O pé de manga

No quintal, na parte detrás da casa, havia um pé de manga

(ou uma mangueira como dizem outros)

alta e frondosa, que todos os anos presenteava a família

(e os pássaros)

com suas frutas: enormes e pesadas mangas amarelas recheadas de sabor.

Era para o alto daquela árvore que Fernando subia sempre que precisava de um refúgio da sua sufocante vida adolescente, como filho de uma família classe média baixa do interior paulista.

Dali do alto da árvore, seu olhar alcançava os limites da pequena cidade

(que pareciam ainda menores dali de cima)

e seguia para muito além, adentrando as áreas rurais, com seus sítios e fazendas plenos de vegetação verdejante a maior parte do ano, e amarelada na parte restante.

Naquele tempo, o jovem Fernando já sabia que, embora alto, o topo daquela árvore estava longe de ser o ponto mais alto do mundo. Era apenas o ponto mais alto daquele seu mundo de então, mundo que, alguns anos mais tarde, ele deixou para trás ao partir para a capital, a fim de trabalhar, em busca de novos horizontes.

Deixou para trás também o pé de manga em cujo topo costumava subir.

Na capital, sua vontade era ir para ainda mais alto, vencer na vida, como se diz, mas as contas para pagar agiram, por muitos anos, como um imã a prender seus pés no chão, vivendo a realidade da sobrevivência na cidade grande que pouco lhe permitia sonhar.

Sentia falta da mangueira de sua infância e de sua mãe a gritar-lhe:

– Desce daí, menino!

e em seguida preveni-lo:

– Esse galho quebra e você se esborracha no chão.

Ainda que tenha de fato levado muitos tombos na vida, nunca sofrera nenhuma queda do pé de manga. A árvore, embora velha, tinha os galhos fortes como barras de metal, fortes o bastante para suportarem a carga de suas frutas e de Fernando quando ali subia.

De uma escadaria ao ar livre, próxima ao seu trabalho, para onde sempre ia depois do almoço para pensar sobre a vida, ficava a observar o fluxo incessante de aviões que, ao longe, cruzavam o céu indo em direção ao aeroporto. Até então, nunca havia viajado de avião.

Na primeira vez que viajou, num voo breve entre a capital e o Rio de Janeiro, passou o tempo todo a lembrar-se de sua mãe a dizer-lhe:

– Desce daí, menino!

com aquela mesma voz com que ela, dias atrás, chamava-o em meio a uma multidão na rodoviária da capital.

– Fernando.

Multidão tão imensa que fazia sua mãe parecer um balãozinho no céu, de tão pequena diante de toda aquela gente aglutinada nas plataformas da estação.

– Fernando!

ela chamou de novo e, logo em seguida, finalmente se encontraram. Beijos e abraços a curar anos de uma separação dolorosa tal qual uma ferida cálida.

Sua mãe, Dona Irene, trazia na mala um porta-retrato com a última imagem do pé de manga, numa fotografia tirada dias antes daquela árvore ser derrubada para dar lugar a uma edícula que serviria de quartinho de costura.

Era para lá que sua mãe ia todas as tardes, distrair a mente da vida que passava, exercendo uma atividade que lhe permitia domar as contas do mês. Depois do falecimento de seu marido, o pai de Fernando, Dona Irene passou a viver unicamente de sua pouca aposentadoria e dos trocados que conseguia com os trabalhos de costura.

Ao chegarem ao apartamento onde Fernando morava na capital, Dona Irene impressionou-se com a altura: vinte andares separavam aquele apartamento da movimentada rua em frente.

O prédio era cercado de muitos outros, tão altos quanto ou mesmo ainda mais altos, de maneira que não se via o horizonte.

Sentado no topo do pé de manga de sua infância, Fernando alcançava com seu olhar um horizonte maior e mais amplo do que dali de seu apartamento.

O porta-retrato dado por sua mãe, com a foto da árvore, foi deixado a um canto do apartamento, e ali ficou esquecido. Para Fernando, aquilo tudo era passado, um passado cujo único resquício no presente era sua mãe.

Quando esta, alguns meses depois daquela breve visita ao filho, veio a óbito, resquício nenhum mais lhe sobrou do que vivera em sua infância.

Há noites em que Fernando acorda de um sonho que noite após noite se faz renitente, sonho no qual ouve sua mãe a gritar-lhe:

– Desce daí, menino!

como ela fazia na sua infância, que de tão distante no tempo, parece-lhe agora ser nada mais que um sonho.

A fotografia

O primeiro encontro também tinha sido o último. Naquele final de tarde, ele partia de trem para uma nova vida, num lugar ainda desconhecido, mas que lhe trazia a esperança de uma vida melhor. Da plataforma da estação, ela acenava em vão e assim continuou fazendo até o momento em que seu aceno encontrou o aceno dele no ar e, então, os dois acenos se abraçaram num aperto forte que só o movimento do trem conseguiu desatar.

Depois daquele dia em que seus acenos se abraçaram no ar impregnado de tantos adeus da estação de trem, Fátima e José nunca mais se encontraram e, desde então, trinta anos se passaram.

Nesse tempo todo, cada um seguiu sua vida: casaram-se, tiveram filhos, sofreram angústias, alegrias, viveram enfim as vidas que a vida lhes deu, com sua mão por vezes generosa e outras vezes, vai ver a maior parte delas, avarenta ou mesmo miserável.

Naquela tarde em que Fátima e José se encontraram em seus acenos, um lambe-lambe que fotografava aleatoriamente as pessoas documentou numa foto o momento daquele abraço. Essa foto viajou trinta anos no tempo até ir parar numa exposição em comemoração aos cem anos da pequena cidade onde ficava a estação.

Certo dia, à exposição, compareceram um grupo de adolescentes do orfanato local mais as suas supervisoras, que com muito esforço cuidavam para que nenhum dos órfãos se perdesse por entre os corredores do enorme recinto, localizado a poucos metros da estação de trem, num antigo galpão que, no passado, servira a função de oficina mecânica dos trens, hoje sem uso dado que aqueles há muito não mais circulam.

Antônio, um dos órfãos que acompanha a excursão, interessado como é em fotografia, observa com bastante atenção cada uma das fotos ali expostas, demorando-se bastante em cada uma delas, a ponto mesmo de a excursão andar e ele ficar para trás, sozinho. As fotos lhe trazem um alívio da pesada realidade que o cerca no orfanato.

Quando seus olhos se dirigiram à foto do abraço dos acenos de Fátima e José, amarelada pelo tempo, algo chamou a atenção de Antônio, algo que ele não sabia explicar o que era, mas que lhe atiçou a curiosidade, fazendo com que despendesse ainda mais tempo na contemplação daquela fotografia do que havia gasto nas demais por ele vistas até então.

Depois de alguns minutos observando aquela imagem, como que hipnotizado pela cena que estava ali retratada, lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Antônio. Não entendia a razão por que reagia daquela forma.

Uma forte angústia começou a tomar-lhe de assalto, tão intensa que não encontrava precedente em sua vida. Ele não reconhecia a mulher naquela foto, uma jovem de não mais que quinze anos, nem tampouco o rapaz, um jovem de não mais que dezoito anos.

Aos poucos, porém, foi reconhecendo as mãos da mulher no abraço dos acenos ali registrado. À medida que esse reconhecimento foi ganhando corpo, também a sensação de angústia passou a apertar-lhe ainda mais o peito, levando-o até a sentir que lhe faltava o ar.

Minutos depois, finalmente adquiriu a consciência do que estava diante dele: aquelas mãos que, no abraço dos acenos, a fotografia capturara eram as mesmas mãos que tantas vezes ergueram-se contra ele, munidas de varas e chicotes, oferendo-lhe pesadas surras em resposta às menores infrações. As mesmas mãos que, no dia em que o descobriram “mulherzinha”, como dizia seu pai, expulsaram-no de casa com a roupa do corpo e nada mais.

Quem te espera?

Era-lhe quase impossível precisar há quanto tempo estava a esperar, se horas, dias, quem sabe até mais. Para Lúcia, o tempo parecia um contínuo infinito, denso e viscoso, que, como o ponteiro de um relógio que parou de funcionar, prendia-a num quadrante fixo, no qual passado, presente e futuro pareciam iguais na sua completa ausência de perspectiva.

Com os olhos, fixos, a mirar o vazio, ela aguardava uma ligação no telefone que repousava sobre uma pequena mesa, ao lado da cabeceira da cama onde se encontrava deitada. Não a sua cama, propriamente, mas a de um hotel barato no centro da cidade. Da janela do quarto, sempre aberta, ora chegava a luz do sol, ora as luzes da noite, embora, para ela, ali dentro, a escuridão fosse permanente.

Desde que chegara ali, Lúcia não trocou uma peça de roupa e quase não se alimentou. Sua pele estava amarelada, assim como seus olhos. O quarto cheirava mal.

Quando o telefone finalmente tocou, ela atendeu e, do outro lado da linha, ouviu alguém lhe perguntar:

– Quem te espera?

Sem saber o que responder diante da pergunta que lhe pareceu demasiadamente inusitada, restou-lhe apenas desligar o telefone de pronto, sem nem ao menos querer saber quem perguntara.

Levantou-se para ir ao banheiro e, logo depois, retornou para a cama, onde novamente se deitou e ficou em silêncio a mirar fixamente o vazio com seus olhos. Naquele momento, as luzes da noite entravam pela janela, trazendo junto com elas o lúgubre aroma da escuridão.

Lúcia tinha esperança de que o telefone voltaria a tocar e, não tendo quem a esperasse, continuou ali deitada, sozinha, esperando.

Cida

Eu nunca vou entender esses parabéns que as pessoas postam nos stories do instagram. Parecem aqueles apertos de mãos em que uma delas, por não desejar aquela intimidade, oferece-se de modo tépido, como se tivesse nojo da outra.

Esses parabéns do instagram sempre são dados pela publicação de uma ou mais fotos de quem parabeniza na companhia de quem é parabenizado, em algum momento aleatório do passado. Há casos até em que esse momento já faz muito tempo.

E o que dizer de todos que, ao visualizarem os stories, são informados da data sem nem ao menos conhecer quem está aniversariando.

Deve ser bem constrangedor para pessoas como Dona Cida, que prefere não revelar a idade, e assim, para evitar que lhe perguntem:

– Quantos anos a senhora está fazendo?

simplesmente deixa passar em brancas nuvens todos os seus aniversários.

Pois foi justo ela quem, no dia do seu aniversário de 84 anos, viu-se exposta quando sua neta, Patricia, publicou stories no instagram com a foto dela acompanhada da avó, parabenizando esta pelo seu aniversário.

Quase todo mundo da família viu a postagem de Patrícia e, em seguida, enviou cumprimentos à Dona Cida, por mensagens, ligações e até mesmo pessoalmente, em um ou outro caso.

Invariavelmente, de todo mundo que a abordou, Dona Cida ouviu a pergunta:

– Quantos anos a senhora está fazendo?

Pergunta que Dona Cida cuidou de deixar no ar, sem resposta para ninguém. Ela queria morrer com toda aquela situação, que para ela era demasiadamente constrangedora.

De fato, uma semana depois de completar 84 anos, Dona Cida veio a falecer.

Tristes pela morte da matriarca, Patrícia e outros familiares publicaram homenagens a ela nas suas respectivas redes sociais sempre cuidando para mudar a foto do perfil pela foto de um lacinho na cor negra, em sinal de luto.

Na pequena cidade, a notícia de sua morte viralizou.

Ainda assim, foram poucos os que compareceram ao velório e quase ninguém foi ao seu enterro.

João

Foi de sua mãe que João uma vez ouviu, quando era adolescente:

– Você é um jovem com mente de velho.

À época, João havia pedido a ela uma harpa de presente de aniversário.

De uma amiga de sua mãe, que acompanhava aquela conversa, ainda ouviu:

– Harpa é instrumento de velho, João.

Passados mais de quarenta anos daquele dia, João não se considera propriamente um velho, nem tampouco um jovem, ao menos não aquele jovem do passado. Considera estar na chamada meia idade.

Hoje em dia, sente-se feliz quando ouve das pessoas coisas como:

– Você ainda é jovem.

ou

– Não aparenta a idade que tem, João.

As memórias sobre aquela conversa com sua mãe e a amiga dela invadiram sua mente enquanto escrevia, num pedaço quadriculado de papel pólen, um recado para Teresa, sua diarista.

Incomodava-o a vulgaridade das folhas brancas de papel; para escrever, preferia aquelas de papel pólen que, com seu tom pastel, imitavam um certo envelhecimento.

Escreveu:

“Não se demore, seja breve”

Naquele dia, João não queria que Teresa se demorasse com os afazeres da casa, pois sabia que ela precisava levar o filho ao médico, no período da tarde, sem falta.

Caprichando na caligrafia, João complementou a mensagem que deixava no bilhete com um:

“Te amo”

Homem solitário, de poucas palavras, leu mentalmente o bilhete que havia escrito e ao ler a mensagem completa:

“Não se demore, seja breve

Te amo”

João sentiu-se envergonhado, pois julgava estar velho para aquele tipo de demonstração de afeto. Talvez velho demais para amar.

Sentiu seu rosto ficar vermelho e gotículas de suor brotaram de sua testa. Enxugou-as com um lenço de papel e então rasgou o bilhete, substituindo-o por um outro, também em um pedaço quadriculado de papel pólen, no qual escreveu simplesmente:

“Quando sair, não se esqueça de trancar a porta com a chave”

Colou aquele bilhete na geladeira e partiu para o trabalho.

A procissão

Ela tinha o dom de cuidar, embora, ao longo de sua vida, pouco ou nenhum cuidado tivesse recebido, fosse de seus pais, seus parentes, ninguém. Chamava-se Maria, nome bastante comum para as mulheres que, como ela, habitavam aquela comunidade humilde, nas franjas da metrópole, ou, como diriam alguns, nos seus arrabaldes.

O barraco onde morava abrigava mais seis pessoas: seu pai, sua mãe e seus quatro irmãos mais novos, todos meninos ainda impúberes. Sendo a única pessoa da família a trabalhar, Maria era responsável pelo sustento de todas aquelas muitas bocas. Dentro do infinito limite de forças de uma mulher, conseguia trazer algum dinheiro para casa por meio de alguns bicos de faxineira, alguns biscates, ou mesmo pela mendicância. Para ela, a mendicância por vezes mostrava-se mais atraente, pois ao menos lhe permitia um maior controle do tempo, além de evitar a subordinação a patrões temporários, que não raro tentavam convencê-la a aceitar um acréscimo de pagamento, por meios outros que não o simples desempenho das tarefas domésticas de faxina para as quais havia sido chamada.

Foi num sábado um pouco nublado, que Maria saiu de casa logo pela manhã, ainda antes do sol nascer, acompanhada de um dos quatro irmãos, o mais novinho deles. Moisés era seu nome. Levando-o pela mão, pegou um ônibus para o centro da cidade, onde chegaria, se tudo corresse bem, dali a quase duas horas, tendo uma baldeação pelo caminho.

Numa semana que tinha feito poucos bicos, o dinheiro ficou demasiadamente curto, não lhe restando alternativa, naquele final de semana, senão mendigar para conseguir levantar um dinheiro extra, ao menos o mínimo para passar a semana seguinte com a despensa abastecida com o básico para livrar de passar necessidades as muitas almas sob sua guarida.

De fato, a situação da família era de penúria. Pai e mãe não eram propriamente idosos, mas devido a uma doença em comum que médico nenhum tinha conseguido diagnosticar, contavam com pouca autonomia até para as tarefas mais simples do dia a dia. Viviam, assim, tão dependentes de Maria quanto os irmãos mais novos. Estes passavam o dia a vagar pelos barracos da redondeza, buscando a sorte de poder comer a convite da mãe, tia, avó ou madrasta de algum amiguinho com quem brincavam ali na comunidade.

Depois de embarcar Maria e Moisés, o ônibus seguiu pela estrada de terra do bairro distante, trazendo para dentro, a cada ponto de parada, mais e mais passageiros. Era um bairro dormitório, que servia apenas a função de abastecer a cidade com mão de obra barata. Lar de pedreiros, lixeiros, porteiros e Marias.

Quando deixava a estrada de terra que cortava aquele bairro periférico, e estava prestes a iniciar o trecho asfaltado da avenida principal do próximo bairro dentro do itinerário até o centro, na fronteira entre a periferia e a cidade, o ônibus parou.

Sentada em um dos últimos assentos, lá na parte traseira do ônibus, Maria, aflita, tentava entender o que ocorria. Ela queria chegar cedo ao centro, pois, assim, conseguiria tomar um café quente e comer ao menos um pão com manteiga, na padaria cujo gerente, generoso, vendo a situação de miséria com que Maria ali volta e meia aparecia, costumava acomodá-la, mais o irmão que a acompanhava, numa mesa ao fundo do salão da padaria e, então, pedia para que lhes fossem servido um desjejum simples, mas suficiente para dar-lhes força para a dura luta pela misericórdia das multidões que caminhavam pelo centro, local onde a tal da misericórdia era por tantos disputada e, também por isso, demasiadamente escassa. Devido ao tráfego parado, pelo visto, naquele dia, Maria e Moisés, àquela hora já famintos, perderiam a chance daquele café da manhã da padaria.

Muito embora fosse um sábado de manhã e nem bem tivesse ainda cruzado os limites do primeiro bairro do longo percurso até o destino, o ônibus já estava lotado. Dentro dele, os passageiros estavam impacientes. Alguns ameaçavam descer, outros xingavam o motorista, o governo, batiam e tentavam quebrar assentos, janelas, e havia também aqueles que, assim como Maria e seu irmão, estavam fracos demais para qualquer outra reação que não fosse a simples resignação silenciosa.

Lá fora, diante do ônibus e de todos os demais veículos que ali se encontravam parados, passava uma turba enorme de pessoas, como que a seguirem uma procissão, a gritar quase em uníssono o nome de algum messias. Montadas em motocicletas as mais variadas, seguiam dirigindo ora sozinhas, ora em duplas. Com seus motores e escapamentos, as motos faziam o barulho equivalente a dezenas de trovões.

Seguindo por muitas horas, ininterruptamente, a procissão de motos criou uma espécie de muralha entre o bairro dos mais humildes e o resto da cidade. Aqueles que tentavam cruzar, num gesto de puro desespero, eram esmagados e estraçalhados pelas rodas que, ferozes, formavam a turba.

Cientes da morte trágica que lhes aguardava caso tentassem cruzar a muralha, e impedidos de voltar, os que permaneceram parados no cruzamento, a aguardar o fim da procissão, assim ficariam por mais um, dois, três, quatro anos, tempo total de duração daquela procissão, caso suportassem ali esperar por tanto tempo. Mas ninguém aguentaria e tampouco aguentou esperar todo esse tempo. Bem antes disso, em sua maioria nos dias seguintes àquele, todos que ali ficaram parados no tráfego, Maria e Moisés aí incluídos, morreram de fome.

A namoradeira

Quando menino, Saturno costumava sentar-se na varanda de sua vizinha, uma senhora de setenta anos, solitária, e com ela passar horas e horas a papear sobre a vida. Aos ouvidos dele, as histórias que ouvia dela eram tão ou mais fascinantes que aquelas que ele lia nos livros, talvez porque, diante dele, a narrá-las, estava uma personagem de muitas daquelas histórias.

Muitos anos depois, mesmo não se recordando do nome daquela sua vizinha, a memória daquelas tardes veio-lhe à mente quando, caminhando pela calçada, avistou, sobre o parapeito de um antigo sobrado, cuja janela tinha vista direta para a rua, uma velha senhora que estava ali, debruçada a observar o movimento da rua, com seus olhos que a tudo já tinham testemunhado, impávida, à maneira de um mocho. Ela tinha longos cabelos acizentados, que refletiam a luz alaranjada do quarto onde estava, fazendo-os parecer estarem em chamas; era como a personagem de uma história fantástica, como algumas daquelas que, no passado, ouvia de sua vizinha septuagenária, de cujo nome não mais se lembrava.

Lembrava-se, sim, da maneira como ela, quando farta e cansada de ficar ali com aquele garoto, a contar histórias sobre sua vida, simplesmente dizia:

– O papo está bom, mas I´m running out of cashmere.

Como quem diz:

– Por hoje, deu.

Mas de uma forma bastante curiosa.

Embora, à época, Saturno não entendesse patavinas de inglês, entendia que ali terminava a aventura das narrativas da vizinha.

Após sentenciar o fim da conversa com o 

– O papo está bom, mas I´m running out of cashmere.

ela se levantava e seguia para dentro de casa, deixando o menino Saturno sozinho na varanda do sobrado, como um cachorrinho abandonado.

Saudoso por reviver aqueles momentos, na tarde do dia seguinte, Saturno tomou o rumo do sobrado onde, no dia anterior, havia avistado a mulher com cabelos que pareciam estar em chamas.

Enquanto caminhava pela rua, já próximo do local, Saturno avistou uma mulher que passava em frente a uma loja de brinquedos, do outro lado da rua. Ela dizia ao menino que puxava pela mão direita

(provavelmente seu filho)

e que insistia para que ela comprasse um carrinho de brinquedo:

– A gente passa aqui na volta.

Sentença que, quando menino, também ao pedir a sua mãe para comprar um brinquedo, Saturno tantas vezes ouvira e que, só mais tarde, viria finalmente a entender que o

– … na volta

dito por sua mãe, era na verdade um

– Jamais.

Já que sua mãe nunca cumpria o que dizia e, ao fim e ao cabo, aquilo que ele havia pedido a ela para comprar, de fato não era comprado.

Oriundo de família simples, de renda apertada, Saturno desde muito cedo foi sendo, assim, acostumado a pensar que o melhor emprego para o dinheiro curto, que seu pai recebia de salário como funcionário público, era cobrir o sustento mais básico da família, nada mais.

A senhora com quem Saturno, na sua infância, costumava passar horas e horas a conversar, vivia em um pequeno sobrado, colado àquele onde morava a filha dela, acompanhada do marido. Era por meio de uma passagem estreita, entre os dois sobrados, que Dona Rita

(havia enfim se lembrado do nome dela)

recebia de sua filha as refeições, em pratos feitos, três vezes ao dia, fiel à regra que, no curso da vida, põe pais como filhos e estes como pais, revezando-se na função de quem cuida e quem é cuidado.

A filha de Dona Rita a perguntar para a mãe:

– O que vai querer de mistura?

Fazendo crer que havia opção sobre qual seria o acompanhamento que iria complementar o prato de arroz e feijão de todo dia, quando, na verdade, a mãe era obrigada a comer o que a filha lhe servia, fosse o que fosse, como um animal de criação.

Dona Rita sentia-se grata por pelo menos ter um teto e, também, o que comer, condição muito melhor do que a de muitas pessoas que, dali de sua varanda, observava perambularem pelas ruas, a vasculharem as latas de lixo em busca de restos de comida que ainda pudessem servir de contenção para a fome.

Uma vez, indagada por Saturno se era feliz vivendo daquela forma, Dona Rita saiu-se com um:

– O papo está bom, mas I´m running out of cashmere.

Como que a dizer:

– Isso não é da sua conta.

Dito isso, como sempre fazia, levantou-se e seguiu para dentro de casa.

Saturno foi se aproximando da senhora de cabelos que pareciam estar em chamas. Ela continuava ali debruçada sobre o parapeito da janela, sob a luz alaranjada de seu quarto.

Foi só ao chegar perto dela, posicionando-se bem abaixo daquela janela, que Saturno percebeu que a mulher dos cabelos que pareciam estar em chamas era, na verdade, uma boneca namoradeira, e que, portanto, só na aparência estava ali a observar o movimento; este é que na verdade a observava.

o cara

Desde pequeno, quando levava um tombo qualquer ao tropeçar, sua mãe vinha lhe dizer:

– Ninguém tropeça pra trás.

E, depois de desferir um tabefe na sua cabeça, ordenar-lhe:

– Levanta e toma teu rumo, moleque.

De alguma forma, essas palavras impulsionaram-no a seguir em frente e, mesmo diante dos muitos tropeços da vida, conseguir deixar para trás a infância demasiado humilde e, depois de muitos anos, enfim tornar-se o homem que é hoje – o respeitado advogado que todos conhecem pela alcunha de “o cara”.

Originário de uma pequena cidade no interior da Bahia, ele muito penou até alcançar algum sucesso profissional em São Paulo. Foram longos anos de dificuldades, vivendo de biscates jurídicos

(– Ninguém tropeça pra trás)

até conseguir se firmar como um profissional respeitado em seu meio.

Numa semana qualquer de julho, em plena segunda-feira, ele está em mais uma das muitas reuniões online, às quais, diariamente, comparece.

Profissional bem-sucedido, de respeito, falta-lhe tempo para atender a todos que o procuram, desesperados por poder com ele contar para a solução de problemas bastante complexos, que envolvem não apenas um excelente conhecimento técnico-jurídico, mas também uma capacidade, que só ele tem, de manejar estrategicamente, à maneira de um enxadrista, as leis diante dos mais labirínticos tribunais. Uma conquista: o cara atende apenas quem e pelo preço que quiser, sempre com aquele semblante tranquilo dos bem nascidos – embora não fosse essa a sua condição original, havia enfim chegado lá.

Ao contrário dos demais participantes da videoconferência em que então o encontramos, ele optou por não abrir a câmera do computador. Também evitou identificar-se perante os demais, na tela, pelo seu verdadeiro nome. Naquele quadradinho da reunião online que corresponde a ele, era possível apenas ler “o cara”, em letras minúsculas.

Esse gesto, que alguns atribuíam à timidez, na verdade, era a forma encontrada por ele para esconder dos demais participantes da reunião o que de fato acontecia por trás da sua câmera.

Vez ou outra, quando questionado por algum participante da reunião sobre o porquê da câmera fechada, o cara simplesmente respondia, abrindo rapidamente o microfone:

– Minha internet está ruim.

E, em seguida, com algum cinismo complementava:

– A minha imagem ficaria congelando.

Justificativa suficiente para convencer quem lhe perguntara de que se tratava de comportamento bastante esperado e, diante das circunstâncias, até desejável.

Mas justificativa nada fiel à verdade, pois, ali com ele, numa cama de motel barato, no centro da capital paulista, estava uma mulher.

Não a sua esposa, mas uma outra, que o cara conquistara e trouxera para a cama, para deliciar-se em luxúria sob o som das vozes daqueles seus clientes na videoconferência, que, em razão da câmera e microfones desligados no computador dele, nada podiam ver nem ouvir. De fato, ele não conseguia mais estar com uma mulher na cama, se não fosse em situações como essas.

Desde muito tempo, ele vem agindo deste modo e assim continuou a fazer por muitas outras vezes, sem nenhum problema, ora em motéis baratos da cidade, ora em garconnières do centro especialmente alugadas para a ocasião.

Havia situações e momentos em que o cara aparecia para seus clientes e, para aqueles realmente importantes, até se reunia presencialmente. Mas eram exceções que, ao fim e ao cabo, serviam para fortalecer o mito por trás daquele bem-sucedido e por muitos temido advogado.

Do alto de seus quase 50 anos, já grisalho, admirava

(– Toma teu rumo, moleque)

tudo o que conquistara e o rumo que a sua vida enfim tomara.

Certo dia, enquanto novamente participava de mais uma videoconferência de trabalho, por mera distração, esqueceu por alguns instantes a câmera e o microfone ligados, de modo que todos que estavam do outro lado da tela, na reunião, ao direcionarem os olhos para o quadradinho onde se lia “o cara”, puderam ver, atônitos, o que se passava entre ele e a mulher que o acompanhava naquele motel chinfrim às margens da Marginal Pinheiros. O choque foi geral.

Um dos participantes da reunião online, uma advogada com quem o cara já estivera numa cama muito similar àquela que a câmera agora revelava, aproveitou o descuido dele e a oportunidade que aquela câmera e microfone abertos traziam, e filmou toda a cena que seus olhos enciumados puderam acompanhar.

Poucos minutos depois, naquele mesmo dia, só que mais tarde um pouquinho, aquele vídeo tinha sido compartilhado inúmeras vezes, chegando, em menos de uma hora, aos celulares de milhares de pessoas, dentre as quais, a mulher com quem o cara era casado há mais de vinte anos.

A esposa dele, ao ver a traição do marido na tela de seu celular, em alta resolução, pôs-se a chorar como uma criança e, entre lágrimas, juntou todas as coisas dele – camisas, calças, sapatos, cuecas… – e jogou tudo na frente do prédio com mansarda e varandas gourmet onde moravam, em um bairro nobre de São Paulo, fazendo a alegria de alguns passantes.

Depois desse incidente, o cara acabou perdendo todos os seus clientes e teve tomados todos os seus bens pela agora ex-mulher. Não demorou a percorrer o caminho que o levaria de “o cara” até “um ninguém”.

Profundamente deprimido, ele acabou indo parar na rua, onde, para sobreviver, viu-se forçado a apelar para a prostituição, o que lhe proporcionava alguma renda, ao menos a suficiente para não morrer de fome. Há que se levar em conta que a idade já então pesava e ele não tinha mais os predicados que, em outros tempos, fizeram-no objeto de desejo de muitas mulheres.

Daquele cara, pouco ou quase nada havia sobrado.

A bem da verdade, a vasta maioria daquelas com as quais estivera nos motéis e garconnières da cidade, estavam em busca apenas de poder e dinheiro, tudo que aquele agora ninguém menos tinha.

Noite dessas, depois de beber uma garrafa inteira de pinga, adormeceu ali pelas imediações da Praça da Sé e, em sonho, viu sua mãe vir lhe dizer, num tom de bronca:

– Ninguém tropeça pra trás.

E, sentindo uma pancada forte na cabeça, acordar com um policial a lhe gritar:

– Levanta e toma teu rumo, seu merda!

No que ele então se levantou e, ainda atordoado, acabou tropeçando. Porém, desta vez, caiu para trás.

As andorinhas

Sempre que avistava meu pai a se aprontar para ir à feira, minha mãe lhe pedia:

– Aproveita e vê se traz um ou dois pacotes de laranja.

E frisava:

– Mas escolha aquelas de casca fina.

Certamente, por oferecerem mais suco ao serem espremidas.

Ainda assim, meu pai voltava da feira trazendo, nas sacolas carregadas de várias frutas, um ou dois pacotes de laranjas de casca grossa, todas elas praticamente secas por dentro. Para ele, a casca grossa conferia àquelas laranjas um certo tipo de virtude que faltava às laranjas de casca fina. Qual virtude, não sabia dizer. Justificava-se dizendo, simplesmente:

– Laranjas com casca grossa são mais resistentes, duram mais. 

Justificativa que não convencia minha mãe, que, então, decepcionada, reclamava:

– Essas laranjas não tem suco nenhum. Não havia lhe pedido para escolher as laranjas de casca fina?

Ao que meu pai, já então ocupado a cortar uns limões para a caipirinha, dava de ombros.

Imprestáveis para a função que minha mãe gostaria de lhes conferir

(suco)

as laranjas de casca grossa eram depositadas na fruteira, onde ficavam até apodrecerem, sendo, então, jogadas ao lixo.

Exceto por essa pequena desavença em relação ao tipo de laranjas a serem adquiridas, meu pai e minha mãe, mesmo sendo muito diferentes entre si, tinham uma dinâmica de casal bastante harmônica: mesmo após mais de trinta anos de casamento, pareciam ainda se amar – ao menos, tratavam-se com carinho e respeito.

A relação entre os dois seguiu bem, por anos a fio, sem nenhum sinal mais evidente de atrito.

Até que, de uma hora para a outra, meu pai, já então com setenta e dois anos, passou a responder de forma aleatória aos cumprimentos que recebia, nos seus passeios diários pela pequena cidade.

Dizia:

– Boa noite.

quando o cumprimentavam com um 

– Bom dia.

Ou

– Vou à padaria.

em resposta a um 

– Como vai?

Preocupada com o surto do marido, minha mãe levou-o ao médico, que, após analisar alguns exames, nada encontrou de errado na cabeça de meu pai.

– Parece o cérebro de um jovem.

Diagnosticou o médico, enquanto passava o cartão do plano de saúde pela maquininha de cobrança.

Naquele dia, minha mãe deixou o consultório do médico de mãos dadas com meu pai, e seguiram caminhando pelas ruas em direção à casa que ficava em um bairro próximo ao centro da pequena cidade, a mesma casa que um dia foi “nossa”, mas que passou a ser apenas “dos meus pais” quando de lá parti para estudar e trabalhar fora.

Era o final de tarde de um dia qualquer da semana, no mês de dezembro, quente como um braseiro em chamas. Baixando no horizonte, o sol parecia de fato uma brasa viva, ainda incandescente.

Quando passavam em frente a uma barraquinha de sucos, minha mãe convidou meu pai para tomar um suco de laranja geladinho. Perguntou a ele:

– Quer um suco de laranja gelado?

Ao que ele, de pronto, respondeu a ela:

– Acho que perdi.

Intrigada, mas pensando que meu pai continuava a responder de forma aleatória ao que lhe perguntavam, minha mãe quis saber:

– Perdeu o quê?

No que meu pai, com um olhar vazio a mirar o nada, respondeu:

– Perdi a capacidade de te amar.

E minha mãe:

– O quê!?

Com lágrimas começando a escorrer pelos olhos.

– Não te amo mais, Ana.

Meu pai afirmou, sem alterar o tom de voz. E minha mãe reagiu:

– Como pode dizer isso, Otávio?

Já num tom de voz bastante alto.

No que meu pai então respondeu, ajustando o tom de voz ao seu olhar triste:

– É o que sinto.

Em prantos, minha mãe, já crente de que aquela resposta não tinha nada de aleatória, pegou o copo cheio de suco de laranja que o vendedor lhe entregara e arremessou-o sobre o rosto de meu pai.

– Está vendo, Otávio! Era para fazer sucos assim que eu lhe pedia para comprar laranjas com casca fina!

Minha mãe gritou, com a voz embargada, sentindo sobre si o peso do olhar curioso dos poucos transeuntes que, naquele momento, por ali passavam. Momento em que ainda era possível ouvir o ruído dos bandos de andorinhas, sobrevoando a praça, ocupadas em encontrar um lugar seguro para passar a noite, em meio às folhas das palmeiras. As andorinhas voavam por entre as copas altas daquelas árvores, totalmente alheias aos destinos das gentes que andavam lá no chão, metros e metros abaixo delas.

Muitos anos se passaram desde aquele episódio, e no final das tardes de verão, quentes como feridas em alma viva, ainda é possível avistar o sol a se por no horizonte, enquanto as andorinhas sobrevoam a praça, buscando um local para dormir nas folhas das palmeiras.

Abigail

Para onde quer que fosse, costumava chegar em silêncio, quietinha, de maneira a chamar a atenção o mínimo possível. Sentia-se demasiado insignificante para ser notada.

Na verdade, Abigail era tímida, muito tímida, uma timidez tamanha que a fazia corar pelo simples fato de alguém lhe dirigir o olhar. Quando o que lhe dirigiam era a palavra, então, não apenas seu rosto corava, mas também seu coração punha-se a bater freneticamente.

Compelida por sua timidez, sai pouco de casa, indo à rua apenas para aquilo que lhe é essencial: o mercado, a feira, a farmácia.

Vive sozinha, às custas de uma pensão que seu pai, um militar da reserva, deixou-lhe ao falecer. Sua mãe morrera quando ela ainda era uma criança de colo. Abigail acabou sendo criada por sua tia, Dona Maria, irmã de seu pai, à época também solteira, condição que a acompanhou por toda a vida, até falecer pouco antes de seu irmão, o pai de Abigail, devido a um câncer no fígado que os médicos atribuíram ao excessivo consumo de álcool.

Certa manhã, enquanto punha as roupas para quarar no quintal detrás da casa, sob o sol escaldante de uma manhã de dezembro, ouviu tocar o telefone que ficava sobre uma toalhinha de crochê, depositada por sobre uns livros empilhados no chão da sala, ao lado do sofá, a fazerem as vezes de uma mesinha.

Abigail, que sempre evitara atender ligações telefônicas, pois mesmo isso lhe era causa de ansiedade e rubor, deixou o cesto de roupas ali, debaixo do varal, e foi caminhando apressadamente para dentro de casa, a fim de atender ao chamado do telefone, o que finalmente fez quando o quarto toque terminara de soar.

– Alô?

Alguém perguntou do outro lado da linha.

– É a Dona Abigail?

complementou.

Abigail estranhou o “Dona Abigail” – nunca ninguém a chamara assim: ou a chamavam “senhora”, quando não a conheciam, ou simplesmente “Abigail”. Jamais “Dona Abigail”.

A voz do outro lado da linha insistiu:

– É a Dona Abigail?

No que ela, já com o rosto todo vermelho, respondeu:

– Sim…

deixando clara a hesitação em sua voz.

Esclarecida, para quem ligava, a identidade de quem atendia o telefone, a voz do outro lado da linha prosseguiu:

– Dona Abigail, bom dia. A senhora já conhece a promoção do mercad…

Abigail desmaiou quando seu interlocutor ainda nem bem terminara a pergunta que lhe fazia.

Horas depois, ela acordou e viu-se deitada sobre uma cama, toda forrada de branco, em um quarto, todo ele decorado com um papel de parede com motivos de nuvens.

Numa mesinha de cabeceira, ao lado da cama, um telefone vermelho começou a chamar. Ao final do terceiro toque, ainda atordoada, Abigail atendeu.

Do outro lado da linha, alguém lhe sussurrou algo, tão baixinho que ela não conseguiu entender.

Quando Abigail finalmente conseguiu dizer um

– Alô…

hesitante, já tendo àquela hora o rosto adquirido a mesma cor vermelha do telefone, a ligação caiu.

Sem saber onde estava, ou mesmo quem lhe ligara e lhe sussurrara algo pelo telefone, tomada naquele momento por uma angústia sufocante, Abigail pôs-se a chorar, do mesmo modo como fazia quando ainda era uma criança de colo.

Foi quando, mesmo com os olhos embaçados pelas lágrimas, viu a porta do quarto se abrir e, por trás dela, surgir sua tia, Dona Maria. Ao ver Abigail ali deitada, chorando, Maria recolheu-a ao seu colo, sentou-se na poltroninha a um canto do quarto e, embalando-a em um vaivém vagaroso como o pêndulo de um relógio de parede cuja pilha se esgota, principiou a ninar Abigail, tal qual se nina uma criança, que, aos poucos

(como um relógio de parede cuja pilha se esgota)

foi parando de chorar, e por fim, caiu no sono.

Para onde quer que tenha ido, foi-se em silêncio, quietinha.

Memória de pirulito

Ontem, por volta do meio-dia e meia, uma velha senhora veio sentar-se à mesa, ao lado daquela que eu ocupava no restaurantezinho de bairro, muito simples, para onde eu sempre ia para almoçar. Nunca a tinha visto antes.

Havia percebido sua chegada pelo cheiro de talco de bebê que a acompanhou, a denunciar, pelo olfato, o quanto infância e velhice guardam em comum.

Enquanto esperava pelo meu prato, pedido já havia alguns minutos, distraia-me a olhá-la com afeto: lembrava-me minha falecida avó.

Imaginei-me chegando a casa dela e deparando-me, no quarto, com uma coleção de bonecas de plástico, amontoadas sobre o guarda-roupa, todas elas adquiridas em jogos de parques de diversão. Era assim o quarto de minha avó.

Como numa arquibancada, as bonecas ficavam a olhar, lá de cima, todo o movimento do cômodo, por trás do celofane colorido que as envolvia, para protegê-las da poeira. Tinham sorrisos estranhos, que mudavam a depender do olhar de quem as observava.

– Quero esquecer o amanhã.

Minha avó dizia, a querer justificar a manutenção de todas aquelas bonecas sobre o guarda-roupa.

– Tenho memória de pirulito.

Finalizava, sempre deixando quem quer que estivesse a ouvi-la demasiado atordoado com a linha de raciocínio ali exposta.

A garçonete veio servir meu prato, e só então se deu conta de que a senhora na mesa ao lado ainda nem fizera seu pedido.

Perguntou-lhe, então:

– O que vai ser hoje?

No que a senhora que cheirava a talco respondeu:

– O mesmo que ele.

Apontando para meu prato com o dedo indicador de sua mão direita, toda ela rechonchudinha a ponto de fazer os muitos anéis que portava parecerem encravados na carne dos dedos.

Depois que a garçonete anotou o pedido dela e o levou à cozinha para ser preparado, aquela senhora ficou a me observar, ora com o olhar sobre mim, ora sobre meu prato, a ponto de forçar-me a lhe perguntar:

– A senhora está servida?

Ao que ela, de súbito, respondeu:

– Obrigada. Pedi uma salada para mim.

Respondi, então:

– Ah, ok.

Confuso, pois, acabara de vê-la pedindo à garçonete o mesmo prato que eu comia: um picadinho.

Justamente o prato que, poucos minutos depois, foi-lhe servido pela garçonete.

Intrigado, tomei coragem e perguntei-lha:

– A senhora não havia pedido uma salada?

E ela, espantada, respondeu-me perguntando:

– Foi?

E completou, decidida:

– Foi não. Pedi mesmo um picadinho, igual ao seu.

E lançando sobre mim um olhar parecido com os das bonecas que minha falecida avó mantinha sobre o guarda-roupa dela, enquanto viva, completou:

– Mas vai saber, né? Sou muito esquecida.

E por fim justificou, em meio a um sorriso afetuoso:

– Tenho memória de pirulito.

Posso ter mais lembranças de você?

Mulher de muitas posses, viúva, sem filhos, Catarina vivia em sua mansão na companhia de sua cadela Nina, uma lulu da pomerânia de longos pelos na cor caramelo, e de sua criadagem: faxineira, cozinheira, motorista e uma cuidadora de idosos, para os quais Catarina nunca dirigia diretamente a palavra – toda a comunicação dava-se exclusivamente por meio de pequenos bilhetes de papel quadriculados, semelhantes a post-its, que Catarina deixava pela casa, com o nome do empregado a quem se dirigia na parte de cima, e na parte de baixo, o pedido escrito em francês.

Como nenhum dos empregados da casa era versado nesse idioma, mas apenas no português, não entendiam nada do que a patroa lhes pedia por meio daqueles bilhetes.

A comunicação oral tinha cessado por completo desde o falecimento de Ulisses, marido de Catarina, há dez anos. Uma das sequelas do trauma causado pela morte do marido foi a mudez de Catarina.

A casa funcionava meio que em modo automático, na base da experiência acumulada daqueles empregados e empregadas domésticos, que ali serviam desde muito antes de Seu Ulisses, como o chamavam, vir a falecer, repentinamente, de um infarto.

Dona Catarina, como a chamavam, de fato ainda não havia superado o luto pela perda de seu marido. Na cama, antes ocupada pelo casal, Catarina continua a dormir como se Ulisses ainda a acompanhasse: deitada a um canto, o mesmo que sempre ocupou, ela deixa vazio todo o resto da enorme cama de casal, como que a velar pelo corpo do falecido marido que, quando vivo, preenchia com seu corpo todo aquele espaço.

Espalhados por todas as paredes do quarto, apoiados ao chão ou presos às paredes, encontram-se vários porta-retratos com fotos de Ulisses e Catarina, sempre juntos, em vários momentos da vida. Os porta-retratos circundam todo o quarto, formando um halo em torno da cama do casal.

Todos os dias, ao acordar e antes de dormir, Catarina caminha por todo o quarto, passando em revista cada um daqueles porta-retratos, com um olhar triste e ainda inconformado. Em sua mente, não consegue mais distinguir a cronologia das fotos: para ela, era como se todas elas tivessem sido tiradas em um único dia, num mesmo local, muito embora naquelas fotografias estivessem documentados pelo menos uns vinte anos de história do casal.

(se tudo passa, por que você ficou?)

Certa noite, ao deitar-se para dormir, Catarina notou que Nina se aproximou e levantou seu pequeno corpo, num movimento que deixava claro que queria subir na cama para deitar-se com ela.

Embora muito afetuosa com a cachorra, Catarina nunca a deixava subir na cama, pois considerava aquele local sagrado como um santuário. A hipótese de Nina dormir com ela na cama, portanto, nem se cogitava.

Daquela vez, porém, vendo os olhos de Nina cheios daquela carência afetuosa que só os cães sabem demonstrar, Catarina concedeu que ela subisse na cama e ali dormisse junto dela. Sobre a cama, Nina dormiu sem ocupar o lugar que pertencia a Ulisses: dormiu colada ao corpo de Catarina.

Na manhã seguinte, quando os primeiros raios de sol começaram a entrar por entre as frestas da janela, como areia que escorre por entre os dedos, Catarina foi acordada por uma série de lambidas em seu rosto, o que fez com que ela sorrisse como não sorria desde a partida de Ulisses.

Mais tarde, para surpresa dos empregados da casa, que a tudo assistiam incrédulos, Catarina corria pelo jardim da mansão a brincar com Nina.

Quando retornou para dentro de casa, Catarina cumprimentou a faxineira:

– Bom dia, Maria.

o motorista:

– Bom dia, João.

a cozinheira:

– Como vai, Teresa?

e por fim sua cuidadora:

– Olá, Helena.

Com a mesma voz feminina e doce que há anos não se ouvia.

Daquele dia em diante, os bilhetinhos em francês não foram mais vistos pela casa. Catarina se dirigia a todos em conversas amigáveis e, quando pedia algo, sempre o fazia de forma muito educada e cortês, abrindo e fechando o pedido com um

– Por favor

ou um

– Por gentileza

e após a resposta da faxineira, da cozinheira, do motorista ou da cuidadora de idosos, invariavelmente ouvia-se de Catarina um

– Muito obrigada.

A João, o motorista, certo dia Catarina pediu que fosse à floricultura e trouxesse muitas flores – ela queria encher a casa de cores e perfumes, e substituir a tristeza que impregnava todos aqueles cantos, desde a morte de Ulisses, por um clima alegre e festivo.

À Maria, a faxineira, Catarina pediu que retirasse do quarto todos os porta-retratos com as fotos dela junto de Ulisses. Catarina queria aquelas paredes totalmente brancas, sem nada a ornamentá-las.

Quando a noite caiu, ao final daquele dia, as paredes do quarto já não traziam mais nenhum ornamento: todos os porta-retratos tinham sido removidos para o sótão da mansão, longe da vista de todos.

Ao ir se deitar para dormir, Catarina novamente recebeu Nina para fazer-lhe companhia, desta vez num quarto todo branco como uma nuvem

(que, como tudo, passa)

E foi então que Catarina pôde finalmente

(passou)

dormir em paz.

Na escuridão de sua voz

Sentavam-se à mesa para jantar sempre no mesmo horário, por volta das sete da noite. Como de hábito, ele a acomodava sentada na cadeira, no lado oposto ao dele, na pequena mesa redonda, e servia, ele mesmo, o jantar para os dois.

Invariavelmente, era servido algo muito leve, frugal: uma sopa e alguns pães, para as noites mais frias; legumes cozidos e alguma carne grelhada, para aquelas mais quentes. Para acompanhar a comida, água natural.

Enquanto comia, Pedro ia contando de seu dia a Helena, que a tudo ouvia sem dizer uma palavra.

O jantar todo não demorava mais que uns quarenta minutos e, uma vez finalizado, Pedro retirava a mesa, levando pratos, talheres e tigelas para a cozinha, onde punha-os sobre a pia e, em dez minutos, no máximo, tinha-os todos lavados e secos, prontos para o uso novamente.

Pedro então retornava à mesa do jantar, tomava Helena em seus braços

(como na nossa lua de mel, lembra-se?)

e a levava para o sofá da sala, onde, diante da televisão ligada em alguma novela, noticiário ou mesmo algum filme, ficavam até o sono chegar. E quando este vinha, Pedro desligava a televisão e dormia ali mesmo no sofá, na companhia de Helena.

Na escuridão de sua voz, as noites sempre vinham contar a Pedro, sob a forma de sonhos e pesadelos, as mais variadas histórias. Numa dessas, Pedro e Helena estavam diante do altar, cercados de padrinhos e madrinhas, elegantemente vestidos para aquela ocasião. À sua frente, um padre lhes indagava:

– Pedro, aceita Helena como sua esposa?

No que Pedro, em sonho, respondeu:

– Sim.

Em seguida, o padre perguntou a Helena:

– Aceita Pedro como seu esposo?

E daí seguiu-se um enorme silêncio, que só foi quebrado pelo barulho de alguém batendo à porta da sala.

Pedro acordou e, ainda meio zonzo de sono e sentindo a boca amarga, levantou-se, foi até a porta e a abriu.

Do lado de fora, um entregador trazia nas mãos uma grande caixa de papelão. Pedro assinou o recibo de entrega e, após despedir-se do entregador e lhe agradecer, voltou para dentro de casa.

Aproveitando que Helena ainda dormia sobre o sofá, dirigiu-se para o quarto, onde, ansioso e com um sorriso no rosto, abriu a caixa.

Pedro veio às lágrimas de alegria quando, dali de dentro daquela grande caixa de papelão, viu surgir Rita, sua mais nova esposa inflável, novinha em folha.

De volta pra casa

Era-lhe inevitável a sensação de vingança quando, ali no meio daqueles anúncios das páginas funerárias do jornal, via anunciada a morte de algum desafeto do passado.

– Aqui se faz, aqui se paga.

Regozijava-se João todas as vezes que isso acontecia, sempre esboçando um sorriso no canto da boca.

Ao contrário do que fazia com o restante do jornal, sobre cujas páginas apenas passava distraidamente os olhos, quando a leitura recaia sobre as páginas funerárias não lhe bastava simplesmente ler, era necessário focar a leitura com a ponta do dedo indicador, que ficava a percorrer aqueles anúncios como um revolver que mira suas vítimas.

Terminada a leitura, João recortava aqueles anúncios e arquivava numa pasta, colocando cada anúncio em um plástico específico. Era uma pasta bastante volumosa e pesada, que ele guardava bem escondida, por debaixo de umas caixas que ficavam em um quartinho nos fundos do apartamento, onde antes havia um banheiro de empregada.

João tinha 80 anos e vivia sozinho em um apartamento bastante amplo dos anos 50, no meio da Avenida São Luiz, com vista para boa parte do centro de São Paulo, suas riquezas e suas misérias.

Funcionário público aposentado, João nunca se casara. Era então o único sobrevivente de uma pequena família: pai, mãe e dois filhos, um deles, o mais novo, o próprio João.

Além de ler o jornal, sua rotina diária limitava-se a ficar horas e horas a observar os prédios à frente de seu apartamento e a breves caminhadas até o mercado e a farmácia, a fim de buscar os mantimentos e os remédios que sua aposentadoria ainda lhe permitia adquirir. Ao longo dos anos, a conta da farmácia foi ficando maior, enquanto a conta do mercado foi diminuindo. Ainda assim, comparado aos seus contemporâneos

(aqueles que ainda sobreviviam)

João era um homem que podia se considerar um privilegiado portador de boa saúde.

Dia desses, enquanto lia o jornal e, como de costume, procurava por nomes conhecidos por entre aqueles cuja morte os anúncios funerários faziam a todos saber, João deparou-se, surpreso, com seu próprio nome, escrito logo abaixo de uma cruz. Ao lado do nome, constava uma data de nascimento igual à dele, seguida de uma data de falecimento a indicar o dia de ontem como seu marco.

– Há de ser coincidência.

Pensou, enquanto seus olhos ainda miravam o anúncio, com as pupilas dilatadas pela curiosidade que fato tão inesperado lhes causara.

Intrigado, João recortou o anúncio e, quebrando um pouco sua rotina de apenas sair para ir ao mercado e à farmácia, tomou um táxi e foi até o endereço onde se daria o velório daquele seu homônimo cuja morte o jornal anunciara.

O local do velório ficava em uma capela de bairro, pequena, que estava completamente vazia quando João chegou, muito embora aquele fosse o horário anunciado do velório. Não havia caixão, nem defunto, nem flores, nada nem ninguém.

Ao redor de João, na nave da igreja, havia apenas estátuas de anjo a olharem para baixo, entediados. O silêncio ali dentro era tamanho que João podia ouvir o pulsar de seu sangue em suas têmporas, dilatadas devido ao calor intenso do dia.

Sentou-se em um dos bancos da capelinha e ficou a admirar a decoração interna, cuja exuberância e riqueza de detalhes contrastava com a simplicidade da parte externa.

João ficou ali até a fome apertar e, quando isso ocorreu, levantou-se e foi embora, tomando o caminho de seu apartamento, ainda intrigado com tudo que lhe ocorrera naquela manhã.

Quando o táxi que havia tomado chegou à Avenida São Luiz, João não soube indicar ao taxista onde deveria parar: não se lembrava qual daqueles prédios, colados um ao outro, era o seu.

Pediu ao taxista:

– Pode parar aqui.

Indicando um local qualquer quase na esquina com a Rua da Consolação. Ali ele desceu do táxi e seguiu caminhando pela calçada da Avenida São Luiz, como que sem destino, pois ainda não conseguia se lembrar onde morava.

Diante do Edifício Itália, João começou a sentir uma angústia crescer dentro de seu peito, como que a querer devorá-lo vivo. Olhava ao redor, na tentativa vã de se recordar onde morava: estava perdido.

Foi quando um senhor aproximou-se dele e, percebendo que João parecia precisar de ajuda, ofereceu-se

– O senhor precisa de ajuda?

para ajudá-lo.

Ao voltar os olhos para o senhor que lhe oferecia ajuda, João reconheceu no homem um dos seus muitos desafetos do passado: era Heitor quem estava ali diante dele, o mesmo que, há vinte anos, traíra a sua amizade ao revelar, aos pais de João, que ele mantinha relações com michês que, naquela época, faziam ponto na Avenida São Luiz, logo em frente ao prédio onde João morava, fofoca que acabou resultando na quebra de relação entre ele e seus pais.

João era capaz de se lembrar disso com detalhes, embora não estivesse conseguindo se recordar do prédio onde morava.

Depositou a dor dessa lembrança em sua mão em punho, com a qual desferiu um potente soco no rosto de Heitor, que, atordoado, caiu ao chão, batendo a cabeça na quina da calçada: o óbito foi imediato.

– Aqui se faz, aqui se paga.

Pensou João, com os olhos injetados de sangue, logo depois de ver o desafeto cair morto ao chão.

Foi então que dois policiais surgiram do nada e agarraram João pelos braços, algemando suas mãos e levando-o ao camburão.

Dali, ele foi levado para a delegacia mais próxima. Na sela onde foi lançado, João reconheceu os móveis e objetos de seu apartamento: estava em casa.

Na calada do dia

Na calada do dia, ela caminhava,
Sob o sol do meio-dia, sol a pino,
Que não só a aquecia, como também ardia, queimava.
Seu corpo enfraquecia, sua alma alquebrava.
Ainda assim, seguia, continuava.
Não havia alternativa: de seu destino era escrava.
Quando lhe perguntavam pra onde ia, não respondia, apenas baixava a cabeça e chorava
Lágrimas que mal chegavam a ver o dia, pois assim que nasciam em seus olhos, a dureza de sua condição logo as secava.
Mais tarde, sem forças, viu-se caída no chão, vazia de vida.
A sua acabava ali, enquanto o mundo ao redor girava,
Indiferente a mais essa morte,
A morte de mais uma trava.

Depois da tempestade vem a calmaria

A tempestade nem bem terminara, quando Maria entrou pela porta do apartamento toda trôpega — por pouco não deu com a cara no chão após tropeçar com desengonço no capacho da soleira. Estava aflita: seu rosto, de tão pálido, parecia o caule de um broto de feijão. O olhar perdido vagava sem rumo pela sala como uma alma penada, sem se fixar em ponto nenhum — parecia vir de uma longa e dolorosa peregrinação à beira do abismo da morte.

Vendo-a assim chegar, sua companheira, com quem dividia o apartamento, assustada, correu para acudi-la – “Calma, Maria!”, gritou Socorro.

O silêncio de Maria

Era um homem muito quieto, desses cujo som da voz ninguém nunca ouvia, Quando perguntado a respeito de algo, apenas com resmungos respondia, no que o interlocutor ficava sem saber se aquilo significava um consentia ou dissentia, De onde ele era, ninguém sabia, Vivia ali na praça da Matriz, onde passava seus dias, a olhar em direção ao nada, até desviar o olhar quando alguém ao seu lado aparecia, Não falavam nada, quando muito apenas uma troca de olhares desconfiados surgia, A uns, sua figura causava repulsa, antipatia; para outros, uma minoria, ele era uma figura cheia de simpatia, Comia o que lhe davam, ali mesmo dormia, e assim sua vida seguia, Só se mexia para procurar uma sombra, fugindo do sol do meio-dia, e pra atender aos chamados da natureza, no banheiro nos fundos da padaria, Em troca desse favor, ao dono oferecia os préstimos de deixar o local sempre muito limpo: aquilo de fato reluzia, Aos domingos, chegada a hora da eucaristia, tentava adentrar a nave da igreja, mas o padre nunca o permitia: seus trajes eram rotos demais, seu corpo fedia, e aquele era um lugar sagrado, — Deus lá em cima tudo via, e respeito exigia! assim o padre, em tom severo, o advertia, Seu verdadeiro nome ninguém sabia, Para todos, ela era apenas mais um desses que da vida se perdia, a vagar pelo mundo, vivendo sem futuro, o dia após dia, Numa manhã fria, a bruma ainda espessa, nada se via, ele tremia, em vão se encolhia, foi quando uma jornalista, jovem mocinha judia, que, por não frequentar a eucaristia, nem dele sabia, apareceu, e quis saber de sua história, Ela precisava de uma matéria para encher a pauta do jornaleco “O Dia”, um jornal que, apesar do nome, era semanal: a cidade, de tão pequena, não tinha notícia pra encher página todo dia, A jovem jornalista era jeitosa, toda sorrisos e simpatia, e assim conseguiu o que queria, A entrevista correu bem, quem diria! E terminaria a tempo de ela ainda passar no banco e pagar uma conta que naquele dia vencia, Para concluir, ao indagar-lhe o nome, ele respondeu-lhe “Maria”, Ante tal resposta, surpresa, sem nada entender, assim ela permanecia, mas pensou: — Com essa descoberta, minha entrevista vai finalmente ser capa de “O Dia”, Assim sonhava acordada, em plena luz do dia, Quando a matéria saiu, a cidade ficou em polvorosa, todos a perguntar como algo assim podia: um homem chamar-se Maria!? Até então, ninguém notara sua androginia, A polícia foi chamada, e o pobre Maria foi levado para a delegacia, onde, por quanto fosse interrogado, nada respondia, O delegado, com medo do que a opinião pública a respeito diria, mandou silenciar Maria, Um médico fora chamado para atestar que se tratava de morte natural, nada de mais, O doutor era homem de família, ninguém na cidade ousaria por em dúvida sua conclusão sobre o fim de Maria – ninguém nem sequer sobre isso discutia, O silêncio coletivo imperava, No íntimo, pensavam aliviados: — Restabeleceu-se a ordem que Deus queria, No dia seguinte, a cidadezinha voltaria à pacata rotina de seu dia a dia, Deram pela falta de Maria apenas na padaria: o banheiro não mais reluzia.

Benedito Calixto

Recordo-me exatamente do texto do cartão que, dentro de um envelope, colado ao papel crepom que embalava o presente, entreguei a você nesta mesma data há exatamente um ano, mas não consigo me lembrar do presente em si, Talvez por que este tenha sido um simples pretexto para que as palavras escritas naquele cartão (uma carta, para ser mais preciso) chegassem até você, Tínhamos acabado de terminar nossa relação – por iniciativa sua –, e eu ainda estava naquilo que as pessoas chamam de período de luto, Nunca gostei de adotar essa palavra para esse tipo de situação – para mim, luto diz respeito ao sentimento de pesar pela morte de alguém e você não tinha morrido: tínhamos apenas nos separado, Você seguiu seus caminhos; eu segui os meus, Nossas histórias, que antes eram comuns em muitos pontos, como que escritas por uma mesma mão, em uma mesma folha de papel, passaram a seguir enredos absolutamente separados e independentes, Num instante, você era parte de minha vida, e eu da sua – dormíamos e acordávamos juntos, saíamos para jantar, ir ao cinema, ao teatro, freqüentávamos nossos amigos… –, no instante seguinte, seríamos um para o outro apenas espectros de um passado, vislumbrado apenas pelas nossas memórias, à maneira da luz da lanterna de um guarda noturno que vigia uma estação de trem durante a madrugada, encontrando pelo chão restos da vida que transcorrera ali durante o dia, Desde então, e até hoje, nunca mais soube de você – evitei de todas as formas frequentar os mesmos lugares a que íamos juntos: tinha pânico só de me imaginar em qualquer um deles sem você, Assim agi durante esse último ano todo, Você pode pensar que foi loucura de minha parte, no que estaria coberto de razão, Demorei a me convencer de que estava mesmo cometendo uma loucura vivendo dessa forma, Eu estava me privando daquilo que para mim é uma das coisas mais valiosas da vida: minha liberdade, Sim, minha liberdade de poder ir a qualquer lugar – qualquer mesmo –, quando bem entendesse, a meu livre e exclusivo alvitre, Essa liberdade viu-se surrupiada de mim por todo esse período, Só hoje, enquanto fazia uma limpeza de gavetas lá em casa, que decidi me livrar da cópia xerográfica daquela carta, rasgando-a em pedacinhos, não sem antes fazer uma última leitura de seu teor, o qual eu quase trazia de cor, tantas vezes eu o lera, Acho que foi a primeira vez que li aquelas palavras sem que meus olhos nem sequer marejassem, Quando escrevi a carta – e levei dois dias (um sábado e um domingo) para escrevê-la –, chorei sem parar: cada palavra parecia extrair de mim emoções tão profundas quanto dolorosas, A pior de todas era a solidão do abandono, da rejeição, por pouco, muito pouco, eu diria, não entrei em depressão (ou entrei?), Lembro-me que dois meses depois daquele dia, eu estava numa mesa de bar, rodeado de amigos, e simplesmente não emitia uma palavra, estava ali, mas não estava, estava em corpo, mas não estava em alma, Olhava para todos ao meu redor falando, falando, e eu nada ouvia, imerso em uma melancolia de nevoeiro sobre um lago no inverno, absorto em meus pensamentos, que por sua vez estavam a repetir, em um frenético e incontrolável flashback, aquele momento em que me convidara para um café, apenas como pretexto, como fui saber depois, para dizer-me que não me amava mais e que nossa história pararia ali – era uma sexta-feira, Naquela noite não dormi, por mais que me dopasse, o nervosismo parecia anular o efeito do sonífero, Passei a noite toda sentado no sofá da sala, olhando para o nada, chorando e rememorando aquele momento, Comecei a escrever a carta quando o sábado nem bem tinha amanhecido, só parava para ir ao banheiro e comer – nada mais, E assim segui pela noite de sábado afora até a madrugada do domingo, quando enfim parei e consegui adormecer, No domingo à tarde, quando despertei, parecia que tudo aquilo tinha sido um pesadelo, mas não tinha, E fui dar-me conta disso quando vi aquelas dez folhas da carta manuscrita ali ao meu lado na cama, Eram a prova física, material, da dor emocional que eu vivera na real, não em sonho, Minha cabeça doía como se tivesse sido batida repetidamente e com força sobre uma eira, Acordei naquele dia e, além de “reaprender a andar” – como faço todos os dias dado que não sou uma pessoa matutina –, tive que aceitar que tudo aquilo tinha de fato ocorrido, e que pela frente eu teria então que me deparar com um colossal exercício de superação: eu teria que reaprender a viver, ser feliz, amar…, E para todo esse reaprendizado levei um ano, (As borboletas dentro da lata de ervilha Jurema estão mortas.), Não saberia mensurar quanto cresci emocionalmente com esse episódio – bem verdade que nem saberia dizer se isso foi ou é possível, Quero crer que nem tudo foram perdas, que eu cresci, amadureci, mas isso é apenas uma suposição – otimista, Foi um ano em que minha vida transcorreu como a melancolia solitária de um quadro de Edward Hopper, Felizmente, hoje tudo isso é passado, embora seja um passado que ficará por um tempo (a vida toda?) incrustado em meu ser como um nicho, fechado a partir do momento em que rasgara a cópia daquela carta, E cá estou, diante de você, Não, não vim aqui pedir para voltarmos, ou coisa do tipo – nada disso, Não sou louco a esse ponto, Vim apenas para pedir-lhe a via original da carta, caso ainda a tenha, Ela guarda manchas das minhas lágrimas, coisa que a cópia não tinha – pelo menos não nitidamente, Gostaria de emoldurá-la em um quadro e pendurá-la em um espaço que tenho ainda vazio na parede da parede do quarto, Encontrei uma moldura linda outro dia naquele mercado de pulgas ali da praça Benedito Calixto, e logo pensei que essa carta seria ideal para preenchê-la, à maneira de um quadro desses de naturezas mortas.

Semblante

Olho seu semblante,
E nele vejo refletido o peso
Da eternidade presa
À dor daquele instante.

Em seus sulcos, meus dedos lêem
O sofrimento pungente
De uma mágoa ingente
Que, do perdão descrente,
Nega-se a seguir em frente.

Veementemente…

O silêncio falou mais alto

Era sempre assim: quando eu falava A, ele entendia Bê. Daí decidi lançar mão do Cê, e ele me veio com um “o quê?”. Tentei então a língua do Pê…, pra quê! Levou pro lado pessoal. A linguagem dos sinais foi mais uma que, em vã tentativa, viu-se frustrada: na mistura com nossas cicatrizes, acabou toda borrada. Estávamos tão cegos, que nem em Braille conseguíamos nos “ler”: pura cegueira emocional, vai ver. Teria esperança no esperanto, mas como?, se nem o inglês teve vez. Queríamos virar a página, mas antes teríamos de estar na mesma…, e não estávamos.
A linguagem corporal, como era de se esperar, logo veio pedir a palavra pra nosso cansaço denunciar. Não tardou, a partir daí, para que, enfim adormecidos, finalmente nos calássemos.

O artista

Agradava-lhe caminhar pela manhã e sentir a luz do sol, os cheiros, ouvir os sons ainda frescos de um dia ainda jovem. Isso de certa forma o fazia relembrar do tempo em que ele mesmo era jovem.

Ao caminhar, seu passos firmes faziam vibrar todo o seu corpo, alcançando certa harmonia com os batimentos de seu coração. Raimundo sentia-se vivo depois de passar tantos anos 

(já não se lembrava mais quantos)

preso em uma sela, imunda, suja, escura e superlotada, onde as vidas, apesar de numerosas, tinham quase nada de valor.

Ele fora parar ali depois de ser detido enquanto cantava para alguns transeuntes, em uma das esquinas do Viaduto do Chá. Acusado de “artista”, sem direito a se defender ante as provas evidentes a respeito de seu crime, naquele mesmo dia foi enjaulado e, desde então, passou a viver naquela prisão, só vindo a ver-se enfim livre muitos anos 

(já não se lembrava mais quantos)

depois, quando já não mais conseguia cantar: deixara de ser aquele artista que antes encantava com sua música as pessoas simples com quem cruzava pelas ruas do centro da cidade. Só lhe restava o estado miserável de quem toda a humanidade fora extraída: não era mais um homem, apenas um homem a mais.

No finalzinho da tarde, depois de passar o dia a perambular sem rumo pela cidade, catando comida entre restos que encontrava nas lixeiras, Raimundo parava em um bar qualquer. Sentava-se sozinho, ao balcão ou à mesa, e pedia uma caninha. Para ele, beber era como uma reza.

Depois da primeira, pedia outra, e então mais outra, e outra, até que a embriaguez lhe jogasse ao chão, e depois disso ele acabava sendo expulso do bar, atirado à calçada. Com sorte, isso ocorria sem que apanhasse, fosse xingado. Raimundo não era propriamente um homem de sorte.

Na manhã seguinte, tão logo acordava, punha-se novamente a caminhar, caminhar, caminhar, sem olhar para trás.

Certa manhã, por volta das 11 horas, enquanto ainda caminhava, cruzou com uma sombra pelo caminho. Ela se dirigiu a ele e lhe disse algo que Raimundo não entendeu bem. Só compreendera algumas poucas palavras do que ela lhe dissera e, dessas poucas, esqueceu-se de todas, de modo que era como se a sombra nada lhe tivesse dito. Mas ficou em sua lembrança o sorriso da sombra: a única parte dela que podia de fato ser vista, já que todo o resto era um breu só. A sombra tinha um sorriso maroto

(traiçoeiro talvez)

que convidava Raimundo a, com ela, também sorrir, o que Raimundo não fez por falta de prática. 

Desde que fora preso, e mesmo depois de solto, Raimundo adotara uma feição grave, demasiado séria, pouco afeita a distrações, uma vez que estas passaram a ser sinônimo de aberturas para agressões de todo tipo. O rosto carrancudo era-lhe, portanto, uma forma de defesa.

– Não se pode baixar a guarda aqui.

Alertou-lhe, certa vez, um colega da prisão, quando percebeu que um grupo se aproximava dele a fim de espancá-lo. Daquela vez escapou. De outras tantas, não.

Outro dia a sombra apareceu diante dele mais uma vez, um pouco mais tarde que quando da primeira vez. Tinha no rosto aquele mesmo sorriso maroto

(traiçoeiro talvez)

a convidar Raimundo para também sorrir. Cansado e sedento por causa da caminhada, ele acabou seduzido por aquele sorriso, pois viu nele um copo d’água fresca a que lhe era oferecido. Não resistiu e bebeu.

Na manhã seguinte, não caminhou.

Tem coisa que só sai da gente por escrito

Todas as tardes, ela caminhava até a porta da sala e, de cara para a rua, punha-se a picotar as cartas que trazia em uma sacola plástica, dessas de supermercado. Dali daquela porta, ficava a lançar os pedacinhos das cartas sobre a calçada, até que, ao modo das folhas do outono, eles cobrissem todo o trecho em frente ao sobrado onde morava.

Não eram cartas quaisquer que Aurora picotava, eram cartas de amor, dezenas delas, acumuladas ao longo de toda uma vida. Cartas que carregavam desabafos, angústias, ansiedades, ódios e, também, muitos amores, estes não raramente ornamentados com corações desenhados com canetinha hidrocor vermelha, a destacar os diversos

“eu te amo”

ou mesmo os

“sinto sua falta”

e até os

“não sei viver sem você”

com que ela preenchia aquelas cartas.

Com canetinhas de outras cores, ela pintava as letras dos

“eu te odeio”

ou

“nunca mais quero te ver”

e os ainda mais definitivos

“suma da minha vida”.

Na verdade, nem sempre tão definitivos, pois muitos desses

“suma da minha vida”

foram depois seguidos de reconciliações, que, uma vez concretizadas, punham em marcha novos ciclos de

“eu te amo”

e

“sinto sua falta”

e

“não sei viver sem você”

sempre ornamentados com corações desenhados com canetinha hidrocor vermelha.

Aurora colecionava essas cartas desde a mais tenra adolescência, quando sua letra ainda era de

– Menininha.

como dizia sua mãe, ao revisar suas tarefas escolares, a fim de garantir que a filha fosse sempre a primeira da classe, missão que sua mãe conseguira bem cumprir apenas enquanto Aurora foi de fato uma

– Menininha.

Fase que terminou quando, já desinteressada dos estudos, Aurora escreveu sua primeira carta de amor ao menino, loiro, que à época tinha a mesma idade dela, e cuja família se mudara, dias antes, para o sobrado vizinho.

O sobrado estava até então vazio, pois sua antiga e única moradora, Dona Sônia, que ali residira por todos os seus últimos dias, sozinha, havia falecido de causas naturais, repentinamente, caindo ao chão como um passarinho que, de uma hora para a outra, vê-se sem asas em pleno voo.

Foi Dona Sônia que ensinara Aurora a escrever cartas de amor. Dizia-lhe sempre:

– Tem coisa que só sai da gente por escrito.

Ensinamento que guiou Aurora por todas as vezes em que se punha a escrever suas cartinhas, as quais, pouco depois de completar 80 anos, trazendo na pele da alma as muitas feridas de amores passados, desesperançada de um dia poder voltar a amar alguém e sozinha no mundo como Dona Sônia vivera antes de morrer, passou a picotar, jogando os pedacinhos, pequenos como confetes, por sobre a calçada, vez ou outra atingindo algum pedestre que por ali passava bem nesse momento.

Ninguém entendia a razão por que Aurora, todas as tardes, desde completar seus 80 anos, vinha cumprindo esse ritual de picotar as cartas de amor que tão zelosamente guardara ao longo dos anos, todas elas escritas de próprio punho e nunca enviadas aos seus destinatários.

(dos quais Aurora nunca recebeu carta nenhuma)

Certa vez, questionada por uma vizinha sobre o porquê daquele gesto, Aurora deu de ombros e respondeu simplesmente:

– Estavam a juntar traças dentro de casa.

E seguiu picotando as cartas e jogando à calçada os seus pedacinhos, tão pequenininhos que, ainda que fossem colados de volta, não garantiriam o retorno da carta à sua legibilidade de origem.

– Tem coisa que só sai da gente por escrito.

Ensinava-lhe Dona Sônia – uma lição que Aurora bem apreendeu.

Por outro lado, a vida lhe ensinara que outras coisas só saem da gente quando de fato as destruímos e jogamos fora, muitas vezes nos deixando em pedacinhos.

Hélio

À noite, gostava de subir no telhado de casa, onde, deitado de barriga para cima, de frente para o céu, ficava a observar as estrelas. Imaginava-se podendo tocá-las com as mãos e moldá-las, de maneira a recriar as constelações sob novos formatos.

Assim ficava por horas, até que sua mãe o chamasse para dormir. 

– Vem se deitar.

No dia seguinte, a família toda acordaria para ir trabalhar, bem cedo, quando os primeiros raios de sol ainda nem bem tinham irrompido no horizonte.

Trabalhavam em uma fábrica de armas, cada um alocado em uma parte da linha de produção: o pai na primeira montagem, o filho no polimento e a mãe ficava com a embalagem. Hélio, o filho, tinha dezessete anos e trabalhava naquela indústria desde os doze. Foi seu primeiro e, até então, único emprego. 

Não lhe agradava aquele trabalho, mas, filho de uma família pobre, seu salário era essencial para compor o mínimo necessário para sustentá-lo e, também, seu pai e sua mãe. Naquela região do país, não havia outra indústria a não ser aquela. Por pior que fosse, ainda era melhor que trabalhar na roça, pois pelo menos pagavam todos os direitos e o trabalho ia de vento em popa, dado o aumento no consumo de armas, que contrastava com a queda no consumo dos alimentos.

Ao final do expediente na fábrica, quando a noite ia caindo, Hélio seguia para casa junto com seu pai e sua mãe. Voltava cansado, mas ansioso para deitar-se sobre o telhado e, novamente, contemplar as estrelas.

Numa noite particularmente quente e estrelada, a voz de sua mãe a chamar-lhe:

– Vem se deitar

pois

– Já é tarde.

Como todas as noites se ouvia, então não se ouviu. Não que sua mãe nas as tivesse dito, mas quando o fez, Hélio já estava a quilômetros de distância dali, embarcado no ônibus que o levava para a cidade grande: São Paulo.

Saiu às escondidas de casa, levando uma mochila às costas apenas com as trocas de roupa suficientes para uma semana.

No final da madrugada, ao avistar as luzes da grande metrópole no horizonte, Hélio tentou moldá-las com as mãos como fazia com as estrelas que costumava observar no céu, do alto do telhado da casa de seus pais. 

Frustrado com a inutilidade de seu gesto, recolheu os braços e aguardou, apreensivo, o momento que o ônibus chegaria à rodoviária, algo que aconteceu no final da madrugada, quando o dia nem bem nascia. Uma forte neblina então cobria a cidade.

Hélio desceu do ônibus e, seguindo o enorme fluxo de gente que, àquela hora, descia de inúmeros outros ônibus, subiu uma longa escada rolante até o andar superior da rodoviária, todo ele repleto de ainda mais gente, alguns guichês e lanchonetes. Um tanto atordoado com todo aquele movimento e sem saber ao certo para onde ir, ficou por um bom tempo a contemplar o ir e vir de pessoas, até que

– Já é tarde.

ouviu uma mulher a dirigir-lhe essas palavras, da mesma maneira que sua mãe fazia quando ele, noite alta, ainda insistia em ficar deitado sobre o telhado a contemplar as estrelas lá no firmamento.

– Já é tarde, Hélio.

Sua mãe a dizer-lhe.

E quando Hélio abriu os olhos, viu-a diante dele, vestida com o uniforme de trabalho.

– Hora de levantar.

A chamá-lo para mais um dia de trabalho na fábrica de armas.

Laura

Sentada à mesa da cozinha, a mãe aguardava ansiosa pela chegada da filha que há muito não via. Dois anos se contavam desde quando a filha a visitara pela última vez.  Laura, a mãe, lembrava-se bem daquele dia: brigaram muito, xingaram-se, um desentendimento besta, coisas de mãe e filha, mágoas que passam com o tempo

(ela pensou à época)

e logo dão lugar à saudade.

Assim de fato ocorreu, mas demorou dois anos para que ambas pudessem novamente voltar a conversar, dois anos para que uma ouvisse da outra, do outro lado da linha telefônica:

– Está tudo bem, mãe?

e sua mãe responder:

– Tudo bem, sim, minha filha.

A hora ia passando, passando, e a ansiedade de Laura só crescia. A filha disse que chegaria a tempo para o almoço, mas nada de aparecer até então. Ao olhar o relógio na parede, viu-o marcar duas da tarde. O combinado era que a filha chegaria, no máximo, por volta do meio dia e meia.

(teria acontecido algo?)

Laura estava preocupada.

Um pardalzinho entrou na casa pela janela da cozinha e passou voando por sobre a cabeça de Laura, bem rente aos seus cabelos. No susto, ela levantou-se e saiu correndo apressada pela casa. Pelo caminho, cruzou com um grande espelho que servia de decoração a uma das paredes da sala, olhou para a imagem que o espelho refletia e não se reconheceu.

(quem seria aquela mulher ali refletida?)

A imagem que o espelho refletia era de uma mulher muito mais velha, com a pele do rosto demasiadamente enrugada, as bochechas cavadas e os olhos fundos, mal vestida, suja até. Algo estranho para Laura, uma mulher que costumava ser muito vaidosa e cujo medo de envelhecer era maior que o céu. Orgulhava-se de ouvir de quem a encontrava:

– A senhora não aparenta a idade que tem.

e quando caminhava junto a sua filha

– Parecem irmãs.

Desde a briga com a filha, sem se dar conta, Laura deixara de se cuidar: os cremes que sempre passava no rosto antes de dormir foram esquecidos numa gaveta do armário do banheiro; os cabelos não foram mais pintados, tornando-se brancos como cal; vestia as mesmas peças de roupa por dias seguidos, às vezes até semanas; alimentava-se de maneira nada saudável. Mesmo os banhos passaram a ser menos frequentes. Como, desde então, ela pouco ou quase nada saíra de casa, quase ninguém a viu. Dizem mesmo que uma velha como ela é quase invisível.  

Somente após alguns minutos fitando, completamente inerte, aquela imagem refletida no espelho, foi que Laura finalmente aceitou que era ela que estava ali refletida, e não aquela mulher que, há pouco mais de dois anos, ao cruzar com as pessoas, ouvia:

– A senhora está bastante conservada.

e quando caminhava junto a sua filha…

Bem, já há um bom tempo que não caminhava com sua filha, que, aliás, estava atrasada demais e não dava notícias de seu paradeiro. Laura estava cansada de esperar. Sentiu-se desprezada.

Foi até a cozinha e jogou no lixo todo o almoço que havia preparado: o arroz, o feijão, a carne… tudo acabou dentro do cesto de lixo, junto com a sobremesa que ela preparara: um pudim de leite sem furinhos, o preferido da filha.

Depois de tomar um banho, trocou de roupa e saiu para ir ao salão de beleza. Foi caminhando pela rua, meio cabisbaixa, e logo chegou ao salão, onde a atendente, a mesma que sempre a atendera, recebeu-a com o sorriso que costumava esboçar quando Laura ainda era uma freguesa fiel.

(o mesmo sorriso para todas as clientes)

Foi então que a atendente disse, surpresa:

– Meu Deus!

E então perguntou, já um pouco menos exaltada:

– Está tudo bem, mãe?

no que Laura de pronto lhe respondeu:

– Tudo bem, sim, minha filha.

(em tom sereno)

Dito isso, foi sentar-se num dos muitos lugares vagos do salão de espera vazio, todo ele pintado de vermelho, a imitar o formato de um coração.

Saudades

A pequena vila, com seus sobradinhos espremidos um ao lado do outro, era uma ilha de tranquilidade em meio ao agito trazido para aquele bairro pelos muitos espigões que, no decorrer dos últimos anos, foram erguidos ao redor, fazendo aumentar a população local de pessoas, de carros, o trânsito, o barulho, tornando o silêncio algo absolutamente raro, encontrado apenas por entre os cômodos daqueles sobradinhos, habitados, todos eles, por idosos solitários, cujas vidas eram somente memórias.

(e algumas saudades)

Ao contrário de seus vizinhos, que passavam a maior parte do tempo ora dentro de suas casas, ora sentados nos bancos à frente delas, a papear uns com os outros, a reclamar das muitas dores da velhice e a lembrar do passado, muito raramente saindo dos limites da vila, Dona Clarice gostava de sair de casa e fazer suas caminhadas diárias pelas redondezas.

Aos 70 anos, viúva e sem filhos, ela ainda encontrava forças para cumprir diariamente essa rotina: gostava de registrar com os olhos o mundo que se formava para além do portão da vila onde sempre vivera, desde menininha.

Curvada como uma gárgula, ela caminhava pé ante pé, bem devagar, como se a carregar todo o peso do mundo sobre aqueles seus ombrinhos estreitos. Ia à padaria, ao açougue, à feira, ou andava sem rumo certo, pelo simples prazer de sentir-se ativa, e depois voltava para sua casa, que, tal como as demais ali na vila, era um sobradinho estreito, com a fachada toda recoberta de coloridas pastilhas de vidro, algo típico das primeiras residências que, há muitos anos, ali se estabeleceram e das quais então restavam apenas os tais sobradinhos. Todo o entorno da vizinhança era formado de prédios residenciais altos, que lançavam suas sombras por sobre a vila, restringindo o horário de sol de seus habitantes a apenas poucas horas do dia.

– A gente não vive, a gente teima.

Dona Clarice respondia àqueles que lhe perguntavam:

– Como vai a senhora?

ou

– Melhorou das dores no estômago, Dona Clarice?

como, outro dia, o moço da farmácia, o mesmo que sempre a atendia, quis saber, enquanto ela repunha o estoque semanal dos remédios que serviam para aliviar suas muitas aflições.

A resposta dela era sempre a mesma:

– A gente não vive, a gente teima.

Aguerrida, Dona Clarice liderou por muitos anos a resistência dos moradores da vila contra o assédio de grandes construtoras que sempre viram aquele espaço como ideal para a construção de mais um grande conjunto habitacional, moderno e com muitas torres. Boa parte de sua velhice, ela passara indo ao encontro de seus vizinhos, casa a casa, a fim de, entre um café ou um chá com bolo, convencê-los a não ceder àquele assédio.

Seguiu vitoriosa até o dia em que, logo depois de sair pela manhã para mais uma de suas caminhadas, seus vizinhos receberam a visita do representante de uma dessas grandes construtoras, um jovem homem, cabelo e barba cortados bem curtos, vestindo calça e camisa social, munido de uma pasta cheia de papéis, que chegou ali na vila, sem avisar, e foi de casa em casa, oferecendo aos velhinhos e velhinhas propostas de troca dos sobradinhos onde viviam sozinhos por…

Uns entenderam que a proposta seria de compra dos sobradinhos, com pagamento em dinheiro; outros entenderam que a proposta era pela troca dos seus sobradinhos por um apartamento no prédio que a construtora queria ali construir; houve aqueles, ainda, para os quais a proposta do jovem homem foi simplesmente incompreensível, mas que mesmo assim, seduzidos por seu carisma, terminaram por aceitar de qualquer forma a proposta que não entenderam bem do que se tratava.

O homem foi estratégico: antes do meio-dia, tinha conseguido visitar todos os moradores dos sobradinhos da vila, enquanto Dona Clarice estava fora, em mais uma de suas caminhadas diárias. Convenceu todos os vizinhos dela a deixarem com ele as chaves de suas casas, e dali partirem, deixando tudo para trás, para morar em uma casa de repouso, localizada no bairro vizinho, onde passariam a viver a partir daquele dia. Foi tudo muito rápido.

Tão rápido que, quando Dona Clarice retornou à vila, quase no finalzinho da tarde, nada viu senão os escombros dos outros sobradinhos, já reduzidos a cascalhos. Em pé, sobrara apenas o sobradinho dela, solitário em meio aos escombros dos seus pares.

Ao ver toda aquela destruição, Dona Clarice caiu sobre seus joelhos e começou a chorar, chorar, gritar, gritar, tamanha era sua tristeza, seu desespero. Correndo como podia, por entre os escombros, foi até seu sobradinho, abriu a porta e entrou.

Desde aquele dia, não foi mais vista por aquelas redondezas a fazer suas caminhadas diárias. Por várias vezes, o pessoal da construtora chegou a bater à porta do sobradinho dela, mas nada de ninguém vir atender. Lá dentro, o silêncio, antes tão raro por aquelas bandas, tornara-se ainda mais pronunciado. Era quase um grito.

Sem conseguir dar ao sobradinho de Dona Clarice o mesmo destino que fora dado aos demais, a construtora não conseguiu espaço suficiente para levar adiante seu projeto, que acabou inviabilizado, e então abandonou ali as ruínas do jeito que estavam desde o dia da demolição. Daquela pequena vila, antes conhecida como Vila das Saudades, sobrou apenas um amontoado de escombros, em meios aos quais, um único sobradinho ainda em pé parecia dizer:

– A gente não vive, a gente teima.

Tal como Dona Clarice, no passado, sempre respondia a todos que lhe perguntavam coisas do tipo:

– A senhora vai bem?

ou

– A senhora se lembra onde morava, Dona Clarice?

Pergunta que, dia desses, fez-lhe um rapaz que oferecia marmitas a um grupo de pessoas sem teto, nas redondezas da Praça da Sé.

Foi então que, ao invés de lhe dizer:

– A gente não vive, a gente teima.

Ela respondeu ao rapaz apenas com um:

– Saudades.

Dito mais pelo olhar do que pelos lábios.

Vidas e vindas

Beijavam-se à distância: ele, da sacada do seu apartamento; ela, do dela. Ambas as sacadas ficavam na mesma altura em relação à calçada lá embaixo, embora ele morasse no nono andar e ela no oitavo.

Os beijos cruzavam a rua que os separava, como pequenas flechas, que iam para lá e para cá, sempre encontrando destino no rosto ou na boca dos seus alvos.

Assim vinham fazendo todos os dias, sem falhar um único sequer, há mais de dez anos, sempre de manhã, quando o sol nem bem despontara no lado leste da rua.

Durante esse tempo todo, nunca se encontraram para além dos limites daquelas sacadas.

Certo dia, ela foi até a sacada de seu apartamento, no horário de costume, e aguardou que ele aparecesse do outro lado, para mandar-lhe beijos como há anos fazia, todos os dias.

As horas foram passando, passando e nada de ele surgir na sacada do apartamento do outro lado da rua.

Naquela mesma sacada, para onde por mais de dez anos ele sempre fora e ficara a beijá-la à distância, havia então apenas um espelho, sobre a superfície do qual ela via a imagem dela refletida.

Na ausência dele, ela mandou o beijo para a imagem dela que via refletida no espelho. Estranhamente, a imagem não lhe respondeu e, indiferente ao gesto do beijo, permaneceu inerte como se estivesse congelada.

Diante da indiferença da sua imagem no espelho, ela deu de ombros e voltou para dentro do seu apartamento para tomar o café da manhã e cuidar dos afazeres da casa.

No dia seguinte, no mesmo horário de sempre, lá estava ele a aguardá-la da sacada do apartamento dele, para o ritual de beijos à distância. Desta vez, porém, foi ela que não apareceu, deixando seu lugar na sacada do apartamento dela ocupado por um espelho bastante similar àquele que ela vira na sacada do apartamento dele, no dia anterior.

Ao ver sua imagem refletida naquele espelho, em pé sobre a sacada do apartamento dela, do outro lado da rua, ele foi tomado por um grande sentimento de solidão e começou a chorar. A solidão que ele sentiu foi correspondida pela imagem dele refletida no espelho, que assim como e junto com ele, também chorou.

Milonga

Há horas esperava naquela fila, tinha sido a primeira das últimas a chegar: depois dela, ninguém mais conseguiria entrar no abrigo naquela noite, pois a capacidade deste estaria então totalmente superada.

Para se proteger do frio cortante que fazia naquela noite, Milonga se punha a mais próxima possível de quem estava à sua frente e atrás dela na fila. Um esforço em vão, pois, assim como ela, os demais que ali aguardavam estavam fracos demais para que de seus corpos irradiasse algum calor capaz de aliviar o frio, percebido ainda mais intenso pelo vento forte e incessante. Além do frio, também a fome era intensa: os corpos daqueles que aguardavam sua vez de entrar no abrigo eram apenas pele sobre ossos, num conjunto precariamente coberto por meros farrapos.

A passos lentos, a fila de umas trinta pessoas andava. O grupo seguia entoando lamúrias esperançosas, ansiosos que estavam pelo momento em que poderiam desfrutar do alívio de ter um teto sobre suas cabeças e um prato de comida quente nas mãos. Os issos e aquilos de que se viam privados no dia a dia: uns por perderem emprego, outros por serem expulsos de casa ainda jovens; havia também aqueles para quem a rua era a realidade com que conviviam desde sempre. Para cada um, uma história, mas em todas havia algo em comum: o sofrimento do desamparo.

É certo que é de cada um a medida do próprio sofrimento, mas Milonga trazia consigo um aspecto que, se não tornava o todo do seu sofrimento do desamparo maior que os dos demais, ao menos tornava mais pronunciada a parte correspondente ao medo derivado do não-pertencimento: ela era uma cadela vira-lata.

Milonga havia sido adotada por uma família de sem-teto quando ainda era uma filhotinha que mal havia desmamado da mãe, que, junto com seus irmãos e irmãs, fora abandonada por uma família com teto.

Portanto, desde muito cedo, a realidade das ruas sempre esteve na sua vida. Antes, porém, por mais difíceis que fossem as condições de sobrevivência, Milonga via os humanos como uma fonte de cuidado: naquela família adotiva, era a mulher que lhe dava de comer, tirando o que podia das sobras das pequenas e escassas refeições; era junto ao corpo do homem que ela se deitava nas noites frias para aquecer seu próprio corpo; era com a menina que ela brincava de correr pelas ruas, rindo-se aos latidos.

Dias longínquos cuja memória há muito estava reduzida a cinzas.

A família adotiva viu-se obrigada a abandonar Milonga quando esta, mal tendo deixado a infância para trás, engravidou de um outro cachorro vira-lata. Temendo por ter de dividir o já pouco sustento com mais bocas, o homem dopou a cachorra com cachaça e a abandonou em um beco. Dali, ele mais a mulher e a menina foram para o mais longe possível, para que fossem mínimas as chances de reencontrarem a cadela.

Depois desse episódio, Milonga passou a encarar os humanos de outra forma: tornou-se agressiva. Latia e avançava sobre qualquer pessoa que dela se aproximava. Num desses surtos de violência, atacou um homem bêbado, que para se defender das mordidas da cadela, socou-a na cabeça duas vezes e, num gesto certeiro, chutou-a com força na barriga, dilatada pela cria que então trazia ali dentro. Ferida e assustada, Milonga saiu correndo, ganindo alto, como que a pedir socorro a quem pudesse lhe ouvir, mas embora de fato seu ganido fosse ouvido até de muito longe, ninguém apareceu para socorrê-la. Mesmo os outros cães com quem ela cruzava em sua corrida, olhavam-na com indiferença. A dor que sentia era tão intensa que, depois de correr uns dois quarteirões, não resistiu e caiu desmaiada.

Pouco mais de vinte e quatro horas depois, acordou, ainda se sentindo meio atordoada. Estava bastante faminta e para saciar a fome não hesitou em devorar o produto de seu aborto: quatro minúsculos fetos, envoltos em sangue e líquidos corporais, que jaziam sem vida pouco abaixo de onde seu corpo estava deitado, num local escuro, na sarjeta de uma calçada, embaixo de uma ponte, cercada de moscas varejeiras, atraídas pelo mal cheiro dos pequenos defuntos que Milonga havia parido.

Com a fome saciada, conseguiu reunir forças para se levantar e sair andando, mesmo que sem rumo certo. Só queria poder sair daquele lugar escuro, fugir daquelas moscas do tamanho de olhos humanos.

Passou vários dias assim: indo para lá e pra cá, perambulando pelo centro da cidade, comendo os restos de comida que encontrava nas lixeiras, bebendo água das fontes das praças emporcalhadas ou da própria chuva, dormindo onde o cansaço lhe ordenava que parasse.

Quando as temperaturas dos dias e das noites começaram a cair, bateu-lhe uma certa saudade do homem que a abandonara: não tinha mais o corpo dele para se deitar ao lado e se aquecer nas noites frias. Milonga emagrecera bastante, era só quase pele e ossos. Numa manhã bastante fria, uma velha senhora com quem a cadela cruzara pelas suas andanças pela cidade, apiedou-se dela, tirou uma velha blusa de lã da bolsa e com ela vestiu o corpo magro de Milonga. A blusa, embora bastante corroída pelo tempo e com alguns buracos, conseguia preservar algum calor sobre o corpo magro da cadela.

E foi vestida nesses andrajos que Milonga, certa noite, encontrou aquele abrigo em cuja fila para entrar a encontramos.

Quando chegou sua vez de ser atendida, o homem que organizava a entrada não percebeu que se tratava de uma cadela

(são tão humanos os cães que sofrem)

e deixou-a passar para se juntar às demais pessoas que já estavam lá dentro, pessoas que viviam uma vida de cão, sobrevivendo como vira-latas.

Circulando dentro do abrigo, Milonga se deparou com um par de pernas que lhe era familiar: pertencia à mulher da família que a abandonara. Milonga chegou mais perto, a fim de, com o olfato, certificar-se daquele indício que sua visão muito fraca havia apontado.

De fato, era a mesma mulher, mas estava sozinha. Nem o marido nem a filha estavam ali junto dela. Em seu rosto, via-se um olhar de abandono e desamparo, o tipo de olhar que Milonga havia se acostumado a se deparar desde que passara a viver sozinha. Também ela, desde então, trazia esse olhar em seus olhos.

Quando a mulher avistou Milonga, o seu olhar de repente mudou, indo do abandono e desamparo para a alegria. A mulher correu em direção à cadela, e chegando até ela, abraçou-a e beijou-a, chorando de emoção.

Mas Milonga já não era mais aquela cadela amorosa que a mulher conhecera. Trazia dentro de si um desejo de vingança e tal se deu sob a forma de um

– Tiro!

Alguém gritou, seguido de tantos outros que também gritaram

– Tiro!

– Tiro!

– Tiro!

quase que em coro, depois que se ouviu um estampido muito alto atravessar o denso rumor de vozes e por um breve instante desviá-las daquilo que as entretia.

O pânico instalou-se no local, com todo mundo correndo, sem rumo, atropelando-se uns aos outros, em busca de proteção contra o que aquele barulho de tiro representava na cabeça de cada um. Quando tudo se acalmou, como a poeira que se assenta depois de um vendaval, um círculo de pessoas se formou ao redor de Milonga. Ela estava deitada ali no chão do abrigo, com seu corpo todo banhado de sangue: a cadela tinha sido alvejada por um tiro, disparado pela arma de alguém que, ao ver as lágrimas nos olhos da mulher que a abraçava, julgara que ela estava sendo atacada por Milonga. A bala atingira em cheio o local próximo ao seu coração.

Julgando-a morta, os que ali estavam nem chegaram a socorrê-la. Limitaram-se a retirar dali o corpo e jogá-lo em uma lixeira do lado de fora, onde Milonga de fato veio a falecer poucos minutos depois, vítima de pura desumanidade.

José

Não havia mais nada a fazer: diante do corpo da mãe, estirado sobre o caixão à sua frente, só restava a José deixar fluir dos olhos o choro envergonhado de quem sempre fora ensinado, pela própria mãe, Dona Maria, que

– Homem não chora.

Ela também costumava dizer:

– Não me apego à tristeza.

E com isso em mente, José beijou a pele fria da testa dela e fez sinal para os homens da funerária fecharem o caixão, que dali levaram para o cemitério. Para lá, o rabecão seguiu sem cortejo.

Fora esses dois encarregados que a funerária havia mandado para cuidarem do velório, nenhuma outra alma viva fazia companhia a José: ele era, então, o único sobrevivente de uma família devastada.

Seu pai, seus dois irmãos mais novos e agora sua mãe, todos tinham partido, um em seguida ao outro, todos dentro de um curto espaço de tempo. Mal José se curava do luto da perda de um familiar e logo outro vinha a falecer: primeiro foi seu pai, depois o irmão do meio, em seguida o mais novo e, anteontem, foi a vez de sua mãe, cuja morte súbita punha fim a essa cadeia mórbida que, ao todo, não tinha durado nem sequer um mês.

A causa das mortes era desconhecida. Nem mesmo os médicos do hospital da cidade sabiam dizer. Na falta de uma justificativa científica, José atribuía as mortes à vontade de Deus, em cuja companhia acreditava que seus familiares agora estavam. Era um homem bastante religioso, daqueles de quem se diz ter fé inabalável.

No caminho de volta para casa, ao passar defronte a igreja, José se benzeu como de costume. Sentada no primeiro degrau da escada que levava à porta da igreja, uma velha senhora, em farrapos, estendeu-lhe a mão direita para pedir uma esmola qualquer. Ao vê-la, José interrompeu seu ritual e, com os olhos vermelhos como um pôr do sol de outono, começou a desferir chutes sobre a velha, como se a querer descontar nela toda a dor por que passara no último mês, derivada da perda de seus familiares. Chutou-a na cabeça, no peito, no estômago, chutes fortes, certeiros. Na falta de forças para gritar, a velha apenas gemeu, gemeu e logo depois silenciou: estava morta.

Ninguém presenciara aquela cena, ou se presenciaram, não se importaram. Deus testemunhara e nada fizera para impedir, habituado que estava a ver tantos de seus filhos morrerem nas mãos de outros tantos de seus filhos pelo mundo afora.

Tomado pela adrenalina do assassinato que acabara de cometer, José entrou na igreja e foi se confessar. Ao padre, contou tudo que lhe ocorrera na última semana, mas omitiu que tinha acabado de matar uma velha senhora na porta daquela mesma igreja. No final da confissão, foi perdoado.

Os sinos da igreja anunciavam ser 6 da tarde, quando José passou pela mesma porta onde antes a velha senhora pedia esmola – seu corpo ainda estava lá, ensanguentado como as mãos do Nazareno na cruz.

Poucos passos adiante, José tomou o ônibus que o levaria para casa, mas no meio do caminho, decidiu descer e seguir para um bar. Precisava, como se diz, encher a cara. Sentado diante do balcão, sobre um banquinho que mal acomodava suas nádegas magras, ele pediu uma cerveja, tomou, depois pediu outra, tomou, e assim seguiu noite adentro até por volta das 3 da madrugada, quando então, sendo o último cliente, foi convidado pelo balconista a pagar a conta e ir-se embora: era hora de fechar o bar.

Mesmo bêbado, José conseguiu pagar a conta e saiu. Foi caminhando pela rua, àquela hora completamente deserta, trançando as pernas até cair alguns metros depois, na frente de um mercadinho, onde outras pessoas então dormiam, em meio a colchões e cobertores improvisados. Quando o dia amanheceu, todos dali foram enxotados pelos seguranças do mercadinho. José, de tão bêbado, não se mexia. Não fosse pela temperatura de seu corpo e pelo pulsar de seu coração, diriam estar morto.

Reclamando do fedor de álcool que o corpo de José exalava, os seguranças o levantaram e o jogaram em uma caçamba de lixo, do outro lado da rua. E ali, em meio ao lixo, e como se lixo também fosse, o corpo de José foi recolhido pelos lixeiros e jogado dentro do caminhão de lixo, quando este por ali passou no meio da tarde daquele dia.

Ao verem seu corpo, prestes a ser triturado pelo equipamento do caminhão, os lixeiros gritaram ao motorista que parasse a máquina. Os dentes das engrenagens pararam de mastigar o lixo pouco antes de chegar ao corpo de José.

Os lixeiros, então, pegaram o seu corpo, ainda inconsciente, e jogaram-no sobre o gramado imundo de uma praça qualquer ali do centro, suja e mal cuidada.

Horas depois, já com o sol alto, José foi acordado pelo arrulhar dos vários pombos que o cercavam. Ao ver aqueles serezinhos alados, José pensou estar no céu, em meio aos anjos, com Deus e, portanto, na companhia de seus familiares.

Uma forte enxaqueca agitava suas têmporas e fazia doer sua cabeça a ponto de deixá-lo zonzo. Ficou ali o restante do dia, deitado, sem forças para se levantar.

Pouco antes da meia-noite, um caminhão da prefeitura passou por ali varrendo o chão com um potente jato de água, fria como a testa da mãe morta que José beijara no dia anterior.

Junto a toda a sujeira da praça, e como se sujeira também fosse, José foi varrido dali para uma sarjeta do outro lado da rua.

Na falta de forças para reagir, levantar-se, José nada disse, nem tampouco gemeu. E, embora seus olhos, assim como todo seu corpo, estivessem encharcados, não era propriamente de choro. Afinal, como dizia sua mãe:

– Homem não chora.

Na manhã do dia seguinte, ao acordar, vendo seu corpo ainda todo encharcado, cansado e com a mente atordoada, José reuniu as poucas forças que lhe restavam para se levantar e então caminhou, meio trôpego, até um dos bancos da praça. Ali, sentou-se, e com o rosto entre as mãos, pôs-se a chorar

(– Homem não chora.)

feito uma criança.

Antes que tudo aquilo começara

Era um lugar sujo, feio, tomado por uma tristeza enorme, que se fazia ainda mais pungente por conta da chuva fria que, há mais de três dias, caia quase sem dar trégua nenhuma.

Da janela de seu quarto, no quinto andar de um antigo e decadente predinho de oito andares, Camila observava a rua em frente, completamente vazia de pessoas, com o comércio todo fechado e, por todo lado, as muitas placas de aluga-se e passa-se o ponto. Antes de tudo aquilo começar, aquela rua era ruidosa: vivia povoada de pessoas, quase sempre carregadas de sacolas, num frenético ir e vir, para lá e pra cá,  que começava ainda antes do sol raiar e só tinha fim quando a noite caia.

Por vários quarteirões, viam-se lojas populares de todos os tamanhos, diante das quais se enfileiravam um sem número de barracas de vendedores ambulantes, que, de tão próximas umas das outras, pareciam, quando vistas do alto, uma única barraca comprida e esguia, que reservava aos pedestres apenas um estreito caminho de passagem na calçada. No passado, em dias chuvosos como esse, o cenário ficava ainda mais caótico. Nesse dia, porém, sem a multidão de pessoas, havia apenas a chuva, que caia numa melancolia de domingo à tarde, embora fosse outro dia qualquer.

Enquanto observava a chuva cair, Camila viu um guarda-chuva amarelo despontar na esquina e vir caminhando num passo apressado até o predinho onde ela morava. Era o carteiro. Na caixa de correio correspondente ao seu apartamento, ao lado do portão, ele depositou um envelope pardo, grande, daqueles que trazem dentro algo importante. Em geral, desde que tudo aquilo começara, quando vinha depositar as correspondências ali, o carteiro olhava para a janela de onde Camila sempre estava a observar a nova ordem das coisas lá embaixo e para ela acenava antes de ir-se embora.

Desta vez

(por causa da chuva?)

nenhum aceno. Nem ao menos se deu ao trabalho de olhar para a janela. Apenas depositou o envelope na caixa de correios e partiu, logo vindo a sumir na primeira esquina rua abaixo. Parecia apressado ou com medo.

Vai ver era um outro carteiro.

Camila não desceu para pegar a carta. Há dias

(meses?)

elas iam se acumulando na caixa de correios. Não lhe interessava saber sobre o conteúdo daquele envelope que acabara de lhe ser entregue, nem tampouco de tantos outros que ali estavam depositados, aglomerados como passageiros em um ônibus que cruza a cidade no fim do expediente.

O dia seguia seu lento caminhar: à tarde, as horas pareciam ainda mais longas, como se em cada uma delas coubesse uma eternidade.

Lá fora, ainda chovia, mas então com menos intensidade. Já era possível ver algumas andorinhas a descerem e subirem pelo céu, em voos agudos, em busca de insetos que, ao contrário de Camila, arriscavam-se a sair, pagando a liberdade com a própria vida.

Dali da janela de seu apartamento, Camila observava tudo, tomada por um tédio gigantesco, que parecia envolver seu corpo como um manto pesado.

Houve um tempo em que ela podia voar: abria suas asas e depois de batê-las duas ou três vezes, alçava voo e, logo, ganhava o espaço aberto do céu, onde permanecia voando por horas, contando com a bem-vinda ajuda dos ventos. Lá do alto, ficava a observar o movimento do mundo lá embaixo, mundo que ainda podia observar, mas agora

(e desde que tudo aquilo começara)

confinada aos limites de altura da janela de seu apartamento, no quinto andar daquele velho prédio, espremido em meio a tantos outros, como se fosse parte de uma multidão.

Volta e meia, ao longo do dia, Camila recebia a visita de um ou outro passarinho. Eles vinham pousar no parapeito da janela, de onde lançavam olhares curiosos para dentro do quarto dela. Quando a viam, partiam num sopro, assustados, talvez temerosos de que o destino de Camila pudesse de alguma forma alcançá-los e, ao custo de uma maior segurança, aprisioná-los, privando-os, assim, da tão arriscada liberdade.

Presa e isolada em seu apartamento, Camila desfrutava de grande segurança, mas lhe faltava a liberdade.

Dentro do seu quarto, havia uma televisão que se mantinha ligada o tempo todo. Era a janela com que Camila acompanhava o mundo para além dos limites do estreito campo de visão da janela de seu apartamento. Noticiário após noticiário, a impressão que Camila tinha era que os jornalistas voavam em torno das informações sobre o número sempre crescente de mortos, as UTIs lotadas, a vacinação lenta e escassa, como varejeiras em torno da carne podre, produzindo um zumbido bastante monótono, causador de uma sonolência tal, que fazia pesar as pálpebras de Camila, levando-a a cochilar de maneira intermitente ao longo do dia, o que, entre outras razões, prejudicava ainda mais seu já difícil e escasso sono à noite.

Havia perdido a conta de quantos dias

(meses?)

não saia de casa. Parecia-lhe que os dias

(meses?)

que se seguiram ao primeiro dia desde que tudo aquilo começara eram uma reprodução infinita daquele primeiro dia.

– Quando tudo isso vai terminar?

Perguntava recorrentemente a si mesma em pensamento, uma pergunta que nunca encontrava resposta, nem sequer eco na realidade sísifa que a circundava e, de certa forma, sufocava-a. Já não se recordava quando tinha sido o último momento em que tocara alguém com um beijo, um abraço ou um simples aperto de mãos.

Desde que tudo aquilo começara, os seus limites eram basicamente os limites de seu apartamento. Saia pouco e apenas para ir ao mercado, vez ou outra na farmácia… nada de mais, e sempre sozinha. Sentia-se angustiada com essa rotina, mas o medo da peste de certa forma a reconfortava.

Na solidão de seu apartamento, distraia-se com pequenos afazeres como ler, olhar fotos antigas, bordar. Outro dia, enquanto arrumava uma gaveta do armário, encontrou uma foto antiga de sua avó. Camila havia ficado meses sem vê-la e, dia desses, soube por um parente que sua avó falecera. Para ela, aquela morte não era mais um número dentre os milhares que os jornais anunciavam todos os dias. Era sua avó, afinal, que havia morrido – a pessoa com quem Camila tanto brincara na infância, quando a vida parecia não ter fim. Foi sua avó que, mesmo desprovida de asas e sem nunca ter voado, ensinou Camila a voar.

A foto não voltou mais para a gaveta: depois que soube da morte de sua avó, Camila manteve a foto sempre ao alcance dos seus olhos, em cima do criado-mudo ao lado da cama. Deitada sobre esta, Camila observava a imagem da avó, metida em um vestido típico dos anos 30. Na foto, a avó tinha um olhar sisudo, triste, que parecia mirar o vazio. Muito parecido ao olhar que Camila via refletido no espelho do banheiro, sempre que ia se pentear, lavar o rosto ou escovar os dentes.

Camila pegou a foto com a mão esquerda, levantou-se e caminhou para a janela do quarto, que por sua vez abriu com a mão direita. Com ambas as mãos projetadas para o lado de fora do apartamento, picotou a foto da avó até que esta se tornasse um punhado de pequenos quadradinhos irregulares, que Camila lançou ao vento como quem nele joga as cinzas de um corpo cremado. Uma vez jogados, os quadradinhos tomaram rumos distintos, voando para todos os lados, como os confetes que Camila tanto gostava de brincar nos Carnavais do passado.

Se soubesse o que viria depois do último Carnaval, teria celebrado como se de fato fosse o último. Teria beijado mais, abraçado de forma mais intensa, rido a plenos pulmões. E o que mais?

Com esse pensamento ainda a ocupar sua mente, Camila deixou a janela e foi até o guarda-roupa. Então, abriu suas portas e, lá dentro do antigo móvel de madeira marfim, ela avistou a fantasia de fada que acabou não sendo usada no último Carnaval: um vestido de bailarina de tule rosa, com asas de celofane púrpura, presas às costas do vestido, suportadas por uma armação de arame.

Camila despiu-se do moletom que vestia, o mesmo que vinha usando dia após dia

(meses?)

desde que aquilo tudo começara, e vestiu a fantasia de fada. Não se lembrava de ter uma varinha, do tipo daquelas que, com uma estrela na ponta, dizem ser mágicas. Procurou, procurou, mas nada de encontrá-la.

Em uma das gavetas do guarda-roupa, ao invés da varinha mágica que tanto procurava, encontrou um revólver, a arma que seu pai legara a ela quando de sua morte.

– É para a sua segurança.

Ele dizia, pouco antes de morrer. A morte de seu pai não entrara para as estatísticas repisadas todos os dias pelos jornais desde que aquilo tudo começara, à maneira das pisadas dos coveiros sobre a terra que encobre os mortos nas muitas covas que a televisão mostrava todos os dias. Covas cavadas às pressas para fazer frente à demanda de corpos sem vida que, desde que tudo aquilo começara, parecia nunca esmorecer.

Vestida de fada, com a arma na mão direita, Camila caminhou até a janela do quarto, abriu-a, subiu sobre o parapeito e, de lá, ao som de um estampido seco, Camila se viu livre para voar – um voo curto, que em fração de segundos terminou com seu corpo aterrissando, num baque úmido, no chão duro de ladrilhos à frente do prédio. Um voo demasiado rápido, mas que pelo menos serviu para libertá-la da clausura solitária em que vivia desde que tudo aquilo começara.

– É tão bom poder voar.

Pensou, pouco antes de inclinar seu corpo para a frente e acionar a varinha mágica carregada sob seu queixo.

O barulho da vida

Desde muito anos, elas se encontram semana sim, semana não, numa periodicidade maior do que aquela que, no passado, chegaram a praticar, quando então quase viviam uma dentro da casa da outra. Com o passar dos anos, porém, mãe e filha foram aos poucos se distanciando, e os seus encontros foram ficando cada vez mais e mais raros, terminando por se fixar nessa regra de semanas intercaladas: uma sim, duas não.

Júlia, a mãe, era uma viúva de 83 anos; Lídia, a filha, era uma solteira de 52 anos. Cada uma vivia na sua própria casa, a poucos quarteirões uma da outra, uma distância curta o suficiente para percorrerem a pé, tranquilamente.

Em geral, Lídia, por ser a mais nova, era quem ia até a casa de sua mãe, muito mais vezes do que Júlia ia até a casa da filha.

Quando se encontravam, entre xícaras de café e bolinhos de chuva, mãe e filha ficavam a tricotar agasalhos que depois acabavam indo para a doação. O tricô tinha por finalidade protegê-las do tédio, não do frio — servia ao menos para quebrar um pouco o silêncio entre elas. Falavam pouco entre si: a conversa entre elas era formada muito mais pelos silêncios do que pelas palavras. Também a linguagem corporal compunha o diálogo entre ambas: pelo modo como se respirava, pelas expressões dos rostos, a velocidade das mãos ao tricotar, pelos meneios das cabeças, uma sabia o que a outra queria dizer.

Num sábado à tarde, quando Lídia, como de hábito, chegou à casa de sua mãe, logo depois de dizer:

— Boa tarde, mãe.

E sua mãe responder:

— Boa tarde, minha filha.

Ela e sua mãe passaram o resto do tempo que ficaram juntas, naquele dia, sem dizer palavra nenhuma, apenas tricotando e, vez ou outra, ao modo de um gato que levanta as orelhas ao perceber algo diferente por perto, entreolhavam-se para conferir se era verdadeira ou não a ausência que o silêncio acusava estar presente. No início da noite, quando Lídia se levantou e quis tomar o rumo da porta para ir-se embora, disse apenas:

— Vou chegando, mãe.

No que sua mãe respondeu, como de praxe:

— É cedo, minha filha.

E então, também como costumava sempre fazer, a mãe complementou:

— Fica para a janta.

Esse era o código de palavras que mãe e filha adotavam a cada vez que se despediam. Sempre a mesma combinação de frases

— Vou chegando, mãe

na mesma sequência

— É cedo, minha filha. Fica para a janta.

e depois de um beijo na face uma da outra, somente se veriam dali a duas semanas, novamente em um sábado à tarde.

Nas duas semanas que separavam um encontro do outro, nenhuma ligação, nenhuma mensagem, nem um

— Tá tudo bem?

nem tampouco um

— Estou com saudades.

Nesse período, mãe e filha viviam suas vidas completamente apartadas, como se uma não existisse para a outra. Isolavam-se por completo.

Cabia um mundo de dores, angústias, alegrias e nostalgias nessas duas semanas, mas nem mãe nem filha compartilhavam uma com a outra o que se passava com cada uma delas por esses dias.

Há anos, mãe e filha cumpriam esse mesmo ritual de se encontrarem sempre num sábado à tarde, semana sim, semana não, até que, num determinado sábado em que Lídia tinha ido visitar Júlia, quando, ao final daquele dia, em que se percebera um silêncio um pouco maior entre elas, a filha anunciou sua partida, como sempre dizendo:

— Vou chegando, mãe.

Sua mãe nada respondeu. 

Então Lídia, ao voltar seus olhos para Júlia, notou que sua mãe tinha parado de tricotar

(daí o silêncio)

e, com os braços e as mãos caídos sobre seu colo, tinha os olhos fechados como se estivesse cochilando ou morta. A hipótese da morte, talvez pela idade avançada de Júlia, foi aquela que Lídia, quase instintivamente, primeiro considerou, e aos prantos e desesperada, correu para abraçar sua mãe, enquanto sua mente revivia todos os momentos que tinham passado juntas desde que Lídia nascera chorando e aos berros.

(reconhece-se a vida pelo barulho que ela faz)

— É cedo, minha mãe

disse Lídia, com a voz embargada, para uma Júlia que não mais podia lhe ouvir

(reconhece-se a morte pelo silêncio que ela traz)

— Fica para a janta

pois de fato sua mãe falecera enquanto tricotava.

O silêncio ente elas agora a acompanharia por todos os dias.

Reconhece-se a vida pela quietude que fica quando ela vai-se embora.

Na pracinha

Finalzinho de tarde, aqueles bandos de andorinhas a voarem de um lado pro outro, fazendo festa por entre as árvores da pracinha em frente à igreja Matriz, Ao sair de trás do coreto, você me viu, foi quando esboçou um sorriso: parecia feliz, Foi se aproximando de mansinho, arisca como uma perdiz, No caminho, tropeçou, se não caiu, foi por um triz, Veio sentar-se ao meu lado, no banquinho, arrumando seu vestido de decote bordado, todo estampado com flores de lis, Tímida, limitou-se a beijar-me apenas a ponta do nariz, Fui retribuir-lhe o beijo, mas virou seu rosto: fez que não quis, Sei que queria – foi um gesto infeliz, Isso fica entre nós, ninguém viu, ninguém diz, Ficamos ali, por horas conversando, lembrando dos doces anos de nossa infância lá na Vila Beatriz, Você continua a mesma, noto: ainda esconde sua fragilidade sob o véu dessa personagem forte que você incorpora melhor que uma atriz, Relembramos até onde estávamos quando anunciaram na tevê a morte da Elis, Um dia, muitos anos depois, eu estava em casa à toa, quando o carteiro, Seu Luiz, bateu à porta, meu nome chamou, com uma carta na mão, Dentro do envelope, aquele cartão postal que você me mandou de Paris, Fazia tempo que não tinha notícias suas, Achei que tivesse se perdido por esse mundo, Fiquei ali olhando sua imagem ao som de Bem que se quis, da Marisa Monte, Um nó na garganta, Só consegui melhorar quando, pra espairecer, coloquei um filme no vídeo cassete pra assistir, enquanto, deitado sobre o chão, chupava uma bala de anis, Não me lembro qual filme era, nem tampouco se teve ou não um final feliz, Recordo-me, sim, da trilha sonora, esta era inesquecível: dos Bee Gees, Todas essas lembranças vêem inundar meus olhos, que agora brilham melancólicos, como se pintados de verniz, Lembra-se que brincávamos de amarelinha, desenhando no asfalto aqueles quadrados numerados com giz? E hoje, você faz o quê da vida? Isso também fica entre nós, Olhando pra você, ninguém diz.

Dona Lucy

Era finalzinho de tarde e, pela janela da sala do pequeno apartamento, aberta para aliviar um pouco o forte calor, os raios do sol poente entravam. Àquela hora, a luz que eles traziam tinha matizes de sépia, que conferiam àquele ambiente uma cor similar ao de uma foto antiga.

Eu acabara de chegar e, ali comigo, estava apenas Dona Lucy, a moradora daquele pequeno conjugado de quarto e sala. Depois de nos cumprimentarmos, sentamo-nos cada um em uma poltrona, ao redor de uma mesinha de centro de pés palito, e, do nada, ela desandou a falar:

— Exceto pela Meryl Streep, a Julianne Moore e a Fernanda Montenegro, nenhuma outra atriz de Hollywood me mobiliza mais para sair de casa e ir ao cinema.

Disse-me Dona Lucy, sem que eu tivesse lhe perguntado nada a esse respeito.

Seu olhar melancólico contrastava com seu sorriso fácil e largo. Apesar de bastante idosa, era uma mulher altiva e, pelo visto, vaidosa o bastante para cuidar de estar elegante mesmo dentro de casa. Quando cheguei, encontrei-a vestindo um conjuntinho de tailleur e saia, por sobre uma blusinha de seda. No seu rosto, todo coberto pelo pó de maquiagem, com duas rodelas mais avermelhadas por sobre as bochechas, o destaque eram as sobrancelhas desenhadas a lápis, um pouco escondidas por detrás dos elegantes óculos de grau com armação de tartaruga. Sobre a boca, ela passara um batom de um rosa bem vivo e, em volta do pescoço, havia um colar de pérolas tão bem feitas que até pareciam verdadeiras.

— Aceita um café?

Ela me perguntou, já enchendo uma xícara daquelas de chá de porcelana branca e pousando-a, diante de mim, sobre a mesinha de centro que separava a poltrona dela da minha.

Era a primeira vez que nos encontrávamos pessoalmente

(até então eu a tinha visto apenas por fotos, mesmo assim, antigas)

e naquele instante, tendo à minha frente aquela mulher corpulenta, de cabelos tingidos de preto, cortados à escovinha, percebi que estava como que diante de uma grande enciclopédia, de heráldica encadernação em couro, que mesmo com algumas de suas folhas manchadas e rasgadas, ainda assim preservava algum valor e alguma utilidade como obra de referência. Em resposta, disse-lhe, cortesmente:

— Aceito.

(à essa altura a xícara já estava preenchida até a borda de um perfumado café feito no coador de pano)

Eu tinha ido ao encontro dela para tratarmos de assuntos ligados à herança de meu pai, Seu João: Dona Lucy era viúva dele e minha madrasta. Não cheguei a conviver com ela, pois eu já tinha saído da casa do meu pai, quando ele a conheceu. Quando meu pai, Seu João, e minha mãe, Dona Maria, se separaram, fui viver com minha mãe, pois me era mais conveniente. Conhecia Dona Lucy apenas pelas histórias que meu pai me contava a respeito daquela mulher que tanto o fascinara.

— Dona Lucy…

Tentei falar-lhe, mas com um levantar da palma da sua mão direita, enrugada e cheia de pintas senis, à semelhança de uma pele de leopardo, ela interrompeu a minha intervenção. Então, mesmo consciente do quão inusitadas tinham sido suas palavras iniciais, deixei-a livre para continuar falando. Àquela altura, eu nutria, bem verdade, certa ansiedade por saber se suas próximas palavras denunciariam, como de início, outras surpresas, tão inusitadas quanto as primeiras, o que daria àquela conversa um delicioso quê de loucura.

— Lembro-me da primeira vez que fui ao cinema.

Ela começou a contar, olhando-me com um olhar terno, como se estivesse a olhar para seu verdadeiro filho, que ela nunca chegou a conceber.

Eu também me lembrava da primeira vez em que eu tinha ido ao cinema, muito embora não conseguisse, ali naquele momento, diante dela, recordar-me do nome do filme, nem com quem teria ido, se é que tinha ido com alguém – recordava-me apenas que era muito jovem. Melhor seria dizer, portanto, por fidelidade à verdade, que de nada de fato me recordava — apenas pensei em falso ter tal memória guardada comigo.

— Estava vestida com meu melhor vestido à época.

Ela continuou, intercalando sua fala com generosos goles de café.

A salinha em que estávamos tinha uma atmosfera kitsch, sensação reforçada pela presença, naquele claustrofóbico recinto, de estantes e mesinhas de centro e de canto, recheadas de incontáveis bibelôs de louça, em formato de bichinhos de diversos tamanhos, tendo sobre o piso um carpete magenta, empoeirado,

— Eu…

fonte, eu imaginava, do forte cheiro de naftalina que tomava conta do ambiente.

— … não comprava pipocas, nunca gostei do sabor e gostava ainda menos do barulho que as pessoas faziam ao mastigá-las dentro da sala de projeção. Bastavam-me umas balas de anis.

Ela confessou.

De minha parte, sempre preferi o cheiro das pipocas ao seu sabor. Compartilhava totalmente com ela, contudo, a antipatia por ruídos quaisquer, de mastigação em especial, dentro das salas de cinemas. Por esta e por outras razões, minha incontinência urinária sendo a principal, há anos, eu mesmo vinha diminuindo gradualmente minha frequência às salas de projeção, preferindo apreciar a sétima arte no doce conforto de meu lar.

— Certa vez,

Ela pronunciava as palavras em um ritmo lento, talvez por causa do calor — ou seria por causa da idade? —, não sei. Sua malemolência dava-me a impressão de que aquela conversa avançaria pelo restinho da tarde e seguiria pela noite adentro.

— … fui até o toilette durante uma sessão de Casablanca, e lá encontrei com a Suzana, sua mãe.

Ela continuou.

— Dona Lucy.

Tentei interferir, mais uma vez sem sucesso.

— Suzana estava chorando, pois seu namorado de então a abandonara logo no início do filme, ainda quando os nomes de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman apareciam na tela. Dei minha mão a ela e a abracei, trazendo sua cabeça para junto de meu peito. Seu choro foi cessando aos poucos, assim como os soluços.

Suzana não era minha mãe, mas sim meu pai, Seu João: ele adotou o nome Suzana após separar-se de minha mãe, Dona Maria, e depois de passar por uma cirurgia de mudança de sexo. Mesmo depois desse procedimento, João continuou sendo seu nome oficial, conforme registrado em seus documentos.

— Lucy!

Chamava-a pelo seu nome, mas ela parecia absorta em seus pensamentos e memórias, mirando o vazio com aqueles olhos castanhos, por detrás das pesadas lentes de seus óculos de armação de tartaruga.

— Ah, Suzana…

Um gato persa, que cochilava sobre o colo de Dona Lucy, talvez cansado de esperar em vão por carícias, pulou para o chão e seguiu, lentamente, para a cozinha — pelos miados que emitia, que mais pareciam lamentos, devia estar com bastante fome.

Eu sabia que Dona Lucy e meu pai, depois de ele se separar de minha mãe e mudar de sexo, haviam tido um longo e tórrido relacionamento. Meu pai, muitos anos depois, já separado de Dona Lucy, costumava me contar histórias daqueles anos em que convivera com ela, quando nos sentávamos à mesa para jantar, apenas ele e eu, nas raras vezes em que ele me visitava, depois que minha mãe, Dona Maria, faleceu por causa de um ataque do coração. Isso tudo antes de ele mesmo morrer de um câncer na próstata.

Os sons dos sinos da igreja da Consolação faziam-se ouvir não muito longe dali, anunciando a chegada das 6 da tarde. Então Dona Lucy pontuou:

— Naquele instante em que vi sua mãe, sabia que nossa história iria para além daquele encontro casual.

E de fato assim foi: Dona Lucy e meu pai, segundo o que ele me contava quando ainda vivo, conviveram por muitos anos, chegando a morar juntos em um pequeno sobrado nas proximidades do prédio onde ela ainda mora, na região do Baixo Augusta. Aquele sobrado já não mais existe: deu lugar a um prédio de apartamentos, todos eles diminutos como o de Dona Lucy.

Os ruídos da cidade, bem mais fortes àquela hora do final da tarde, entravam pela janela entreaberta da sala do pequeno apartamento dela, que ficava de frente para a Rua Augusta.

O gato voltava da cozinha, de rabo ereto e com um olhar pidão, quando alguém interfonou. Como que finalmente liberta do transe em que se metera desde minha chegada, ela levantou-se e foi atender. Mandou subir quem então chegava. Poucos instantes depois, alguém bateu à porta do apartamento e chamou:

— Seu Jorge?

Dona Lucy foi atender.

Ao abrir a porta, cumprimentou o homem que ali estava, do lado de fora, com um firme aperto de mãos e perguntou-lhe:

— É a ração do Domenico?

Era o nome do gato.

— Sim, Seu Jorge. Trouxe a ração para gatos que o senhor havia encomendado comigo, ontem, lá na loja.

— Ah, obrigado. Quanto lhe devo, Seu Moacir?

— Depois acertamos, Seu Jorge. Tenha uma boa tarde.

E assim o homem despediu-se e foi embora.

Dona Lucy fechou a porta, pediu-me licença e foi até a cozinha, seguida por um saltitante e ansioso Domenico. Ela carregava o saco de 30 quilos de ração para gatos, sem aparentar fazer muito esforço — o saco de ração parecia-lhe de fato muito leve.

Sozinho na sala, avistei um porta-retratos, sobre um aparador, logo atrás da poltrona onde Dona Lucy estava sentada até alguns instantes atrás. Um tanto apertado no meio dos muitos bibelôs de louça ao seu redor, o porta-retratos, em formato de coração, revelou-se aos meus olhos somente depois que ela foi dar de comer ao gato, pois antes estava eclipsado por detrás da cabeça dela.

Emoldurada pelo porta-retratos, havia uma foto antiga, cujos tons de sépia combinavam com o tom dos raios de sol que inundavam a sala no momento que eu ali chegara. Naquela foto, eu podia ver o registro da imagem de meu pai e Dona Lucy beijando-se, tendo ao fundo uma praia ensolarada. Pareciam apaixonados. Na parte de baixo da foto, uma pequena legenda, escrita à caneta Bic, contextualizava: Jorge e João, Santos, 1975.

Chá da tarde

Sente-se aqui, Aceita um café? Acabei de passar, Quer com açúcar ou adoçante? Ah, mascavo eu não tenho, pode ser cristal, daqueles de cubinho? Que bonequinha você é, não entendo como ainda continua solteira, Na sua idade eu estava casada há pelo menos uns dois anos e carregava o Carlos, meus mais velho, então com dois meses, no colo, pra lá e pra cá, Foram anos difíceis aqueles, uma pindaíba danada, mas não me arrependo de nadica de nada, Casei cedo, com uns dezessete pra dezoito anos, com meu primeiro namorado, Éramos apaixonados um pelo outro, Acho até que eu era mais por ele do que ele por mim, E pensar que já se passaram trinta anos, Parece que foi ontem, Faria tudo outra vez, sabe, Eis aqui seu café, Tome enquanto está quente, Tem uns biscoitinhos caseiros também, quer? Estão bem fresquinhos: assei hoje de manhã bem cedinho, O sol nem tinha nascido e eu já estava na cozinha, Tenho dormido pouco, ando muito sem sono, Passo boa parte da noite acordada, olhando pra cima, pro escuro, pensando na vida, esperando o primeiro galo cantar pra então levantar, Pode comer à vontade, você está magrinha, puro osso, E além disso, como dizem, a gente só engorda depois que casa, não é mesmo, Eu engordei muito depois do meu casamento, mais ainda durante a gravidez do João, meu mais novo, Era uma gravidez de risco e eu tinha medo de faltar algum nutriente para ele, tadinho, então comia feito uma porca, Quando ele nasceu, não deu outra, eu estava gorda tal como uma, Nunca mais consegui voltar ao meu peso normal, a gente acaba se acomodando quando está casada, isso é verdade, Você vai entender isso quando se casar também, Dois meses depois de nascido, ainda um serafim, o João morreu, De certa forma foi melhor assim, acabou não dando tempo da gente se afeiçoar, Assistiu a novela ontem? Caí no sono, sentada em frente à tevê, Essa novela está muito parada, não sai do lugar, sem assunto, muito chata, Era fã daquelas da Janete Clair, mas a que me marcou mais mesmo foi a Escrava Isaura, do Gilberto Braga, Bons tempos aqueles, hoje tudo está tão diferente, As novelas, então, é uma pouca vergonha só, mulher se oferecendo pra homem antes do casamento, e todas elas agora têm um viado, Fim dos tempos! Que Deus nos proteja, Amém, Naquela época, a gente vivia num sobradinho simples ali em Pinheiros, simples mas arrumado: sempre cuidei para que tivéssemos flores frescas no vaso sobre a mesa da sala de jantar, preferia margaridas – cravos e rosas nunca, eles brigavam, e o cheiro que exalavam  – cheiro de cemitério – interferia no aroma das refeições, Isso me causava uma certa náusea, Eu tive um bom casamento, não posso reclamar, Foram mais de vinte anos de união, Estávamos sempre um do lado do outro, na “alegria e na tristeza”, como prometido na cerimônia na igreja, diante do padre, com a presença da família dele e da minha, e o testemunho dos padrinhos, Assim foi, até que a senhora com a foice veio e levou ele embora: só larguei a mão da alça do caixão quando o Carlos me puxou de lado, pois precisavam descer o ataúde para a cova, Nunca chorei tanto como naquele dia e nos dias que se seguiram – levei uns dois meses para sair do luto, Mesmo depois que o defunto esfriou, nunca mais usei cores, continuei a me vestir de preto, Lembro-me do Padre Manoel me dizendo que isso não era bom, que eu precisava superar esse episódio, usar um amarelo, um laranja, azul não, ele dizia, Segundo ele, azul podia me deixar ainda mais pra baixo, e sempre citava o Roberto Carlos como exemplo pra justificar essa restrição, pois ele vivia vestido  – acho que vive ainda – de azul e estava sempre triste, O preto me caia bem e todo mundo dizia que preto emagrecia, então nunca mais deixei de usar, Sempre fui vaidosa, se bem que hoje não ligo muito pra essas coisas mais, Acho que o Padre Manoel na verdade via que o preto ficava melhor em mim do que nele, Tinha inveja, isso sim, aquela bichona, Enfim, quando o Carlos, meu mais velho, morreu, um ano depois do falecimento do meu marido, nem precisei comprar roupa nova pro velório e pro enterro, Usei um vestido mais decotado do que aquele que usara quando da morte do meu esposo, pois fazia muito calor no dia, E sua mãe, vai bem? Não deixe de mandar lembranças pra ela, Nunca mais a vi, Éramos muito amigas no passado, mas tivemos que nos separar por causa do Alzheimer dela, De uma hora pra outra, ela começou a não falar coisa com coisa, Aquilo começou a me deprimir ainda mais, Já andava arcada por causa da morte do meu marido e do meu mais velho, Pudera, pois perdi os dois no espaço de um ano e fiquei sozinha desde então, Nunca mais quis me casar, Aceitei essas perdas como um desígnio de Deus e permaneci viúva, Não tomei nada pra sarar da tristeza, fui me curando com o tempo, Falando nisso, estava me esquecendo de tomar meu remédio pra pressão, Espere aqui um pouquinho que já volto, o comprimido está lá na caixinha de remédios, dentro da gaveta do criado-mudo lá no quarto, Se quiser trocar de canal, fique à vontade, só não sei onde está o controle, Seu café deve ter esfriado e você nem tocou nele, Você é muito quieta, Fico só eu falando aqui, parece até que estou falando com uma boneca.

Ponto final

Quando chegou à praia, entregou seu corpo à nudez e seus cabelos aos cuidados da brisa morna que vinha do mar. Então pensou: é só isso que preciso para ser feliz.

A sua felicidade, porém, durou pouco: segundos depois de sentada nua sobre a canga que estendera na areia, a contemplar o infinito do céu e do mar, uns borrachudos começaram a picar seu corpo. A cada picada, os insetos levavam dela um pouco de seu sangue e nela deixavam uma pontada de dor.

Uma hora se passara desde sua chegada àquela praia

(já era final de tarde quando ela chegara ali)

e o sol começava a descer no horizonte: a noite estava à espreita, pronta para abocanhar o seu pedaço do ciclo dos dias. Protegidos pela escuridão, mais borrachudos vieram atacá-la.

Teria de partir dali, senão seria comida viva pelos insetos.

Não se recordava onde tinha deixado suas roupas ao chegar à praia. A euforia daquele momento era tamanha que a levou a nem dar bola para isso. E agora com o céu escuro, era-lhe quase impossível ver para além de um palmo de distância.

Os borrachudos aumentavam o vigor de seu ataque sobre o corpo dela.

Seguindo na contramão de seus pares, um deles, ao invés que chegar até ela para picá-la, beijou-a na boca: um beijo longo, demorado, com as línguas dele e dela se entrelaçando e as salivas de ambos se misturando.

Foi somente quando ele largou a boca dela, que ela enfim se deu conta de quem a beijava. Sentiu-se enojada, invadida, e assim, em seguida, empurrou o borrachudo para longe de seu rosto, levantou-se e saiu correndo sem rumo pela praia escura, indo bater com a cabeça em um galho de árvore que pendia, torto, alguns passos mais à frente.

Vendo-a naquela situação, o borrachudo rejeitado voou na direção dela, preocupado não apenas com o estado dos ferimentos que nela encontraria, mas também, como ela o receberia, após tê-lo rejeitado.

Mesmo voando rápido, a velocidade do voo não foi suficiente para evitar que ele fosse pego e, por fim, rapidamente devorado por uma coruja que, por infortúnio, cruzou seu caminho antes mesmo que ele pudesse se aproximar da mulher que desejava reencontrar.

Caída na areia da praia, toda ferida na cabeça e cheia de picadas de insetos pelo corpo, a ela não restava outra alternativa senão esperar a noite passar e, ao nascer do dia, podendo ver por onde andava, tentar, com as forças que lhe restassem, dali partir.

A noite passou e quando ela, enfim, acordou, viu-se deitada em uma cama, num quarto de hospital, todo ele branco, como branco era o uniforme do enfermeiro que, em pé ao seu lado, recolhia sangue de seu braço para um exame de sua condição de saúde.

Tendo passado a noite toda sendo picada, quase devorada viva pelos borrachudos, sentia-se fraca.

Da noite anterior, lembrava-se apenas de ter sido beijada por alguém. Mas quem? perguntou-se, sem contudo alcançar resposta em sua memória.

O enfermeiro ao seu lado, até então quieto, ao ver que ela acordara, disse-lhe então um 

– Bom dia, como está se sentindo?

no que ela respondeu

– Apaixonada, creio eu

então ele

– Apaixonada? 

de novo ela

– Sim

curioso, o enfermeiro perguntou

– Por quem?

e ela, não sabendo bem o que dizer, respondeu apenas com um prolongado silêncio.

Sem entender bem o que ia pela cabeça dela, o enfermeiro, preocupado, resolveu sedá-la e colocá-la para dormir novamente.

Vai ver está alucinando, ele pensou. Precisa descansar, complementou.

Horas depois, quando retornou ao quarto para ver como ela estava, no lugar dela, ele encontrou um ponto preto, sobre o lençol branco, que, à distância, pareceu-lhe ser um mosquito.

Ao olhar mais de perto, o enfermeiro pode enfim ver que, na realidade, o que havia encontrado ali era apenas um

.

ponto final. 

Ângela

 

À medida que se afastava do burburinho formado em torno de um disco voador que pousara na esquina da Augusta com a Paulista, Ângela foi aos poucos podendo ouvir novamente seus pensamentos — bem mais barulhentos se comparados àquele burburinho.

Seu primeiro disco voador, ela vira quando tinha sete anos. Desde então, vê-los descendo e subindo em diversos pontos da cidade tornara-se algo recorrente: já tinha perdido a conta de quantas vezes presenciara esses pousos e decolagens. Era-lhe, portanto, algo totalmente ordinário, indigno de sua atenção, que assim permanecia focada em suprir suas necessidades mais básicas.

Ao deixar para trás a multidão que se aglomerava em torno daquele disco voador que então tinha pousado na esquina da Paulista com a Consolação, não foi, portanto, a imagem do objeto em si que lhe chamara a atenção, mas, sim, o sorriso de alegria de uma menina, que parecia ter a mesma idade de Ângela quando ela tinha visto pela primeira vez um disco voador bem semelhante àquele, pousado num descampado localizado na periferia onde, à época, ela morava.

Para Ângela, uma mulher cuja idade aproximava-se dos cinquenta anos, e cuja vida havia sido, toda ela, há muito devastada, a alegria é que era algo de outro mundo, como um alienígena.

Partindo dali, ela pegou o metrô na estação Consolação e seguiu seu percurso até o Largo da Batata, de onde então pegou o ônibus que a levaria até sua casa, na periferia da cidade.

Seguiu todo o caminho com a cabeça baixa, procurando evitar o contato com o olhar das pessoas. Só quando o ônibus passou por um cruzamento, onde um palhaço fazia malabarismos para levar alegria aos passantes, foi que Ângela, inadvertidamente, levantou a cabeça e ficou a observá-lo por alguns instantes — o tempo que o ônibus levou para entrar e sair daquele local, cercado de pequenos comércios populares, onde as pessoas iam e vinham, freneticamente, sem se verem nem se notarem, como sonâmbulos a caminharem em plena luz do dia

Ângela sempre havia percebido os palhaços como sendo figuras tristes, e aquele palhaço, nesse sentido, não diferia em nada de todos aqueles que ela vira ao longo de toda a sua vida: também ele lhe parecia uma figura triste.

Contudo, havia naquele palhaço malabarista algo diferente, que Ângela somente foi dar-se conta ao chegar à sua casa e, logo de cara ao entrar, deparar-se com a foto de seu filho, em um porta-retrato sobre o aparador.

Aquele palhaço que ela tinha visto no cruzamento era demasiadamente parecido com Tomás, seu falecido filho, parecido demais, ela pensou, para de fato não ser seu filho. Um

— Meu Tomás

brotou de seus lábios angustiados, como a erva daninha que brota em meio a brechas, na aridez de uma calçada de concreto.

Ângela não se permitiu nem um gole d’água para matar a sede que a atormentava: precisava voltar rapidamente àquele local onde vira seu filho, vivo, há poucos minutos. Precisava vê-lo, sentir seu cheiro, seu abraço, poder dizer

— Filho

poder gritar

— Filho!

de novo, como fazia quando Tomás ainda era vivo.

Ângela criara Tomás sozinha, sem a ajuda do pai do menino, que a abandonou assim que soube que ela estava grávida. Para ela, Tomás era mais que um filho: era um símbolo de vitória.

Sem delongas, ela fechou a porta da casa à chave, andou dois passos e voltou para conferir se de fato a tinha trancado. Fez isso mais umas duas vezes, até ter certeza de que a porta estava de fato bem fechada. 

Seguiu para o ponto de ônibus, a poucos metros dali, a fim de pegar aquele que a levaria de volta para o cruzamento onde vira seu filho Tomás a fazer malabarismos, vestido de palhaço. Daria uma hora de percurso, se o trânsito ajudasse. 

Por todo o caminho, ela seguiu ensaiando o grito que daria ao encontrar-se novamente com Tomás. Queria poder gritar

— Filho!

poder gritar

— Tomás!

bem alto, para que todos pudessem ouvir.

A última vez que Ângela tinha visto Tomás, antes de ele desaparecer, aos dezesseis anos de idade, o menino estava de saída para trabalhar. Naquela manhã, uma operação policial acontecia no bairro onde moravam: os policiais procuravam por traficantes que, diziam os policiais, tinham base em uma casa na redondeza. Depois daquela manhã, Tomás e mais dois rapazes residentes naquele bairro, com idades próximas à idade de Tomás, nunca mais foram vistos.

Prevaleceu a narrativa de que eram de fato traficantes e que teriam sido mortos em confronto com a polícia, que por sua vez os confundira com os verdadeiros traficantes, confusão que, na visão da polícia, era plenamente justificada, afinal, assim como os traficantes, também os rapazes que tinham sido mortos eram, todos eles, pobres e pretos. Nenhum policial sofreu qualquer tipo de punição por aquele triplo homicídio.

Quando, uma hora e meia depois — Ângela encontrou um trânsito pior do que aquele que encontrara no caminho para casa — o ônibus finalmente chegou ao cruzamento onde ela vira seu filho vestido de palhaço, a fazer malabarismos para alegrar os passantes, no lugar dele, Ângela encontrou apenas um palhaço, cuja única característica semelhante à de seu filho Tomás era justamente a vontade de alegrar quem quer que estivesse por perto. Tomás sempre conseguia isso com seu sorriso largo e seu jeito molecão de ser; o palhaço bem que tentava, mas raramente conseguia extrair o sorriso daqueles que por ele passavam naquele cruzamento.

Isso ele conseguiu com Ângela: ela de fato sorriu ao encontrá-lo. Mas foi um sorriso tímido, que lhe ocorreu apenas para disfarçar a profunda decepção e tristeza que ela sentiu quando se deu conta do equívoco que cometera.

Aos olhos do palhaço, porém, aquele sorriso de Ângela parecia ser derivado de alegria. Ele então sorriu de volta. Tendo conseguido fazer Ângela sorrir — ainda que o sorriso dela tivesse sido para disfarçar a sua decepção e tristeza —, o palhaço, sem se dar conta deste detalhe, tinha conseguido finalmente cumprir a sua meta de obtenção de cem sorrisos para aquele dia. Meta cumprida, só lhe restava registrar isso em sua planilha de controle e entregar ao seu supervisor, que acompanhava o trabalho dele, sentado em uma cabine, a poucos metros dali. Feito isso, o palhaço podia, enfim, dar por encerrado seu expediente e voltar para casa.

Ângela fez o mesmo.