Seus cabelos grisalhos, que no passado chegaram a ser totalmente brancos, ostentavam agora exuberantes tons e sobretons de roxo e viviam presos em um coque, no alto da cabeça, que, visto a uma certa distância, lembrava um botão de rosa, imagem que determinadas percepções costumam associar a uma vida ainda por ser vivida.
Diz-se, metaforicamente:
– Aquela criança ainda é como um botão de rosa. Um dia há de desabrochar, tornando-se, enfim, um adulto bem sucedido.
Mas a dona daqueles cabelos em tons e sobretons de roxo, presos em um coque no alto da cabeça, estava bem distante de lembrar algo próximo de uma vida ainda por desabrochar, pois, aos 88 anos, Milagres era, sim, exemplo típico de uma vida às voltas com o seu crepúsculo. Julgava mesmo ter vivido até demais, pois, quando ainda bebê, chegara a ser desacreditada por um médico que, pegando nas mãos de sua mãe, pondo-as juntas e elevando-as à altura dos olhos, como numa prece, comunicou-lhe, numa voz solene e fria:
– Creio eu que sua filha deverá viver só mais uns dois dias.
No que a mãe de Milagres, ao ouvir isso, olhou o médico fixamente nos olhos, desviando-os por ligeiros instantes para olhar a pequena criança, magra devido à desidratação, deitada no Moisés. Então respondeu-lhe, sem dizer palavra nenhuma, fazendo uso apenas da silenciosa linguagem universal das lágrimas, que diz muito sobre nossas alegrias, ou, no caso dela, enorme tristeza, sem por vezes recorrer a palavra nenhuma.
Passados os dois dias previstos pelo médico, para a sobrevida da pequena Milagres, a morte não veio buscá-la, nem o fez depois. Contra todas as expectativas, ao menos aquelas do médico, Milagres sobreviveu e cresceu
(desabrochou)
para tornar-se uma jovem robusta, cuja alegria de viver em nada parecia trazer o registro daquele passado que quase lhe surrupiara o futuro.
Aliás, foi graças, em parte, a essa alegria, que Milagres conquistaria Antenor, homem de 40 anos com quem ela viria a se casar aos 30 anos, idade em que a maioria das mulheres de sua família já estava casada, tendo inclusive dado à luz ao segundo ou terceiro filho, daí porque, à época, antes de Antenor aparecer na vida de Milagres, sua mãe, tias e primas consideravam que ela já estava fadada a viver solteirona pelo resto da vida.
Seguindo a tradição dessas mulheres de mesmo sangue que o seu, Milagres, mesmo aos 30 anos, casou-se virgem. Uma vez casada, porém, a alegria que cultivava no seu modo de viver foi aos poucos minguando, pois Antenor punha-se a chorar todas as vezes em que iam para a cama. Acabava então no colo de Milagres, que aí o acolhia à maneira de uma Pietà. Isso desde a noite de núpcias. No tempo em que viveram juntos e casados, nunca falaram a respeito das causas desse comportamento. Acabou que o mistério sobreviveu a Antenor, pois este, vitimado por um repentino ataque cardíaco, veio a falecer dois anos após o casamento com Milagres. Ela, traumatizada pela experiência, nunca mais voltou a se casar e nem a estar com nenhum outro homem.
De rabo de ouvido, escutou uma vez suas primas a cochicharem que ela:
– É um botão de rosa que murchou antes de desabrochar.
Fazendo uma maldosa referência à situação de Milagres, que unia viuvez e virgindade em uma mesma pessoa.
A bem da verdade, Milagres nunca mais quis estar com nenhum outro homem por sentir-se em débito
(e portanto culpada)
com uma regra soberana das mulheres de sua família, a qual obrigava, cada uma delas, a casar-se cedo
(o que ela já não tinha cumprido)
e viver com o mesmo homem até a morte separá-los, e daí em diante, se acaso a sobrevivente fosse a mulher, nunca mais se casar, vivendo como uma solitária viúva até morrer.
Felizmente, para Milagres, Antenor não deixou apenas saudade, mas também uma grande herança, que permitiu a ela viver com razoável conforto mesmo após a partida dele.
Mas se a herança era grande, também o era a saudade que ela sentia de Antenor. Para lidar com ela e também com a solidão, Milagres espalhava fotos deles dois juntos por toda a casa. Com o mesmo fim, procurava manter sua rotina a mais próxima possível de quando seu marido ainda era vivo. À noite, por exemplo, como alguém que continua a caminhar com o guarda-chuva aberto mesmo depois de cessada a chuva, Milagres continuava a dormir do mesmo lado da cama de casal, o direito, que sempre ocupara quando Antenor ainda era vivo. Nunca foram de dormir entrelaçados: Antenor era um homem calorento; Milagres era friorenta, mas preferia aquecer-se na manta Parahyba a buscar o calor junto ao corpo de seu marido.
No lado da cama que Antenor antes ocupava, há agora um pequeno declive, deixado ali, como uma sequela na estrutura do colchão, pelo peso do seu corpo. No meio daquela depressão, há uma arca, dentro da qual estão depositadas as cinzas de Antenor. Aquele lado da cama era, portanto, para Milagres, como que um altar fúnebre em memória do falecido.
Tinha sido o último desejo de Antenor, ainda em vida, ser cremado após a morte e ter suas cinzas jogadas por sobre um campinho de várzea, a alguns quarteirões da casa onde moravam, mas Milagres, que nunca tinha gostado de ver Antenor deixá-la sozinha, todos os domingos pela manhã, para ir àquele campinho jogar bola com seus amigos, decidiu não atender essa segunda parte do pedido. Não cumprir o último desejo em vida de Antenor, para após sua morte, de certa forma, ajudara Milagres a ver finalmente cumprido o seu próprio, único e singelo desejo: ter Antenor ali ao lado dela também nas manhãs de domingo.
Certo dia, logo cedo, ao despertar, Milagres estendeu seu braço direito para o lado, jogando-o sobre a parte da cama, que antes era ocupada por Antenor, e nisso, fez tombar a pequena arca com as cinzas, no que estas acabaram espalhando-se sobre aquele local do lençol onde havia o declive.
As cinzas de Antenor, esparramadas ali sobre o lençol, naquela parte onde o colchão formava um baixo relevo do tamanho do seu corpo, lembraram a Milagres o pó de café que ficava depositado no fundo do coador de pano utilizado por sua avó materna.
Na sua infância, quando de férias, Milagres costumava passar alguns dias na casa da avó. Juntas, acordavam bem cedo, logo que os galos da vizinhança começavam a cantar, como se quisessem, com seu canto, despertar o sol de seu sono.
Enquanto punha a mesa, Milagres via sua avó preparar o café, ficando inebriada pelo aroma que tomava conta da cozinha. O cheiro daquele café preparado em coador de pano acabou registrado em sua mente, por toda a vida, como o cheiro das férias que, em sua infância, passava no interior.
Do pó de café, uma vez utilizado, sua vó fazia adubo, jogando-o por entre os xaxins das samambaias, que ornamentavam a ampla varanda na frente da casa dela. Milagres, dali do entreportas, acompanhava tudo com curiosidade. Sua avó uma vez disse-lhe:
– O pó do café faz com que elas cresçam mais frondosas.
Assim, em poucas palavras, de modo muito objetivo, como era de seu hábito, a avó justificou o porquê de jogar o pó usado do café dentro dos xaxins das samambaias.
E, de fato, as samambaias de sua avó tinham mesmo uma vitalidade surpreendente: pareciam estar ali desde os primórdios da Terra.
Despertada dessas lembranças, que por instantes tomaram sua mente de assalto, e de volta ao presente, Milagres, com certa indiferença, conseguiu, enfim, recolher as cinzas de Antenor, envolvendo-as no lençol. Levantou-se e, com o lençol enrolado a envolver as cinzas, caminhou até a janela do quarto. Lá, debruçou-se sobre o peitoril e, com os braços estendidos para fora, sacudiu as cinzas, que, ante a completa ausência de vento, acabaram por ir-se depositarem sobre o solo do que um dia tinha sido um jardim, e onde agora havia apenas terra nua, ressequida, sem nenhuma vegetação.
Depois do falecimento de Antenor, Milagres foi abandonando, um pouco mais a cada dia, a idéia de cuidar de qualquer vida que não a sua própria. Nesse processo, foi-se desinteressando, entre outras coisas, por cultivar o jardim de rosas, de variadas cores, que alegravam a entrada da casa quando Antenor ainda era vivo, no que sempre recebia a ajuda do marido, que, aliás, parecia nutrir maior amor por aquelas flores que por sua esposa. Com o abandono, as roseiras foram cedendo lugar ao mato e, num ano de muito pouca chuva, tudo secou de vez, restando ali nos canteiros apenas palha seca. Nem mesmo desta resta agora vestígio.
Não se sabe ao certo, mas não seria de todo absurdo especular que a adubação proporcionada pelas cinzas de Antenor, ajudada pelas chuvas frequentes que, a partir daquele dia, começaram a cair ao final das tardes, como que por um milagre, após um ano de muita seca, fizeram as roseiras voltarem a nascer, vestindo de verde aquela terra novamente. Em pouco tempo, surgiram os primeiros botões e, logo em seguida, as roseiras estavam floridas, sem que para isso tivesse sido necessária qualquer interferência de Milagres, outra que não ter jogado ali as cinzas do seu falecido marido, e depois lá esquecê-las.
Um senhor que passava por ali, em frente à casa de Milagres, todas as manhãs, no caminho para o seu trabalho, ao notar as roseiras frondosas, no meio das quais rosas multicoloridas floresciam, que em poucos dias haviam dominado a frente da casa, e como apreciador de flores que era, certa vez, numa manhã ensolarada, tomou coragem e tocou a campainha da casa de Milagres. Estava curioso para saber quem era a responsável
(assumia que fosse uma mulher)
por tão belas rosas a florirem naquele jardim.
Tocou a campainha uma, duas, três vezes e ninguém atendeu.
Pensou:
(– Vai ver ainda dorme.)
Depois, disse baixinho:
– Não quero incomodar o sono de ninguém.
E, em seguida, continuou seu caminho, como quem diz:
– Volto outro dia.
E, de fato, assim o fez. No dia seguinte, no mesmo horário, nova tentativa na campainha: uma, duas,
– Pois não?
no segundo toque, Milagres enfim atendeu.
– Bom dia.
Disse-lhe o homem, no que ela, com a voz rouca de quem acabara de acordar, respondeu:
– Bom dia. Em que posso ajudá-lo?
E ele, nervoso:
– Eu passo aqui nesse horário, diariamente, e dias atrás notei essas rosas incríveis aqui no jardim em frente à casa da senhora.
– Rosas!?
– Sim. Rosas lindas, multicoloridas como uma colcha de retalhos.
Milagres desconhecia que aquelas rosas a que o senhor ao seu portão se referia existissem. Na sua vida reclusa, pouco saía à porta da frente e, quando o fazia, a fim de ir ao banco ou para comprar algo no mercado, ou os dois, caminhava cabisbaixa
(como uma flor murcha)
indiferente a tudo e a todos ao seu redor.
– Queria dizer-lhe apenas que a senhora está de parabéns. Essas rosas em seu jardim são uma injeção de alegria nessa vizinhança tão triste.
Um tanto sem jeito, Milagres agradeceu-lhe:
– Obrigada.
E, algo intrigada, perguntou:
– Qual o nome do senhor?
E ele respondeu:
– Antenor.
Mal o homem terminara de pronunciar o:
– Antenor.
Milagres sentiu sua alma, de um instante para o outro, como que a crispar-se, e um rubor subiu pelo seu rosto, tingindo-o de um vermelho vivo.
– E a graça da senhora?
Ele perguntou, e ao ouvir a pergunta, Milagres, ligeira, desligou o interfone, ajeitou o penhoar sobre os ombros, fechando-o na parte dianteira de seu corpo, e correu em direção à porta da frente, abrindo sua portinhola a fim de, com os próprios olhos, certificar-se de que seus ouvidos não lhe tinham pregado uma peça: ter ouvido o nome de seu saudoso e falecido marido da boca daquele homem desconhecido, com quem falara ao interfone, afigurava-se-lhe como algo um tanto inusitado, irreal até, ainda mais porque, mesmo através do interfone, a voz daquele homem soava demasiado semelhante à voz de Antenor.
Olhando pela portinhola, pôde ver de fato, iluminadas por um sol ainda sonolento
(sem galos a cantarem para despertá-lo do sono)
as roseiras, cujos caules, grossos e cheios de espinhos, terminavam em rosas das mais variadas cores
(como uma colcha de retalhos)
Chamou:
– Antenor?
E nada
– Antenor?
nem ninguém apareceu.