Falta-me o brilho das estrelas
Vai ver é porque vivo com os pés no chão
Como as árvores que fincam raizes na terra
Sou talhado para viver como quem erra
Errei a vida toda
Por isso não saí do lugar.
Falta-me o brilho das estrelas
Vai ver é porque vivo com os pés no chão
Como as árvores que fincam raizes na terra
Sou talhado para viver como quem erra
Errei a vida toda
Por isso não saí do lugar.
Naquele momento, em que tudo já tinha sido dito, parecia-lhes um ponto de não retorno, Sentados em lados opostos da mesa da sala de jantar, tentavam evitar o constrangimento do contato com o olhar do outro, desviando os olhos para o celular, para a paisagem da janela, para o teto, a parede, o chão, para dentro de cada um, A conversa que começara meio sem rumo, em pouco tempo encontrou um norte e para ele seguiu, a passos firmes, como se ali estivessem apenas para sacramentar algo que já vinha pelas suas mentes, Para dizer em palavras o que os gestos já acenavam, Abrir uma brecha de respiro numa situação que há muito vinha sendo sufocante para ambos, Para escrever mais um capítulo na narrativa da relação: o final, Não que a relação só terminasse ali, naquele momento, A bem da verdade, já havia terminado meses atrás, Ali, em volta da mesa, apenas deram voz aos sentimentos, sacramentaram, oficializaram, fizeram pedra o que antes era nuvem, A regra que faz a união não é a mesma que faz a separação, Para a primeira, é necessário um encontro de vontades, Para separar, basta que um a queira, Mesmo antes de verbalizada a decisão pelo fim, aquelas duas pessoas já não eram mais um casal, Há muito instalara-se a ausência do beijo, do carinho, mas também das brigas e discussões, Veio a paz? Vieram os silêncios, longos silêncios a preencherem o vazio da falta do que compartilhar, A pouca conversa, depois, mudou de assunto, de tom, de emoção, de cor, os olhares que a envolviam mudaram, Não se destrói uma ponte para deixar um vale em seu lugar? Ou se constrói outra ponte para unir pontos que então precisam de outra ligação? Vai ver é cada um para seu lado e pronto, vai ver que sim, vai ver que não, Como a poeira que vemos assentar sobre uma longa estrada de terra depois que a vida passa, o tempo dirá.
Ela acordou
foi ao banheiro
tomou banho
escovou os dentes
penteou os cabelos
maquiou-se
vestiu sua melhor roupa
calçou seus sapatos
pegou sua bolsa
conferiu como estava diante do espelho
parecia estar melhor do que no dia anterior
porém
não tinha para onde ir
estava desempregada
então
voltou para a cama.
Na sala da casa, encontramos pai, mãe, filho e filha, todos diante da televisão
Que segue ligada em uma novela qualquer
Na novela que ninguém presta atenção
Pareciam tão felizes na fotografia
Há pouco publicada numa rede social
Na rede na qual todos tinham perfis
Curtiam e eram curtidos
Mas não se tocavam
Não se olhavam
Não conversavam
Apenas gostavam
E odiavam
E invejavam
E compravam
E descartavam
Adicionando
Deletando
Bloqueando
Silenciando
Qual silêncio
Quanto barulho
Na sala de casa.
Para onde quer que fosse, costumava chegar em silêncio, quietinha, de maneira a chamar a atenção o mínimo possível. Sentia-se demasiado insignificante para ser notada.
Na verdade, Abigail era tímida, muito tímida, uma timidez tamanha que a fazia corar pelo simples fato de alguém lhe dirigir o olhar. Quando o que lhe dirigiam era a palavra, então, não apenas seu rosto corava, mas também seu coração punha-se a bater freneticamente.
Compelida por sua timidez, sai pouco de casa, indo à rua apenas para aquilo que lhe é essencial: o mercado, a feira, a farmácia.
Vive sozinha, às custas de uma pensão que seu pai, um militar da reserva, deixou-lhe ao falecer. Sua mãe morrera quando ela ainda era uma criança de colo. Abigail acabou sendo criada por sua tia, Dona Maria, irmã de seu pai, à época também solteira, condição que a acompanhou por toda a vida, até falecer pouco antes de seu irmão, o pai de Abigail, devido a um câncer no fígado que os médicos atribuíram ao excessivo consumo de álcool.
Certa manhã, enquanto punha as roupas para quarar no quintal detrás da casa, sob o sol escaldante de uma manhã de dezembro, ouviu tocar o telefone que ficava sobre uma toalhinha de crochê, depositada por sobre uns livros empilhados no chão da sala, ao lado do sofá, a fazerem as vezes de uma mesinha.
Abigail, que sempre evitara atender ligações telefônicas, pois mesmo isso lhe era causa de ansiedade e rubor, deixou o cesto de roupas ali, debaixo do varal, e foi caminhando apressadamente para dentro de casa, a fim de atender ao chamado do telefone, o que finalmente fez quando o quarto toque terminara de soar.
– Alô?
Alguém perguntou do outro lado da linha.
– É a Dona Abigail?
complementou.
Abigail estranhou o “Dona Abigail” – nunca ninguém a chamara assim: ou a chamavam “senhora”, quando não a conheciam, ou simplesmente “Abigail”. Jamais “Dona Abigail”.
A voz do outro lado da linha insistiu:
– É a Dona Abigail?
No que ela, já com o rosto todo vermelho, respondeu:
– Sim…
deixando clara a hesitação em sua voz.
Esclarecida, para quem ligava, a identidade de quem atendia o telefone, a voz do outro lado da linha prosseguiu:
– Dona Abigail, bom dia. A senhora já conhece a promoção do mercad…
Abigail desmaiou quando seu interlocutor ainda nem bem terminara a pergunta que lhe fazia.
Horas depois, ela acordou e viu-se deitada sobre uma cama, toda forrada de branco, em um quarto, todo ele decorado com um papel de parede com motivos de nuvens.
Numa mesinha de cabeceira, ao lado da cama, um telefone vermelho começou a chamar. Ao final do terceiro toque, ainda atordoada, Abigail atendeu.
Do outro lado da linha, alguém lhe sussurrou algo, tão baixinho que ela não conseguiu entender.
Quando Abigail finalmente conseguiu dizer um
– Alô…
hesitante, já tendo àquela hora o rosto adquirido a mesma cor vermelha do telefone, a ligação caiu.
Sem saber onde estava, ou mesmo quem lhe ligara e lhe sussurrara algo pelo telefone, tomada naquele momento por uma angústia sufocante, Abigail pôs-se a chorar, do mesmo modo como fazia quando ainda era uma criança de colo.
Foi quando, mesmo com os olhos embaçados pelas lágrimas, viu a porta do quarto se abrir e, por trás dela, surgir sua tia, Dona Maria. Ao ver Abigail ali deitada, chorando, Maria recolheu-a ao seu colo, sentou-se na poltroninha a um canto do quarto e, embalando-a em um vaivém vagaroso como o pêndulo de um relógio de parede cuja pilha se esgota, principiou a ninar Abigail, tal qual se nina uma criança, que, aos poucos
(como um relógio de parede cuja pilha se esgota)
foi parando de chorar, e por fim, caiu no sono.
Para onde quer que tenha ido, foi-se em silêncio, quietinha.
Ontem, por volta do meio-dia e meia, uma velha senhora veio sentar-se à mesa, ao lado daquela que eu ocupava no restaurantezinho de bairro, muito simples, para onde eu sempre ia para almoçar. Nunca a tinha visto antes.
Havia percebido sua chegada pelo cheiro de talco de bebê que a acompanhou, a denunciar, pelo olfato, o quanto infância e velhice guardam em comum.
Enquanto esperava pelo meu prato, pedido já havia alguns minutos, distraia-me a olhá-la com afeto: lembrava-me minha falecida avó.
Imaginei-me chegando a casa dela e deparando-me, no quarto, com uma coleção de bonecas de plástico, amontoadas sobre o guarda-roupa, todas elas adquiridas em jogos de parques de diversão. Era assim o quarto de minha avó.
Como numa arquibancada, as bonecas ficavam a olhar, lá de cima, todo o movimento do cômodo, por trás do celofane colorido que as envolvia, para protegê-las da poeira. Tinham sorrisos estranhos, que mudavam a depender do olhar de quem as observava.
– Quero esquecer o amanhã.
Minha avó dizia, a querer justificar a manutenção de todas aquelas bonecas sobre o guarda-roupa.
– Tenho memória de pirulito.
Finalizava, sempre deixando quem quer que estivesse a ouvi-la demasiado atordoado com a linha de raciocínio ali exposta.
A garçonete veio servir meu prato, e só então se deu conta de que a senhora na mesa ao lado ainda nem fizera seu pedido.
Perguntou-lhe, então:
– O que vai ser hoje?
No que a senhora que cheirava a talco respondeu:
– O mesmo que ele.
Apontando para meu prato com o dedo indicador de sua mão direita, toda ela rechonchudinha a ponto de fazer os muitos anéis que portava parecerem encravados na carne dos dedos.
Depois que a garçonete anotou o pedido dela e o levou à cozinha para ser preparado, aquela senhora ficou a me observar, ora com o olhar sobre mim, ora sobre meu prato, a ponto de forçar-me a lhe perguntar:
– A senhora está servida?
Ao que ela, de súbito, respondeu:
– Obrigada. Pedi uma salada para mim.
Respondi, então:
– Ah, ok.
Confuso, pois, acabara de vê-la pedindo à garçonete o mesmo prato que eu comia: um picadinho.
Justamente o prato que, poucos minutos depois, foi-lhe servido pela garçonete.
Intrigado, tomei coragem e perguntei-lha:
– A senhora não havia pedido uma salada?
E ela, espantada, respondeu-me perguntando:
– Foi?
E completou, decidida:
– Foi não. Pedi mesmo um picadinho, igual ao seu.
E lançando sobre mim um olhar parecido com os das bonecas que minha falecida avó mantinha sobre o guarda-roupa dela, enquanto viva, completou:
– Mas vai saber, né? Sou muito esquecida.
E por fim justificou, em meio a um sorriso afetuoso:
– Tenho memória de pirulito.
Sempre tive essa coisa meio andorinha, de voar pra lá e pra cá,
a cruzar hemisférios,
fugindo de invernos deletérios,
para buscar na vida verões, ver a alma esquentar,
e quem sabe assim, como um balão, poder voar… feito uma andorinha.
Logo que o ônibus ultrapassou a enorme plantação de eucaliptos, que ficava do lado direito da estrada, Ícaro avistou sua cidadezinha natal, ao longe, no horizonte que sempre lhe parecera tão estreito. Caía a noite, e à medida que o sol se punha por detrás das colinas, timidamente uma ou outra estrela ia surgindo no céu, ao mesmo tempo em que também as primeiras luzes da iluminação pública da cidade começavam a ser acesas, num movimento coordenado como o de uma troca de guarda.
Ícaro sentia que, na cidade, tudo estava menor, mas a impressão predominante, ao cruzar o perímetro urbano, foi de que quase nada ali mudara em vinte e cinco anos: tempo em que estivera distante.
Enquanto olhava a cidade, que ia aos poucos se revelando diante do para-brisa do ônibus, sua memória transportava-o para aquele momento, no dia da sua partida, em que, já dentro do ônibus que o levaria a São Paulo, via, pela janela, a família: pai, mãe, irmãos, avós; todos reunidos do lado de fora, a acenarem em despedida, em pé sobre a plataforma daquela rodoviária que, a exemplo de tantas outras pelo mundo afora, era apenas um lugar de passagem: dali, tal como ele, muitos partiam; outros tantos, por sua vez, chegavam; lá ninguém permanecia.
(metáfora da vida?)
De quase todos ali então reunidos, Ícaro despedia-se por uma última vez: morreram antes de ele poder reencontrá-los.
Não lhe ocorria, à época, que um filho pudesse morrer antes do pai, ou que um irmão mais novo pudesse morrer antes do irmão mais velho: Ícaro era o mais velho dos três irmãos, todos homens. As notícias das mortes que lhe foram chegando ao longo desses anos, todavia, contradisseram, em grande parte, essa crença. No final, sobrara apenas sua mãe, a única integrante da família, além dele, ainda viva.
– Ícaro!
Sua mãe
– Meu filho.
(– Tão envelhecida, meu Deus!)
a saudar-lhe o retorno à rodoviária de onde um dia, há muitos anos, ele partira, dando assim voz a uma saudade que por tantos anos quase a emudecera.
– Ícaro!
Aos prantos, ela esforçava-se por abrir caminho por entre as demais vivalmas ali prostradas sobre a plataforma: queria tocá-lo, beijá-lo,
– Mãe!
abraçá-lo. Finalmente, assim se fez. Por alguns instantes
(incalculáveis para eles)
permaneceram os dois ali, ligados por um abraço, cuja intensidade física parecia querer, na enorme pressão que se fez entre seus corpos e braços, fechar as chagas da saudade, que há tantos anos neles se exibiam abertas e cálidas. Só então deram-se conta da ordem de grandeza
– Quanto tempo…
do tempo em que viveram separados um do outro.
No decorrer desses anos, Ícaro havia mudado muito: o menino magro, barrigudinho, de umbigo estufado, tornara-se um homem viril, de aparência respeitável e olhar intenso, como os dos gaviões que, na sua infância, sequestravam inocentes pintinhos de suas mães, galinhas chocas de penas eriçadas, carregando-os para longe no céu, a fim de, logo mais, forçarem essas avezinhas a cumprirem os desígnios que a lei da vida, indiferente aos seus piados de misericórdia, impunha-lhes.
Desde muito cedo, Ícaro sentia que habitava um mundo que lhe era estranho, hostil, e uma intuição que ia se tornando nele cada vez mais forte, à medida que os anos avançavam, dizia-lhe que, mais hora menos hora, chegaria o seu momento de partir. Não fosse por sua mãe, não retornaria mais à sua cidade natal, hoje tão tranquila e pacata quanto na época em que partira.
(com a quietude de uma ruína)
Ícaro e sua mãe saíram dali, da rodoviária, caminhando de mãos dadas e, quando chegaram à casa dela, a mesma casa que ele habitara quando criança, e onde sua mãe agora morava sozinha, Ícaro viu, em seu antigo quarto, por sobre a cabeceira da cama, o quadro com a pintura de um anjo da guarda estendendo as mãos por sobre a cabeça de um menino e uma menina, ambos loiros, de cabelos cacheados, como a abençoá-los, protegendo-os de uma iminente queda em um precipício que se revelava à frente deles.
(corriam atrás de um bambolê)
O quadro já estava ali quando ele partiu. Ganhara-o de presente de sua madrinha quando do seu primeiro aniversário.
– Há de protegê-lo…
Sua madrinha dizia, sem completar a frase, deixando em aberto a informação de contra quem…
(ou o quê…)
seria a pretendida proteção.
Quando criança, Ícaro costumava deitar-se com os pés voltados para a cabeceira da cama e passar horas a admirar o quadro. A figura do anjo, em particular, atraia-o. Exceto pela cor, o longo traje que o anjo vestia era similar aos trajes que Ícaro via os padres usarem durante as missas domenicais que ele, a contragosto, ia com a família. Mas a maior semelhança mesmo era com os trajes das baianas que, no Carnaval, hipnotizavam-no ao desfilarem, rodopiantes, nos desfiles das escolas de samba que ele assistia pela televisão. Ao contrário das baianas, porém, em que era evidente o contraste entre o negro da pele e o branco dos vestidos, no caso do anjo a fronteira entre a pele e o tecido do traje era quase imperceptível: ambos eram muito alvos.
Certa vez, ao final de uma tarde, quando sua mãe chegou em casa após cumprir seu expediente no mercadinho de secos e molhados, onde ela trabalhava como empacotadora, encontrou Ícaro no quarto, de pé sobre uma cadeira, a admirar-se diante do espelho, trajando um vestido dela, branco como o do anjo da guarda do quadro, o que, na composição com a pele negra de Ícaro, fazia este parecer uma baiana, daquelas dos desfiles de Carnaval, que teria encolhido.
Ao vê-la no reflexo do espelho, Ícaro desmaiou, caindo ao chão como uma rosa jogada sobre um túmulo. Despertou poucas horas depois, sentido-se como que a flutuar alto no céu. Passada a surpresa e o susto, deu-se conta de que de fato a flutuar estava; preso por uma linha, enrolada em volta de uma lata de ervilhas vazia, que seu irmão mais novo segurava, empinando Ícaro à maneira de uma pipa, que assim subia em direção às nuvens. Lá em cima, o vento impulsionava-o para cada vez mais alto e longe. Até que a linha, incapaz de suportar a forte tensão, acabou arrebentando. Daí em seguida, Ícaro começou sua trajetória de queda.
– Ícaro, meu filho,
Sua mãe, a despertá-lo
– acorde.
de um breve, porém profundo cochilo, que o tomou de assalto, tamanho era seu cansaço, no mesmo instante em que depositara sua cabeça sobre o seu travesseiro, em sua cama. Ainda meio grogue de sono, ele confessou a ela:
– Mãe, tive um sonho tão estranho.
No que sua mãe, num tom de voz audível apenas na quietude de uma ruína, perguntou-lhe:
– Qual foi, meu filho?
E dele ouviu como resposta:
– Sonhei que estava eu dentro de um ônibus, na rodoviária, a despedir-me de você, do pai, dos meus irmãos, do vô e da vó.
Chevetinho
Não, não olhe pra mim.
Não gostaria que a imagem do que hoje sou, esse ser chinfrim,
Ficasse registrada em seus olhos como sendo a sua última lembrança de mim.
Preferiria que guardasse em seu olhar, com carinho,
A minha imagem de quando estávamos juntos,
E viajávamos pelo Brasil naquele meu chevetinho.
Que saudade daquele meu carrinho…
E eu que pensava que, por sermos casados há tantos anos, sabia tudo a seu respeito – para mim isso era praticamente insuspeito, Mas tudo bem, não vou tomar isso como um defeito seu para que continuemos a formar um par perfeito, Confesso-lhe que quando tomei conhecimento de que era amante do prefeito, em minha mente vi renascer um certo preconceito: difuso, liquefeito – mas disso já estou refeito, Não encarei de forma nenhuma isso como um desrespeito, embora até então pensasse – e não havia nada que de mim afastasse tal pensamento – que para você eu era o único eleito, Isso nunca chegou a ser um pleito e nem um preceito, era um discurso que tínhamos, cá entre nós, bem fluido, escorreito, Eu tinha do meu lado, pelo menos, que isso seria – se algum dia tivesse que ser – um acordo seu comigo a ser previamente feito, Não que eu quisesse exclusividade – nem acho que isso seria de direito, Compartilhá-la com um terceiro seria algo que eu tiraria de letra: lidaria com a mesma facilidade com que mato uma bola no peito, Mas está aí, e aqui repito sem nenhum desproveito, um assunto que eu queria, antes de consumado, poder negociar com você direito, Não queria me ver diante disso como algo já feito, sem nenhum recurso à vista para vê-lo desfeito, Desisto, pois, ao que parece, não tem mais jeito, você já tem tudo organizado e pensado do seu jeito, Resta-me a resignação de ter nós três dividindo um único – o mesmo – leito, Torço para que pelo menos ele seja um bom sujeito, e nisso faço questão que me interprete direito: ele é político, não é?, logo sobre ele sempre serei um tanto suspeito, Esse pessoal respira um ar abundante, mas putrefeito, diferente da gente que respiramos um ar honesto, ainda que bem mais rarefeito, Olha lá, não quero generalizar, sei que cada um temos um modo de ser, um jeito: uns são mais tortos; outros são mais direitos, Pelo que me lembre já falamos a esse respeito, Importante pra mim, a partir de agora, já que para isso inexiste modo de contrafeito, é que na cama ele seja capaz de dar conta de nós dois, que faça, enfim, a coisa direito, A propósito, quantos centímetros tem o coiso do sujeito? Se for mais do que estou pensando, vai subir no meu conceito, Tudo isso!? Hum, pra mim parece perfeito, e a julgar pelo seu sorriso mal disfarçado, de peito a peito, não sou o único aqui satisfeito, Só vamos combinar que, daqui pra frente, ambos vamos disso tirar proveito, Até então você usufruía tudo sozinha, Isso, sim, vou tomar como um despeito!
Quando seus olhares pela primeira vez se entrecruzaram,
foi amor à primeira vista.
Quando, por força de repetidos entrechoques, os laços que os uniam se esgarçaram,
o ódio era tamanho, que se perdia de vista.
Eu não queria apenas te ver,
Queria sentir o calor do teu abraço,
A me envolver,
Confortando-me em teu regaço.
Sei que é um pedido nada a ver,
Pois entre nós não há nenhum laço,
Sabia, contudo, que andava a me querer,
Surpreendeu-me, assim, seu embaraço.
Achava que naquele momento fosse ser
Um tanto mais devasso…
Maria partiu,
mas não foi em boa hora:
deixou partido meu coração,
que agora, quebrado, chora.
Ainda bem que ela deixou a janta feita.
Menos uma desfeita…
Queria muito poder dizer-lhe.
Com todas as letras, explicar-lhe,
Mas você me interrompe todas as vezes que eu lhe
Peço a palavra, e assim atiça o meu cansaço.
Desse jeito não dá, sinto-me um bagaço.
Cansei de lutar, não sou um palhaço.
Vamos logo esse assunto encerrar,
Mas antes preciso ir ao banheiro.
Essa conversa parece ter me tomado o tempo de um dia inteiro.
Quando voltar, quero poder falar,
Nem que seja pra simplesmente dizer… ah, sei lá:
Com a bexiga cheia não consigo pensar.
Falamos quando eu voltar.
Vou até ali, volto já.
Na calada do dia, ela caminhava,
Sob o sol do meio-dia, sol a pino,
Que não só a aquecia, como também ardia, queimava.
Seu corpo enfraquecia, sua alma alquebrava.
Ainda assim, seguia, continuava.
Não havia alternativa: de seu destino era escrava.
Quando lhe perguntavam pra onde ia, não respondia, apenas baixava a cabeça e chorava
Lágrimas que mal chegavam a ver o dia, pois assim que nasciam em seus olhos, a dureza de sua condição logo as secava.
Mais tarde, sem forças, viu-se caída no chão, vazia de vida.
A sua acabava ali, enquanto o mundo ao redor girava,
Indiferente a mais essa morte,
A morte de mais uma trava.
De manhã bem cedo, ainda estava escuro, pois o sol nem bem chegara a raiar.
Sob um céu sem nuvens, com apenas alguns resquícios da luz do luar,
Ela foi vista, toda de branco, a depositar, sobre a areia da praia, um alguidar.
Dentro dele, frutas e flores compunham uma oferenda para a deusa do mar,
Que, depois, o vai e vem das ondas, de um modo que aqui não cabe explorar,
Cuidaria de fazer à sua destinatária, algum dia – quem sabe –, chegar.
Ali ela permaneceria, assim nos contam aqueles que a viram, até que os primeiros raios do sol começassem a desabrochar.
Foi então que ela se levantou e foi trabalhar, pois tinha hora certa para chegar,
E se chegasse atrasada, o tempo com a patroa iria fechar.
Pensou: um dia hei de ganhar na loteria e essa vida deixar, mas, por ora, melhor não arriscar.
Você sabia desde o início, Por que não me disse nada? Teria me poupado de sofrer tanta dor, tanta mágoa, Há anos eu tantas lágrimas não derramava, Fiquei surpreso e triste, muito triste, naquele dia em que descobri que você me chifrava, Não pela traição em si, Não, isso por si só não seria nada, Eu superava, Mas por saber que, ao contrário do que comigo se dava, fazendo amor com ele, você gozava.
Um menino de rua, ingênuo e frágil como um barquinho de papel,
Destes cujo formato muito nos faz lembrar a imagem de um chapéu.
Sonhava conhecer o mundo, vagando livre como um pássaro no céu.
Mas tinha que se resignar à dura e fria rotina da sua existência cruel,
Que talhava cicatrizes sobre sua alma e corpo, cortante como cinzel.
Nem toda poesia do mundo caberia
[nestes versos.
Nem precisaria…
Pois tudo que quero ver expresso
Aqui — nisso não há dilema —
É uma singela alegria: a alegria de escrever este poema.
Olho seu semblante,
E nele vejo refletido o peso
Da eternidade presa
À dor daquele instante.
Em seus sulcos, meus dedos lêem
O sofrimento pungente
De uma mágoa ingente
Que, do perdão descrente,
Nega-se a seguir em frente.
Veementemente…
Era sempre assim: quando eu falava A, ele entendia Bê. Daí decidi lançar mão do Cê, e ele me veio com um “o quê?”. Tentei então a língua do Pê…, pra quê! Levou pro lado pessoal. A linguagem dos sinais foi mais uma que, em vã tentativa, viu-se frustrada: na mistura com nossas cicatrizes, acabou toda borrada. Estávamos tão cegos, que nem em Braille conseguíamos nos “ler”: pura cegueira emocional, vai ver. Teria esperança no esperanto, mas como?, se nem o inglês teve vez. Queríamos virar a página, mas antes teríamos de estar na mesma…, e não estávamos.
A linguagem corporal, como era de se esperar, logo veio pedir a palavra pra nosso cansaço denunciar. Não tardou, a partir daí, para que, enfim adormecidos, finalmente nos calássemos.
Hoje está um dia de cão.
Olho ao meu redor
e noto que todos parecem latir,
sejam cachorros ou não.
Hoje está um dia sombrio.
Olho em minha volta
e vejo que todos caminham,
soturnos e sem brio.
Hoje está um dia daqueles.
Olho para todos os lados
e me encontro sempre sem saída,
envolto entre quatro paredes.
Hoje está um dia corrido.
Olho à minha frente
e não vejo o futuro (não dá tempo),
pois este corre e rápido vira presente,
vindo ao meu encontro esbaforido.
Hoje o dia está estressante.
Olho pra cima, pra baixo, pra trás,
e não vislumbro outro cenário
que não um inferno de Dante.
Hoje o dia não está prosa…
Uma proeza ainda vir à tona este poema.
aPesar dos…
aPáticos
Padres
Pastores
Pedantes
Pedintes
emPecilhos
Pêsames
Pesos
troPicões
Pisões
Políticos
Poréns
Powerpoints
Pressões e oPressões
oPróbios
Profetas
Puns
Pústulas
Pusilânimes
Puta-que-o-pariu
… acordei Pra-lá-de-bem!
Vidas sofridas
Esperanças atropeladas
Horizontes estreitos
Como calçadas de uma grande avenida
Onde só passam carros
Não passa gente
Indigente não passa
Passa, cachorro!
Vidas rasas
Como riachos que dão pé
Mas que são secos de vida
Vida à base de fé
Em que o fel é sagrado
Cobre a vida
Como um telhado
Que não protege das intempéries
Vidas em série
Que seguem cegas
Pra morte
Morte que apaga
Vidas sem luz
Como uma gare vazia
Alta madrugada
Numa noite fria.
Ao avistar-me ao longe,
sozinho, naquela calçada deserta,
iluminada apenas pela luz incerta
de uma noite enluarada,
mas parcialmente encoberta,
correu ao meu encontro,
para abraçar-me, desmanchando-se em prantos,
saudosa estava de meu calor, meus acalantos.
Há meses não nos víamos, não nos falávamos,
tão abatidos estávamos por um longo histórico de desencontros.
Brigas e que tais,
pelos motivos os mais banais.
Mas ali, como que por encanto,
finalmente nos vimos prontos para nos perdoarmos,
e, felizes, despedirmo-nos um do outro de vez — e ponto.
Era um lugar sujo, feio, tomado por uma tristeza enorme, que se fazia ainda mais pungente por conta da chuva fria que, há mais de três dias, caia quase sem dar trégua nenhuma.
Da janela de seu quarto, no quinto andar de um antigo e decadente predinho de oito andares, Camila observava a rua em frente, completamente vazia de pessoas, com o comércio todo fechado e, por todo lado, as muitas placas de aluga-se e passa-se o ponto. Antes de tudo aquilo começar, aquela rua era ruidosa: vivia povoada de pessoas, quase sempre carregadas de sacolas, num frenético ir e vir, para lá e pra cá, que começava ainda antes do sol raiar e só tinha fim quando a noite caia.
Por vários quarteirões, viam-se lojas populares de todos os tamanhos, diante das quais se enfileiravam um sem número de barracas de vendedores ambulantes, que, de tão próximas umas das outras, pareciam, quando vistas do alto, uma única barraca comprida e esguia, que reservava aos pedestres apenas um estreito caminho de passagem na calçada. No passado, em dias chuvosos como esse, o cenário ficava ainda mais caótico. Nesse dia, porém, sem a multidão de pessoas, havia apenas a chuva, que caia numa melancolia de domingo à tarde, embora fosse outro dia qualquer.
Enquanto observava a chuva cair, Camila viu um guarda-chuva amarelo despontar na esquina e vir caminhando num passo apressado até o predinho onde ela morava. Era o carteiro. Na caixa de correio correspondente ao seu apartamento, ao lado do portão, ele depositou um envelope pardo, grande, daqueles que trazem dentro algo importante. Em geral, desde que tudo aquilo começara, quando vinha depositar as correspondências ali, o carteiro olhava para a janela de onde Camila sempre estava a observar a nova ordem das coisas lá embaixo e para ela acenava antes de ir-se embora.
Desta vez
(por causa da chuva?)
nenhum aceno. Nem ao menos se deu ao trabalho de olhar para a janela. Apenas depositou o envelope na caixa de correios e partiu, logo vindo a sumir na primeira esquina rua abaixo. Parecia apressado ou com medo.
Vai ver era um outro carteiro.
Camila não desceu para pegar a carta. Há dias
(meses?)
elas iam se acumulando na caixa de correios. Não lhe interessava saber sobre o conteúdo daquele envelope que acabara de lhe ser entregue, nem tampouco de tantos outros que ali estavam depositados, aglomerados como passageiros em um ônibus que cruza a cidade no fim do expediente.
O dia seguia seu lento caminhar: à tarde, as horas pareciam ainda mais longas, como se em cada uma delas coubesse uma eternidade.
Lá fora, ainda chovia, mas então com menos intensidade. Já era possível ver algumas andorinhas a descerem e subirem pelo céu, em voos agudos, em busca de insetos que, ao contrário de Camila, arriscavam-se a sair, pagando a liberdade com a própria vida.
Dali da janela de seu apartamento, Camila observava tudo, tomada por um tédio gigantesco, que parecia envolver seu corpo como um manto pesado.
Houve um tempo em que ela podia voar: abria suas asas e depois de batê-las duas ou três vezes, alçava voo e, logo, ganhava o espaço aberto do céu, onde permanecia voando por horas, contando com a bem-vinda ajuda dos ventos. Lá do alto, ficava a observar o movimento do mundo lá embaixo, mundo que ainda podia observar, mas agora
(e desde que tudo aquilo começara)
confinada aos limites de altura da janela de seu apartamento, no quinto andar daquele velho prédio, espremido em meio a tantos outros, como se fosse parte de uma multidão.
Volta e meia, ao longo do dia, Camila recebia a visita de um ou outro passarinho. Eles vinham pousar no parapeito da janela, de onde lançavam olhares curiosos para dentro do quarto dela. Quando a viam, partiam num sopro, assustados, talvez temerosos de que o destino de Camila pudesse de alguma forma alcançá-los e, ao custo de uma maior segurança, aprisioná-los, privando-os, assim, da tão arriscada liberdade.
Presa e isolada em seu apartamento, Camila desfrutava de grande segurança, mas lhe faltava a liberdade.
Dentro do seu quarto, havia uma televisão que se mantinha ligada o tempo todo. Era a janela com que Camila acompanhava o mundo para além dos limites do estreito campo de visão da janela de seu apartamento. Noticiário após noticiário, a impressão que Camila tinha era que os jornalistas voavam em torno das informações sobre o número sempre crescente de mortos, as UTIs lotadas, a vacinação lenta e escassa, como varejeiras em torno da carne podre, produzindo um zumbido bastante monótono, causador de uma sonolência tal, que fazia pesar as pálpebras de Camila, levando-a a cochilar de maneira intermitente ao longo do dia, o que, entre outras razões, prejudicava ainda mais seu já difícil e escasso sono à noite.
Havia perdido a conta de quantos dias
(meses?)
não saia de casa. Parecia-lhe que os dias
(meses?)
que se seguiram ao primeiro dia desde que tudo aquilo começara eram uma reprodução infinita daquele primeiro dia.
– Quando tudo isso vai terminar?
Perguntava recorrentemente a si mesma em pensamento, uma pergunta que nunca encontrava resposta, nem sequer eco na realidade sísifa que a circundava e, de certa forma, sufocava-a. Já não se recordava quando tinha sido o último momento em que tocara alguém com um beijo, um abraço ou um simples aperto de mãos.
Desde que tudo aquilo começara, os seus limites eram basicamente os limites de seu apartamento. Saia pouco e apenas para ir ao mercado, vez ou outra na farmácia… nada de mais, e sempre sozinha. Sentia-se angustiada com essa rotina, mas o medo da peste de certa forma a reconfortava.
Na solidão de seu apartamento, distraia-se com pequenos afazeres como ler, olhar fotos antigas, bordar. Outro dia, enquanto arrumava uma gaveta do armário, encontrou uma foto antiga de sua avó. Camila havia ficado meses sem vê-la e, dia desses, soube por um parente que sua avó falecera. Para ela, aquela morte não era mais um número dentre os milhares que os jornais anunciavam todos os dias. Era sua avó, afinal, que havia morrido – a pessoa com quem Camila tanto brincara na infância, quando a vida parecia não ter fim. Foi sua avó que, mesmo desprovida de asas e sem nunca ter voado, ensinou Camila a voar.
A foto não voltou mais para a gaveta: depois que soube da morte de sua avó, Camila manteve a foto sempre ao alcance dos seus olhos, em cima do criado-mudo ao lado da cama. Deitada sobre esta, Camila observava a imagem da avó, metida em um vestido típico dos anos 30. Na foto, a avó tinha um olhar sisudo, triste, que parecia mirar o vazio. Muito parecido ao olhar que Camila via refletido no espelho do banheiro, sempre que ia se pentear, lavar o rosto ou escovar os dentes.
Camila pegou a foto com a mão esquerda, levantou-se e caminhou para a janela do quarto, que por sua vez abriu com a mão direita. Com ambas as mãos projetadas para o lado de fora do apartamento, picotou a foto da avó até que esta se tornasse um punhado de pequenos quadradinhos irregulares, que Camila lançou ao vento como quem nele joga as cinzas de um corpo cremado. Uma vez jogados, os quadradinhos tomaram rumos distintos, voando para todos os lados, como os confetes que Camila tanto gostava de brincar nos Carnavais do passado.
Se soubesse o que viria depois do último Carnaval, teria celebrado como se de fato fosse o último. Teria beijado mais, abraçado de forma mais intensa, rido a plenos pulmões. E o que mais?
Com esse pensamento ainda a ocupar sua mente, Camila deixou a janela e foi até o guarda-roupa. Então, abriu suas portas e, lá dentro do antigo móvel de madeira marfim, ela avistou a fantasia de fada que acabou não sendo usada no último Carnaval: um vestido de bailarina de tule rosa, com asas de celofane púrpura, presas às costas do vestido, suportadas por uma armação de arame.
Camila despiu-se do moletom que vestia, o mesmo que vinha usando dia após dia
(meses?)
desde que aquilo tudo começara, e vestiu a fantasia de fada. Não se lembrava de ter uma varinha, do tipo daquelas que, com uma estrela na ponta, dizem ser mágicas. Procurou, procurou, mas nada de encontrá-la.
Em uma das gavetas do guarda-roupa, ao invés da varinha mágica que tanto procurava, encontrou um revólver, a arma que seu pai legara a ela quando de sua morte.
– É para a sua segurança.
Ele dizia, pouco antes de morrer. A morte de seu pai não entrara para as estatísticas repisadas todos os dias pelos jornais desde que aquilo tudo começara, à maneira das pisadas dos coveiros sobre a terra que encobre os mortos nas muitas covas que a televisão mostrava todos os dias. Covas cavadas às pressas para fazer frente à demanda de corpos sem vida que, desde que tudo aquilo começara, parecia nunca esmorecer.
Vestida de fada, com a arma na mão direita, Camila caminhou até a janela do quarto, abriu-a, subiu sobre o parapeito e, de lá, ao som de um estampido seco, Camila se viu livre para voar – um voo curto, que em fração de segundos terminou com seu corpo aterrissando, num baque úmido, no chão duro de ladrilhos à frente do prédio. Um voo demasiado rápido, mas que pelo menos serviu para libertá-la da clausura solitária em que vivia desde que tudo aquilo começara.
– É tão bom poder voar.
Pensou, pouco antes de inclinar seu corpo para a frente e acionar a varinha mágica carregada sob seu queixo.
Quando jovem, munido de uma caneta tinteiro,
Ornada com uma exuberante pluma de avestruz,
Costumava se sentar à sua escrivaninha de mogno, à meia luz,
E em silêncio, sobre um papel opaco como um nevoeiro,
Desenhava o rosto daquela que então sonhava
Um dia desposar e ter por toda a vida como sua amada.
Em outras folhas, estas brancas como um canvas,
Com vagar e com letra mui caprichada, tendo à frente
Os desenhos que havia feito da amada que tinha em mente,
Escrevia-lhes inspiradas cartas de amor,
As quais, por força do mais platônico pudor,
Acabavam, junto com os desenhos, deixadas
Dentro de um velho baú de jatobá.
Lá foram largadas e esquecidas por décadas,
Sendo por fim reencontradas, já amareladas,
Pela esposa que a vida de fato lhe dera.
Ao ver cartas tão belas, escritas de forma tão apaixonada,
Por seu par, àquela estranha,
De quem ela nunca ouvira falar, a esposa ficou muito enciumada.
Mesmo sabendo que eram correspondências antigas,
Que hoje não deveriam representar mais nada, ela,
Revoltada, pegou todas as cartas que estavam guardadas
Naquele velho baú de jatobá, cuja tampa estivera lacrada
Por anos, e jogou-as numa lata de lixo, que pelos lixeiros depois foi levada.
As cartas nunca mais foram vistas,
Nem de seu ato nenhuma suspeita seria um dia levantada.
Os desenhos, por sua vez, acabaram num fogareiro,
Sendo destruídos por inteiro.
Atos consumados, a esposa deitou-se na cama, aliviada.
Ali adormeceria, pois estava também um tanto cansada.
Seu marido, quando mais tarde chegou, encontrou-a
Já acordada e com um olhar de menina levada,
Cena esta que só atiçou a sua libido.
Fato é que terminaram a noite de um modo que há muito
Ele já havia esquecido.
O poeta disse que amar é um verbo intransitivo.
O repórter alerta que o trânsito da cidade está intransitável.
A astróloga prevê que os astros entrarão em período de transição.
O economista informa que a inflação é transitória.
A nutricionista recomenda evitar gordura trans.
Ney cantava que ele não era mais um transviado.
Em meio a tanta informação, não notei o trem passar.
Já estava atrasado. Que transtorno!
Houve um tempo em minha vida que, no horizonte,
Bem cedo o sol nascia.
A vida seguia linear, numa sucessão renitente
De dias iguais, do alvorecer ao poente.
Hoje é um tempo de minha vida que
O sol demora a aparecer.
Custa a vencer a cordilheira de prédios que atrasa o alvorecer,
Mantendo-o cativo em seus momentos inaugurais de brilho.
Vivo numa sucessão de dias que quase literalmente correm,
Nesses tempos cujas horas parecem pelos dedos escorrerem,
Desde antes do alvorecer tardio
Para muito além do precoce poente.
Hoje é um tempo de minha vida que,
Por muitas vezes, nem vejo o sol,
Prisioneiro ele fica atrás de grossas nuvens,
Detido em sua masmorra celestial.
Mesmo em dias assim, eu noto
Os personagens da cidade moverem-se rápido.
Correndo ligeiros, como aqueles atores de filmes em preto e branco,
De tempos de outrora: da aurora do cinema.
Numa sucessão monótona de dias opacos.
Nos quais não vejo nem o alvorecer nem o poente.
Houve um tempo em minha vida que
Tive de encurtar a linha do horizonte
Na qual o sol nasce,
Pra expandir a linha da esperança,
Por meio da qual a vida renasce.
Conferir-lhe verticalidade.
Tornar-me adulto: crescer.
E viver um dia após o outro,
Descobrindo-me, explorando o novo e reciclando o velho,
Numa sucessão de dias diferentes,
Por vezes mesmo inclementes,
Que se prolongam
Desde antes do alvorecer até bem para além do poente.
Houve um tempo em minha vida
Que troquei a certeza do brilho do sol todos os dias
(Na ingenuidade de minha infância),
Pela dúvida de saber se amanhã ele brilharia.
Troquei a horizontalidade do tédio da vida em minha cidade natal
Pela possibilidade de elevar-me ante uma perspectiva vertical aqui na Capital.
Seguindo em frente numa sucessão de dias incertos,
Cujos porvires ignoro, isso é certo.
Podendo mesmo nunca chegar a conhecê-los, pois
Não sei se amanhã verei o dia amanhecer e, se vê-lo,
Não sei se chegarei a vê-lo morrer no seu poente.
Justamente por isso que o tempo de minha vida
Vivo-o intensamente.
Quem sabe um dia,
Da próxima vez,
Amanhã,
Ou depois,
Talvez,
Semana que vem,
Vá lá.
Quem sabe até lá,
Sei lá,
A gente volte a se ver,
E possamos finalmente (quero crer),
Nos entender,
Nos encontrar.
Sonho com esse dia,
Não quero d’ele despertar.
Quem sabe um dia,
Como por um golpe de sorte,
Veja esse sonho se concretizar.
Esse dia há de chegar,
Amanhã,
Ou depois,
Sei lá.
Só não posso desistir de esperançar,
Pois isso seria a própria morte,
E para ela não quero acordar.
Ao ver o dia raiar,
Punha-se a cantar
Com a devoção de quem reza,
Com a emoção de quem abraça,
Com a sedução de quem beija.
Assim cantava aquele sabiá,
Empoleirado, lá no alto do jacarandá.
Dias bem-aventurados
Aqueles da minha infância em que acordávamos ao som do lirismo triste desses fados.
Dentro do coração
que esculpiram à mão
sobre o tronco da velha árvore,
escreveram “aqui jaz”,
do modo como se faz
nas lápides de mármore.
Aquela nuvem que passa, lá em cima…
Não é você, nem ninguém,
É só vapor, fumaça…
Vai ver, com a licença da poesia,
É uma procissão de anjos,
Que marcham em direção à eucaristia.
Não fazem mal a ninguém, relaxa.
Apenas rezam pelo nosso bem – amém!
Quando perguntada sobre qual era a razão de toda aquela tristeza que a acometia,
e que tanto sofrimento lhe trazia,
em resposta, ela virou-se e, sem dizer nada, apenas sorriu,
e nesse gesto tão singelo, sua tristeza sumiu.
Depois se soube que a causa da sua tristeza era uma enorme solidão,
curada, quem diria, apenas com um quase nada que lhe deram de atenção.
Triste, não?
Em suas calças de popeline, ele corria sob o sol, ao longo da praia,
Ia ao encontro dela, que lhe acenava com um lenço de cambraia.
Parecia cena de filme, daqueles que falam de amores à primeira vista,
Mas não, era apenas um ensaio de moda em uma velha foto de revista.
Com aqueles três cacos de palavras não dava para formar uma frase, nem uma expressão, muito menos uma ideia.
Só deu pra fazer um mo-sai-co.
Não parou de chover desde o dia
em que partiu.
Não abro aquela porta desde o dia
em que por ela saiu.
Você levou a chave, lembra-se?
Deixando-me aqui trancado
— por isso não saio —
E não por medo de me ver molhado.
Quando lhe perguntei, não me respondeu.
Quando lhe pedi, não me deu.
Quando pros teus braços corri, não me acolheu.
Até quando?
Quando te chamei, não me atendeu.
Quando lhe escrevi, não me correspondeu.
Quando quis estar junto de ti, de mim correu.
Até quando?
Quando te avistei, virou-me as costas.
Quando por ti chorei, riu-se de mim.
Quando implorei por tua companhia, deixou ao meu lado a cadeira vazia.
Até quando?
Quando abri meu coração, fechou-se em sua alma, tão fria.
Quando procurei seus olhos, dos meus desviou-se para olhar pro nada, em apatia.
Quando busquei seus lábios, praguejou: não me queria.
Até quando?
Hoje decidi que quero me casar com você.
Só me resta pensar em quando.
Sei que a partir daí seremos felizes para sempre.
Até quando?
Essas janelas
Que agora servem de anteparo à chuva que cai lá fora
Chuva que, no som de seus murmúrios, embala meus pensamentos
Desviando-os da insanidade para onde o silêncio absoluto os levaria
Essas janelas
Que tanto de nós testemunharam
Iluminando-nos na inefável glória de nosso mel
Preservando do mundo a infâmia de nosso fel
Servindo de fundo ao ordinário de nossas rotinas de casal
Essas mesmas janelas
Pouco puderam fazer
Senão, ao serem abertas, permitirem-nos respirar
Assim nos livrando da completa asfixia
Que nos sufocava em nosso dia a dia
Janelas ordinárias
Que presenciaram, impassíveis como sentinelas
O fim de nossa história
Benditas janelas
Que me mantêm ao abrigo da chuva lá fora
Impedindo suas águas de com minhas lágrimas se encontrarem
Daí me preservando da imagem de uma pororoca
(everybody hurts)
Triste alegoria que de cruel ilustração serviria
Para o turbilhão de emoções contraditórias que ainda me devassam
(everybody cries)
Pondo-me em frangalhos que parecem no tempo se eternizarem
(if you’re on your own in this life)
Malditas janelas
(the days and nights are long)
Que agora me impedem de seguir por um atalho
(and you think you’ve had too much of this life to hang on)
Para uma solução final para as indizíveis dores que ainda me assolam
(if you feel like you’re alone)
Essas janelas…
(no, no, no… you’re not alone)
(so hold on, hold on).
Tinha fome de viver,
Mas disso desistiu,
Ante a fome de morrer,
Pois desta, primeiro sucumbiu.