinho onde mora, observa o sol se pôr no horizonte.

Exceto por um deles, os demais cadernos são todos pretos ou brancos, de modo que, vistos ali expostos na estante, lembram as teclas de um piano.

Naquela noite, antes de dormir, terminou de escrever o que se passara naquele dia em mais um caderninho de anotações. Ao tentar guardá-lo em meio aos outros que tinha na estante da sala, não encontrou espaço para ele: a estante estava tão repleta daqueles cadernos, que não sobrava espaço para mais nenhum deles. Lembrou-se então de sua avó, a mãe de sua mãe, certa vez a dizer-lhe:

— Se aprochegue aqui, minha filha.

Quando, deitada numa cama de hospital, lutava para ver-se curada de um câncer terminal.

Conchita foi até ela e ouviu-a dizer-lhe algo ao pé do ouvido, dito bem baixinho, de modo que só com muito esforço lhe foi possível entender. A avó disse-lhe:

— Anota aí.

E então passou a revelar a receita do bolo de cenoura com cobertura de chocolate que Conchita tantas vezes comera na casa da avó, em tardes animadas, junto dos seus primos. Até então, a receita era um segredo muito bem guardado pela avó. Conchita anotou a receita em um caderno, similar àqueles nos quais anotava as histórias de sua vida, mas reservado apenas a receitas. Esse caderninho de receitas, Conchita também guardava na estante. Envolto em uma capa cor de rosa, o caderno de receitas se destacava em meio aos demais em preto e branco, à maneira de uma flor que brota por entre pedras.

Conchita decidiu tirá-lo dali e, em seu lugar, acomodar o caderno que terminara de escrever naquele dia. Sentou-se diante da estante, abriu o velho caderno de receitas e começou a folhear suas páginas até chegar àquela na qual escrevera, muitos anos atrás, a receita de bolo de sua avó. Fora da estante onde estavam todos aqueles outros cadernos com suas histórias de vida, aquele caderno de receitas parecia contar grande parte de todas aquelas mesmas histórias, mas de forma mais viva: podia-se sentir o aroma e o sabor delas.

(— Se aprochegue aqui, minha filha)

Ao ler a receita do bolo de cenoura com cobertura de chocolate, que quando viva sua avó tantas vezes preparara, Conchita viu seus sentidos serem transportados para aqueles idos anos de sua infância e foi então tomada por um intenso sentimento de saudade.

Naquela noite, dormiu ali mesmo, sentada na cadeira diante da estante, com o livro de receitas no colo. Na manhã seguinte, atendendo ao chamado de sua falecida avó a dizer-lhe:

— Se aprochegue aqui, minha filha.

foi-se juntar a ela.

Na noite que chegou ao final daquele dia, dentre as muitas novas estrelas do céu, nenhuma em especial chamava a atenção pelo brilho.

A novela favorita

Na sala da casa, sobre uma mesa dessas de pés baixos, havia uma televisão velha, daquelas de tubo, que permanecia ligada o dia inteiro, com o volume sempre alto, de modo que era possível ouvir a programação transmitida praticamente de qualquer canto dali. Para Cláudia, a única moradora daquela casa, isso servia como um antídoto contra a solidão.

Viúva, sem filhos nem nenhum parente vivendo próximo, ela passava o dia todo sozinha em casa, cuidando dos afazeres domésticos e fazendo bicos de passadeira de roupas, para complementar os ganhos da aposentadoria.

A televisão só era desligada à noite, por volta das nove horas, quando ela ia dormir. Então, ao invés da tevê, Cláudia deixava o rádio ligado bem baixinho, sintonizado a uma estação que só tocava músicas antigas, do seu tempo de juventude, tempo em que as raras televisões eram todas em preto e branco, como aquela que tinha sobre a mesa de pés baixo localizado na sala de sua casa.

A casa assim nunca ficava em completo silêncio: sempre havia um som, fosse da televisão, fosse do rádio, a preencher o ambiente.

Os próprios vizinhos, há muito, haviam se acostumado àqueles sons que partiam daquela casa velha, com rebocos à mostra e um mal cuidado jardim à frente.

Estes mesmos vizinhos viam Cláudia como uma figura exótica: salvo por quem fosse à casa dela para levar ou buscar as roupas que ela cobrava para passar, eram bem poucas as pessoas que já a haviam visto pessoalmente. A maioria a conhecia apenas de ouvir falar.

Naquela pequena cidade, falar dos outros era o entretenimento preferido dos seus habitantes. Para algumas pessoas, falar da vida alheia era tão natural ou mesmo necessário como comer e respirar.

Cláudia era um tópico repetitivo dessas conversas não apenas por ser pouco vista, o que por si só seria suficiente para atrair um certo mistério para sua figura, mas também porque, quando se permitia sair de casa, nas raríssimas vezes em que isso acontecia, sempre era vista caminhando de mãos dadas com o vazio, como se estivesse puxando alguém pela mão direita.

Alguns moradores, para além do privilégio de terem podido vê-la caminhar pelas ruas, em suas raras aparições públicas, também tinham podido trocar alguns cumprimentos com Cláudia.

Dessa ainda mais rara situação, traziam testemunhos de terem ouvido Cláudia apresentar o vazio que puxava pela mão direita como seu marido Alfredo, muito embora este já tivesse falecido há anos.

Antônia, uma antiga e habitual cliente, foi à casa de Cláudia, numa sexta-feira pela manhã, buscar as roupas que havia deixado para ela passar no início daquela semana. Como nunca antes fizera, Cláudia a convidou para um café, o que Antônia, surpresa, de pronto aceitou. Enquanto aguardava Cláudia retornar da cozinha, onde preparava o café, Antônia, sentada em uma poltrona grande o suficiente para acomodar seu corpanzil de maneira confortável, observava a decoração da sala, tomada, assim como toda a casa, pelo som da televisão ligada em algum programa matutino. A decoração da sala parecia ter parado no tempo há pelo menos uns 30 anos.

Sobre o aparador, localizado ao lado da porta de entrada, repousavam inúmeros e minúsculos bibelôs e também porta-retratos com fotos de Cláudia e Alfredo, ora juntos, ora separados. Bem no meio daqueles bibelôs e porta-retratos, havia um grande jarro de louça vermelha, em cuja lateral se lia o nome de Alfredo, envolto em um coração também em baixo relevo. Eram suas cinzas crematórias que ali estavam guardadas.

Ao contrário de Cláudia, Antônia nunca se casara: aos 54 anos, ainda era solteira. Sentia falta da presença masculina, mas sua timidez crônica associada ao seu sobrepeso nunca lhe permitira iniciar e, menos ainda, cultivar uma relação amorosa com homem nenhum.

Enquanto Cláudia preparava o café lá na cozinha, Antônia, como que hipnotizada e seduzida por aquele vaso de louça vermelha, dentro do qual repousavam as cinzas de um homem que, como demonstravam as fotos ali em cima do aparador, quando vivo tinha sido muito bem apessoado e sedutor, levantou-se da poltrona em que estava sentada, caminhou até o aparador, pegou o jarro de louça em suas mãos e o abraçou, tocando a tampa fria do jarro com uma de suas bochechas. Com seu abraço, o frio da superfície da louça foi aos poucos se aquecendo.

Lá da cozinha, Cláudia gritou:

— O café está quase pronto.

Grito alto o suficiente para se fazer ouvir mesmo em meio ao barulho da televisão que seguia ligada em alto volume, assustando Antônia a ponto de quase fazê-la deixar o jarro de louça cair ao chão.

Ela então apertou-o ao peito ainda mais fortemente e, aproveitando-se da cobertura do som da televisão, saiu pela porta da frente levando o jarro com ela.

Quando Cláudia finalmente voltou da cozinha, já não mais encontrou Antônia ali na sala. Naquele momento, a televisão transmitia a vinheta de início de sua novela favorita, o que foi suficiente para desviar e imediatamente prender a atenção de Cláudia de um jeito tal, que ela mal se lembrava de ter recebido a visita de Antônia, alguns minutos atrás.

Sentou-se diante da televisão e, ensimesmada, tomando o café que havia preparado para ela mais a visita, passou a próxima hora acompanhando pela televisão a sua novela favorita.

Era a semana dos capítulos finais.

Glória

Não se sabia se por força do hábito ou por ação de algum transtorno obsessivo compulsivo, Glória cuidava para que fosse sempre o direito o primeiro pé a ser posto para fora de casa ao sair para trabalhar.

Nas poucas vezes em que acreditou, de memória, ter trocado o pé direito pelo esquerdo, sua mente era de tal forma tomada por angústias naquele dia, que ela mal conseguia respirar – sentia-se sufocada.

O pior de todos os dias foi aquele em que, ao caminhar até a porta de sua casa e abri-la para sair, tropeçou sobre seus pés e caiu sobre o capacho com motivos florais que dava as boas-vindas aos seus poucos visitantes.

Naquele dia, nem o pé direito nem o esquerdo foi o primeiro a alcançar o lado de fora, mas sim, o corpo todo, ao mesmo tempo. Tendo suas carnes e ossos ligeiramente doloridos e com alguns leves arranhões e rasgos pela roupa, ela se levantou e seguiu para o trabalho: estava demasiado atrasada para limpar as feridas e trocar de roupa.

Ao chegar ao escritório, não foram poucas as pessoas, seus colegas de trabalho, que a abordaram para perguntar se ela havia sofrido um assalto, se estava bem, se precisava de algo. A todos, respondia cordialmente:

– Estou bem.

E complementava:

– Não foi nada.

Quando a novidade de seus ferimentos e rasgos pela roupa foi absorvida pela rotina dos afazeres daquele dia, e ninguém mais a abordou, ela correu até o banheiro e, ao chegar lá, despiu-se de todas as roupas que então vestia, ficando apenas com as lingeries de baixo.

Ali, diante do espelho do banheiro, mirou seu olhar em seus próprios olhos e, assustada, gritou:

– Não!

E gritou mais alto:

– Não pode ser!!

Havia esquecido seu colar, no qual trazia pendurado um amuleto da sorte: uma pedra jade em formato de coração. Levou as duas mãos ao rosto e começou a chorar de desespero.

Naquele momento, uma senhora, aparentemente de muita idade, com as costas curvas à maneira de uma cariátide, trajando um vestido todo de um véu diáfano como um papel de seda, entrou no banheiro. Ao ver Glória ali, vestida apenas com as lingeries de baixo e chorando feito criança, correu, ou pelo menos tentou correr, até ela para acudi-la. Perguntou-lhe se estava bem. Ao que Glória respondeu cordialmente:

– Estou bem.

E complementou:

– Não foi nada.

Foi só então que Glória se deu conta de que falava sozinha: a senhorinha de costas curvas que julgava (ou mesmo jurava) ter visto entrar no banheiro e falar com ela, havia desaparecido ou mesmo nunca ali com ela estivera.

Glória andou até a borda da enorme pia daquele banheiro, abriu a torneira no máximo e, com a água jorrando forte, lavou seu rosto e seus cabelos, a fim de desamarrotar o primeiro e livrar o segundo do sebo do sal de suas lágrimas que sobre ele escorrera.

Depois, buscou uma toalha para secar a cabeça encharcada, tateando por sobre a pia molhada. Quando seus dedos vacilantes finalmente encontraram uma toalha a um canto da parede do banheiro, Glória enfim conseguiu secar seus cabelos e rosto. Feito isso, olhou-se no espelho e viu refletida a mesma imagem que, todos os dias pela manhã, logo após acordar, via no espelho de seu banheiro, o mesmo onde Glória então estava e que, só naquele momento, assim notou com alívio, ainda permanecia naquela manhã.

Minutos depois, ao sair pela porta de casa, foi seu pé direito que primeiro alcançou o lado de fora, pousando cuidadosamente, como que conduzido por um guindaste, sobre o capacho com motivos florais que ornava a entrada de sua casa.

Pouco mais de uma hora depois, quando, segura de si, enfim chegou ao escritório, foi até o banheiro para retocar a maquiagem, pois queria estar bem apessoada para uma reunião que teria logo mais, ainda naquela manhã. Ao se olhar no espelho, deu-se conta, com surpresa e desespero, que esquecera de vestir no pescoço seu colar com a pedra de jade em formato de coração, seu amuleto da sorte.

Lembrancia

O carro seguia viagem tendo seu pai na direção, sua mãe sentada no banco de passageiros da frente, sua irmã ao lado dele no banco de trás. Ninguém dizia uma palavra sequer, tão absortos estavam pelos pensamentos que corriam em suas mentes.

A notícia da morte da avó, a mãe de seu pai, havia chegado de madrugada, encontrando todos ainda adormecidos da vida. Parece haver uma regra não escrita, segundo a qual toda vez que um telefone toca de madrugada é para que uma má notícia seja transmitida a quem atende a ligação. Se há exceções, por certo só devem comprovar essa regra. Regra que foi naquele momento observada quando seu pai atendeu a ligação, com voz baixa e sonolenta, no seu segundo toque.

Ao desligar o telefone, ele chamou a esposa, que por sua vez chamou os filhos para dar-lhes a notícia. Pouco mais de uma hora depois, estavam todos dentro do carro a caminho do interior.

E era da memória de sua avó que os pensamentos de Daniel iam ao encontro enquanto o carro dirigido por seu pai seguia viagem pela estrada que, diferentemente da vida, tinha poucas curvas, uma estrada quase reta, que exigia dos motoristas que por ela trafegassem um enorme esforço para não adormecerem.

Quando menino, Daniel sempre tivera uma predileção por conversar com pessoas idosas, pois tinham conteúdo muito mais interessante, aos ouvidos dele, que aquele que encontrava nas raras conversas que tinha com as pessoas de sua idade.

Foi justamente com sua recém-falecida avó, Dona Lina, que ele tivera as melhores conversas da sua infância. Para ele, conversar com a avó era como abrir um livro de histórias, daqueles cheios de ilustrações que ajudam a mente a imaginar o que se narra, como eram os livros com os quais Daniel tivera contato, ainda nos seus primeiros anos de alfabetização.

Nos finais de tarde daqueles tempos, ao sentar-se ao lado dela, entre um café e outro, as histórias eram narradas, saborosas como os bolinhos de chuva que Dona Lina insistia em fazer para acompanhar o café.

Naquela época, não lhe ocorria que aqueles encontros pudessem, um dia, não mais acontecerem. O tempo era só aquele do relógio de louça que sua avó tinha preso à parede da cozinha, que dividia os dias em pequenas tarefas rotineiras: acordar, ir para a escola, almoçar, ir ter com a avó, voltar para casa, jantar e dormir, fechando desta forma o ciclo que, assim ele então pensava, seguiria se repetindo por toda a vida.

Enquanto sua mente recuperava essas memórias, lágrimas insistiam em brotar dos cantos de seus olhos, com a teimosia do mato que insistia em crescer por entre os canteiros de flores que sua avó cultivava: dálias, crisântemos, margaridas e rosas. Talvez, pensou, ao permitir o crescimento daquele mato por entre as flores, a natureza quisesse dizer algo a respeito da nossa vida, lição que aprendemos só com o passar dos anos.

Depois de algumas horas de viagem, a família finalmente chegou ao local onde, desde as primeiras horas da manhã daquele dia, acontecia o funeral do corpo de sua avó. Todos entraram no recinto, menos Daniel. Paralisado diante da entrada, como que impedido por um muro invisível, ele sentiu as lágrimas que, até então, brotavam dos cantos de seus olhos ganharem volume mais condizente com a dor que sentia naquele momento e descerem fortes por ambos os lados de sua face, à maneira das enxurradas formadas pelas chuvas que, em sua infância, chegavam para aliviar o calor insuportável daqueles dias de primavera e verão, enxurradas sobre as quais ele depositava folhas de árvores para navegarem imitando balsas em rios turbulentos. 

Tão nervosas eram as correntezas formadas por aquelas enxurradas, que era infalível o naufrágio daquelas rudimentares balsas e, por certo, do que quer que fosse posto ali para navegar. Uma metáfora da fragilidade da vida?

Ao verem Daniel ali fora, parado, chorando, muita gente que acompanhava o velório foi ao encontro dele a fim de tentar, pelos meios que eram possíveis a cada um, consolá-lo. Mas Daniel mostrava-se inconsolável – ele não queria que o último registro da avó em sua memória fosse com ela deitada dentro de um caixão funerário, coberta por véus e rodeada de flores, que não eram as mesmas flores que ela cultivava em seu jardim, mas sim, flores funerárias, que, com seu aroma tão característico, perfumam a morte na vã tentativa de tornar menos doloroso o luto de quem fica.

Se as flores do jardim de sua avó lutavam com o mato, e eventualmente, graças ao cuidado e esmero de Dona Lina, venciam aquelas ervas daninhas, as flores funerárias, numa evidência de mais uma injusta desigualdade do mundo, lutam com a morte, e esta ninguém vence.

Sua avó para ele, sempre que se encontravam:

– Bom dia, né?

e depois complementava:

– Dormimo aggiunto?

Em seguida, ela sorria e o beliscava, e só então ele respondia:

– Bom dia, vó.

A infância tinha o frescor de uma melancia, ou, como ele dizia, quando criança, “lembrancia”.

Quando o funeral terminou, a gente toda que estava ali se dividiu em vários carros para acompanhar o carro funerário até o cemitério, seguindo um atrás do outro, reproduzindo assim cena que Daniel tantas vezes testemunhara em sua infância, ali na sua pequena cidade natal, e que, naquela época, quando o tempo parecia ser apenas aquele do relógio de louça preso à parede da cozinha de sua avó, nunca lhe passara pela cabeça um dia vir a fazer parte, muito menos com o corpo de sua avó dentro do carro funerário que puxava a procissão. A morte lhe parecia algo tão distante e exótico.

Ao entrar no carro, junto com seu pai, sua mãe e sua irmã, seguiram para o cemitério, acompanhando o rodar lento dos demais carros que seguiam para o mesmo destino.

Era um cemitério simples, para gente simples, situado na descida de uma colina, para lá de onde terminava a pequena cidade, numa distância relativamente pequena, mas longe dos olhos dos vivos.

Lá chegando, alguns homens da família puseram o caixão sobre seus ombros e, poucos passos depois, depositaram-no dentro da cova. Naquele momento, assim como para muitas pessoas que ali estavam, foi-lhe impossível mais uma vez conter as lágrimas.

Uma menina (talvez sua prima) veio lhe oferecer um pequeno buquê de flores, com dálias, crisântemos, margaridas e rosas, e num gesto do braço direito e da cabeça, pediu-lhe que jogasse aquelas flores sobre o caixão. Ao invés de assim fazer, Daniel abraçou aquelas flores, apertando-as sobre seu peito, enquanto as lágrimas que caiam de seus olhos as regavam com sua água salgada.

Aquelas flores, dos mesmos tipos que sua avó cultivava, haviam sobrevivido ao mato dos canteiros em que cresceram, por obra do cuidado de algum zeloso jardineiro. As memórias de sua avó e das muitas histórias que ela compartilhara com ele naqueles idos anos de sua infância, hão-de sobreviver à morte dela.

As linhas que aqui escrevi são como aquelas flores.

In memoriam.

a morte

Teve que se acostumar a sentir saudades, a sentir fome e, principalmente, a sentir medo: recém chegado à capital, Mateus vivia sozinho em um barraco numa das mais distantes e violentas periferias da grande metrópole, um lugar de muitas misérias.

Filho mais novo de uma família de sete filhos, todos homens, deixou-os todos, mais pai e mãe idosos para trás, na pequena cidade do interior do Brasil onde nascera, em busca das oportunidades que, naquela pequena vila, jamais teria acesso. Todos os seus irmãos mais velhos seguiram o destino e desejo de seus pais e se tornaram, também eles, sertanejos miseráveis.

No dia de sua partida, sob o olhar desolado de seus pais e aliviado dos outros irmãos, embarcou em um ônibus velho e, três dias depois, chegou, entorpecido de cansaço, àquela que, em sua mente, então cheia de esperança, seria sua nova casa: a capital.

Mas a cidade que, naquele momento, lhe parecera alvissareira, mostrou-se depois uma enorme decepção.

Por meses, ele, por falta de alternativa, teve que viver naquela longínqua e violenta periferia, tão diferente e tão pior que sua cidade natal, onde, apesar da pobreza, não se tinha notícia de violência, pelo menos não de homem contra homem.

Naquele bairro distante e miserável, a morte era cotidiana: dia e noite, ela rondava o bairro em busca de novas vítimas, que escolhia aleatoriamente, sem distinção nenhuma. Isso quando não matava no atacado, em geral a mando e paga por alguém, e fazia várias vítimas de uma só vez, naquilo que os jornais sensacionalistas, no tédio da renitente violência diária, chamavam em suas manchetes de chacinas, e que seriam abordadas com pouco destaque por outros jornais, os quais, ao falar daquelas mortes, mal disfarçavam o tom de comemoração.

Ali naqueles arrabaldes longínquos, Mateus vivia de bicos de pedreiro, que fazia ora ali pela vizinhança mesmo, ora nos bairros próximos. Apesar de sua fama de exímio mestre de obras, conquistada a muito custo, o trabalho mal lhe garantia o sustento mais básico.

De alguma forma, sua fama de bom obreiro chegou aos ouvidos da morte, que, precisando de um pedreiro, foi ter com ele numa certa manhã, cedo demais até para encontrá-lo acordado. Como de hábito, entrou sem bater e, já dentro do barraco, encontrou Mateus deitado envolto em um cobertor velho, sobre um colchão magro, dormindo um sono silencioso. Seduzida pela imagem dele, a de um jovem homem cujos sulcos da pele do rosto contavam histórias de muito sofrimento, a morte ficou ali, por cerca de uma hora, debruçada sobre Mateus a velar seu sono.

Por todo esse tempo, Mateus não emitiu nenhum ruído, não esboçou nenhum movimento e, não fosse pelo ar que se sentia entrar e sair de suas narinas, pareceria morto: dormia um sono sem sonhos.

Quando enfim acordou, a morte, premida por outros compromissos, já tinha partido. Ao partir, deixou um bilhete ao lado do colchão onde Mateus dormia. Ao abri-lo, ele tentou ler a mensagem deixada por ela, que dizia: “Estive aqui hoje para encontrá-lo. Volto amanhã bem cedo”, e ao final assinava: “A morte”.

Semianalfabeto, Mateus mal pôde entender o que estava ali escrito naquele bilhete, nem tampouco quem o deixara. Deu de ombros, repetindo um gesto que lhe era habitual.

Mais tarde, naquele mesmo dia, um vizinho, um dos poucos que tinha acesso a telefone na vizinhança, veio lhe trazer a notícia de que sua mãe morrera na noite anterior, de morte morrida, decorrência da idade avançada. No dia seguinte, bem cedo, o mesmo irmão que ligara para dar essa notícia ligou de novo para aquele vizinho, a fim de trazer a notícia da morte do pai de Mateus, que, muito velho, não suportara seguir vivendo nem um dia depois de ver a esposa falecer e também sucumbira à navalha da foice da morte.

Naquela mesma manhã, também muito cedo, quando a morte foi ter com Mateus novamente, como avisara no dia anterior que faria, encontrou-o pouco depois do momento em que seu vizinho lhe dera a notícia da morte de seu pai. Mateus tinha o rosto triste, porém sereno e algo aliviado: seus pais finalmente tinham ido descansar de uma vida sofrida demais até para os Severinos.

Ao ver a morte ali ao seu lado

(ela novamente entrara sem bater)

ele olhou para ela e, com a voz firme, disse-lhe um “Obrigado”, e então, com uma voz firme mesmo que embargada, complementou: “Te devo esse favor”.

Foi a deixa que a morte precisava para fazer-lhe o pedido que tinha em mente:

— Preciso de seus serviços para algumas obras.

— Que obras?

Quis saber Mateus.

— Quero construir o futuro.

Disse-lhe a morte e então complementou:

— Vai ter obra para toda a vida.

Ao ouvi-la, Mateus sorriu e, sentindo enfim esperança de dias melhores, respondeu, com uma confiança que beirava a arrogância:

— Serei seu melhor mestre de obras.

Com um sorriso triunfante, a morte disse-lhe:

— Não tenho dúvidas disso.

E, depois de uma breve pausa, complementou:

— Pago muito bem.

Frase sedutora que Mateus nunca ouvira de ninguém até então, e diante da qual não lhe foi possível ter discernimento para escolher, nem tampouco negociar. Seus olhos brilhavam, mas nenhum brilho poderia livrá-lo da escuridão sem fim do destino que estava sendo escrito à tinta diante dele.

Ali, ao garantir-lhe a atenção e importância que nunca recebera dos vivos e a esperança de dias melhores no porvir, a morte conquistou de vez mais um soldado para seu exército, todo ele treinado para entrar onde quer que fosse sem pedir licença, do mesmo modo como ela fazia.

a árvore

A família toda de cabeça erguida a olhar para cima, tentando avistar Júlia, a matriarca, que subira no topo de uma árvore da rua à maneira de um gato. Fazia pelo menos duas horas que ela estava lá em cima.

Chamados, os bombeiros chegaram rapidamente e, a todo custo, tentaram convencer Júlia a descer da copa daquela árvore. Senhora de certa idade

(nunca revelava)

ela poderia ficar gravemente ferida ou mesmo morrer se acaso caísse dali: a árvore era bem alta.

Após horas de tentativas, graças à lábia de um bombeiro mais jovem, ela finalmente foi convencida a descer. A tensão de todos lá embaixo nesse momento cresceu: a cada vez que ela se agarrava a um galho para descer, parecia que seu corpo não suportaria o próprio peso e ela cairia ao chão feito um fruto podre.

Descendo de galho em galho, depois agarrando-se ao tronco, que deslizou como se agarrada a um pau de sebo, ela finalmente alcançou solo firme, com leves arranhões pelo corpo, nada mais.

Aliviados, os membros de sua família correram para dar-lhe um abraço. Logo depois, passado o susto, quando seu marido, com quem era casada há mais de quarenta anos, perguntou-lhe o porquê de ter subido ali, ela, professora aposentada de inglês, simplesmente respondeu:

— Queria experimentar uma relação a “trees”.

E em seguida riu-se solta e debochadamente, como há muito não fazia, deixando todos que estavam ali ao seu redor algo constrangidos, com a expressão de a ver navios.

Naquela mesma semana, ela e o jovem bombeiro que a convencera a descer da árvore fizeram um primeiro encontro, secretamente, e assim continuaram a se encontrar por meses.

Ao cabo do terceiro mês de encontros sem testemunhas, Júlia decidiu largar seu marido para ficar de vez com aquele jovem bombeiro, com quem, depois, viveu uma relação carnal e ardente até o dia em que seu corpo esfriou numa morte súbita, ocorrida enquanto ela e ele faziam amor.

Cumprindo seu desejo em vida, seu corpo foi cremado e suas cinzas jogadas ao pé da árvore que a unira ao jovem bombeiro.

Foi ele, ao final, com sua juventude e vigor, o responsável por restabelecer em Júlia a sua condição humana, permitindo-a deixar para trás os anos, em grande parte vividos na sua antiga relação, em que seu desejo andava frio como a seiva da árvore que suas cinzas adubariam, a partir do dia em que foram depositadas ao pé do frondoso tronco que Júlia um dia descera deslizando como se agarrada a um pau de sebo.

Ano novo

Em frente à saída do metrô, era possível ver um grande número de barracas de vendedores ambulantes, que para ali iam todas as manhãs, a fim de venderem os mais variados produtos. Também Ana vendia seus produtos ali: chegava às 4 da madrugada, armava o cavalete, punha sobre este umas duas tábuas bem largas, cobria-as com uma toalha de plástico, em cima da qual colocava os diversos bolos que havia preparado em casa para vender, acompanhados ou não, a depender do gosto do cliente, pelo café coado que trazia em garrafas térmicas multicoloridas. Lá pelas 10 da manhã, quando o movimento maior de clientes dava uma trégua, Ana recolhia o que não tinha sido vendido e doava a uns meninos de rua que faziam a segurança de sua barraca, avisando da sorrateira aproximação do rapa, que, do nada aparecia por ali para confiscar os produtos que Ana e os demais camelôs vendiam.

Eram cerca de 4 meninos. De todos, seu preferido era William. Ana lembrava-se bem da primeira vez em que o encontrou, e ao perguntar-lhe o nome, ouviu ele responder:

— William

e em seguida frisar

— Com dois vês e dois eles.

William tinha por volta de uns 10 anos, nem ele mesmo sabia dizer ao certo sua idade. Podia aparentar ser mais velho ou mais novo do que sua real idade. Vivia na rua há muitos anos, provavelmente órfão de pai e mãe, não sabia dizer. Ele despertava uma compaixão dos passantes que seus colegas de rua não despertavam, vai ver isso se dava por que era o único não negro da turma.

Certa manhã, quando Ana chegou bem cedinho para armar sua banca, encontrou William deitado no chão molhado, todo sujo, sozinho, com um ferimento estranho na cabeça, que ainda sangrava. Levou a mão até seu ombro esquerdo e sacudiu seu pequeno corpo magro. Chamou:

— William!

(com dois vês e dois eles)

duas, três, quatro vezes, mas o menino não respondeu. Ao verificar o pulso dele, Ana constatou a morte.

Ela então pegou um dos sacos plásticos onde trazia alguns dos bolos que poria à venda naquele dia, e embrulhou o corpo do menino. Depois, sob o olhar indiferente de Deus e de São Paulo, jogou o saco dentro de uma lixeira, perto da saída do metrô. O fluxo de gente naquela hora era imenso; rostos alucinados de pressa saíam da estação do metrô Trianon-Masp, às centenas, e se punham a andar para todos os lados, como ratos, para quem as contas a pagar seriam como gatos a persegui-los.

Fazia sol e também muito frio, algo atípico para um mês de dezembro em São Paulo. Ao final do seu expediente, Ana havia conseguido vender todos os seus bolos, não sobrando nem uma migalha sequer para os meninos, agora todos pretos, que faziam a vigia do local.

Foi junto deles e de milhares de outras pessoas que se aglomerariam ali na Avenida Paulista, no final daquela semana, que ela veria os shows e os fogos a anunciarem a chegada de um novo ano.

Noite iluminada

Naquela noite iluminada

Pela luz da lua

Caminhava pela estrada deserta

Na companhia de mim mesmo

E de Deus?

Que nada

A noite estava estrelada

E abafada

E eu suava

Um suor quente que descia pela minha face

Feito lava

Naquela estrada deserta

Só eu caminhava

Na esperança de chegar

A algum lugar onde eu pudesse ao menos

Beber água

Aliviar a sede que me atacava

Era tarde

Estava cansado

Ninguém se importava

Caminhei, caminhei, caminhei

Pois achei que dava

Para chegar ao meu destino

Mas que destino

Se eu apenas vagueava?

Tudo isso porque

Quando lhe perguntei se me amava

Você simplesmente não disse nada

E olhou para mim como se eu

Não dissera nada.

O vestido

Era a mesma rotina todos os dias pela manhã: depois de acordar e tomar banho, Paulo vestia-se e punha-se diante do espelho que ficava na parte de dentro da porta do guarda-roupa, a fim de verificar se estava apresentável para ir trabalhar. Sua maior preocupação era manter a camisa para dentro da calça, bem ajustada pelo cinto, como sua avó lhe mandava fazer quando criança, dizendo:

– É assim que um homem se veste.

Fazendo-o crer, desde menino, que vestir a camisa deixando-a para fora da calça não era o comportamento adequado a um menino e, portanto, seria menos ainda para um homem feito.

De sua avó, na infância, também ouvia:

– Sair de casa com a camisa para fora da calça é o mesmo que sair como um maltrapilho.

E, por fim, sentenciar:

– Jamais quero vê-lo desta forma.

Num dia desses, Paulo acordou bastante atrasado para um importante compromisso no trabalho e, por isso, mal teve tempo de tomar banho, escovar os dentes, pentear o cabelo. Acabou tendo de se arrumar a toque de caixa, esquecendo-se até de checar no espelho se tudo estava em ordem antes de sair de casa.

Ao chegar ao metrô, viu sua imagem refletida na janela do trem e foi então que se deu conta de, não só ter esquecido de colocar a camisa para dentro da calça, como sua avó fazia questão, mas também ter esquecido de passar o cinto sob o cós da calça, de modo que, mesmo que colocasse a camisa para dentro, ela sairia de novo para fora, sempre: a calça estava larga para ele.

Imediatamente, veio à memória sua avó a dizer-lhe:

– Sair de casa com a camisa para fora da calça é o mesmo que sair como um maltrapilho.

Envergonhado, correu até o banheiro da estação e lá abriu a mochila que trazia às costas. Dentro dela, havia um longo vestido de algodão, todo rendado na barra e nas mangas, que pertencera à sua avó. Paulo pretendia vesti-lo à noite, em um encontro romântico que teria depois de sair do trabalho.

Lembrando de sua avó a dizer-lhe:

– Jamais quero vê-lo desta forma.

Referindo-se a usar a camisa para fora da calça, não pensou duas vezes e trocou a roupa que estava usando pelo vestido.

As palavras de sua avó então silenciaram. Apenas o cheiro dela agora o acompanhava, dado que estava impregnado no vestido.

Deixou o banheiro da estação com a cabeça erguida, altivo, e seguiu para o seu destino.