Aurora

A qualquer hora do dia, quem quer que passasse ali na frente da porta daquele pequeno comércio, bem ao lado da floricultura, notaria a presença daquela mulher corpulenta, sentada de cócoras sobre um banquinho de madeira, desses de três pés, que mantinha o corpo dela a poucos centímetros do chão; mais um pouco, e ela estaria de fato sentada sobre o piso de cimento da loja, formando uma imagem que muito provavelmente a assemelharia a um sapo.

Na loja, vendia-se uma enorme variedade de bugigangas para cozinha, banheiro, alguns doces, salgados, e o que mais pudesse chamar a atenção dos transeuntes para adentrarem naquele pequeno espaço e comprarem algum produto que estava ali exposto.

Vez ou outra, via-se uma ou duas crianças a fazer companhia para a mulher. A julgar pela idade que ela e as crianças aparentavam ter, seria fácil dizer que se tratava de avó e seus netos. E de fato eram. Aurora era a avó dos dois meninos de oito e dez anos de idade, ambos filhos de Maria, a filha de Aurora, que os tivera enquanto ainda vivia com João, homem que, logo após o nascimento do segundo filho, fugiu de casa sem dar notícias de seu paradeiro. Isso há quase três anos. Maria trabalhava como caixa em uma lotérica a poucos metros de distância da loja da mãe, virando a esquina. Moravam ambas mais os meninos no andar de cima da loja de Aurora, em um quartinho que mal os acomodava: tinham de dividir a mesma cama de casal, que desencostavam da parede à noite, para dormir, e apoiavam novamente na parede depois de acordarem, de modo a livrar algum espaço para circulação ali dentro. Ainda assim, ficava apertado.

Certo dia, ao abrir a loja logo de manhã bem cedo, como costumava fazer, Aurora deparou-se com um envelope que alguém fizera passar por debaixo da porta de ferro. Ela abriu o envelope e tirou de dentro dele uma folha de papel em cujas linhas algo vinha escrito. Sem saber o que era, recolocou a folha dentro do envelope. Aurora nunca tinha podido estudar, era completamente analfabeta. Seu pai a proibira de estudar, pois não queria que ela fosse capaz de escrever cartas para os meninos do bairro, não queria a filha na boca do povo, queria que ela fosse uma menina direita. Naquela família numerosa, todos os filhos homens puderam estudar ao menos para aprender a escrever o básico. Aurora, a filha do meio, a única filha mulher, nem isso. Nunca chegara sequer a entrar em uma escola. Conseguia se virar ali na loja, pois tinha um certo tino para lidar com números, embora também não conseguisse lê-los. Ao menos, era-lhe algo mais intuitivo do que as palavras.

Ela foi então pedir a Pedro, seu neto mais velho, para ajudá-la a entender o que dizia o bilhete

– Pedro, me ajude aqui.

Vendo a avó com o envelope na mão, ele, curioso, quis saber

– O que é isso, vó?

Aurora abriu o envelope e extraiu de dentro dele a folha de papel cujo conteúdo queria decifrar e mostrou-o a Pedro

– Me diz o que está escrito aqui.

O menino pegou o papel na mão, olhou, olhou e depois respondeu para a avó

– Vó, não diz nada aqui.

Ela, incrédula, insistiu

– Como assim não diz nada?

No que Pedro confirmou

– Não tem nada escrito.

Não satisfeita, Aurora então lançou um

– Então o que é isso aqui?

enquanto apontava o dedo para o desenho de um coração vermelho a preencher a parte central da folha de papel

– É o desenho de um coração, vó

respondeu-lhe Pedro, algo incrédulo por ver a avó incapaz de entender aquele desenho tão simples.

Aurora ficava a olhar para a imagem do coração ao centro da folha de papel que segurava firme em suas mãos, como se visse e talvez sentisse algo pela primeira vez na vida, tamanho era o estranhamento expresso em seus olhos. 

— De quem é essa cartinha, vó?

Inquiriu-lhe Pedro, chamando de cartinha aquela simples folha de papel com a figura vermelha de um coração ao centro, como se tivesse sido pintada à canetinha.

Aurora refletiu por alguns instantes, enquanto seu olhar ia da folha de papel para a vigília da porta da loja, pois havia sempre o risco de trombadinhas passarem por ali e roubarem algum produto que estivesse mais à mão, e depois voltava para a folha de papel. Refletiu mais um pouco e com os olhos a brilhar devido ao orvalho dos velhos, sob o sol forte que invadia a loja naquele horário, respondeu-lhe numa tristeza bondosa de avó

— Deve ser de alguém que vê sua avó como uma gorda.

Incapaz de qualquer compreensão daquela figura fosse como órgão do corpo propriamente dito e menos ainda como símbolo do amor, ela viu na figura vermelha daquele coração ocupando todo o centro da folha de papel, desenhado com linhas irregulares, que, tal como uma carta, tinham colocado dentro de um envelope e feito passar por debaixo da soleira da porta da loja, apenas e tão somente a imagem de sua caricatura.

Tem coisa que só sai da gente por escrito

Todas as tardes, ela caminhava até a porta da sala e, de cara para a rua, punha-se a picotar as cartas que trazia em uma sacola plástica, dessas de supermercado. Dali daquela porta, ficava a lançar os pedacinhos das cartas sobre a calçada, até que, ao modo das folhas do outono, eles cobrissem todo o trecho em frente ao sobrado onde morava.

Não eram cartas quaisquer que Aurora picotava, eram cartas de amor, dezenas delas, acumuladas ao longo de toda uma vida. Cartas que carregavam desabafos, angústias, ansiedades, ódios e, também, muitos amores, estes não raramente ornamentados com corações desenhados com canetinha hidrocor vermelha, a destacar os diversos

“eu te amo”

ou mesmo os

“sinto sua falta”

e até os

“não sei viver sem você”

com que ela preenchia aquelas cartas.

Com canetinhas de outras cores, ela pintava as letras dos

“eu te odeio”

ou

“nunca mais quero te ver”

e os ainda mais definitivos

“suma da minha vida”.

Na verdade, nem sempre tão definitivos, pois muitos desses

“suma da minha vida”

foram depois seguidos de reconciliações, que, uma vez concretizadas, punham em marcha novos ciclos de

“eu te amo”

e

“sinto sua falta”

e

“não sei viver sem você”

sempre ornamentados com corações desenhados com canetinha hidrocor vermelha.

Aurora colecionava essas cartas desde a mais tenra adolescência, quando sua letra ainda era de

– Menininha.

como dizia sua mãe, ao revisar suas tarefas escolares, a fim de garantir que a filha fosse sempre a primeira da classe, missão que sua mãe conseguira bem cumprir apenas enquanto Aurora foi de fato uma

– Menininha.

Fase que terminou quando, já desinteressada dos estudos, Aurora escreveu sua primeira carta de amor ao menino, loiro, que à época tinha a mesma idade dela, e cuja família se mudara, dias antes, para o sobrado vizinho.

O sobrado estava até então vazio, pois sua antiga e única moradora, Dona Sônia, que ali residira por todos os seus últimos dias, sozinha, havia falecido de causas naturais, repentinamente, caindo ao chão como um passarinho que, de uma hora para a outra, vê-se sem asas em pleno voo.

Foi Dona Sônia que ensinara Aurora a escrever cartas de amor. Dizia-lhe sempre:

– Tem coisa que só sai da gente por escrito.

Ensinamento que guiou Aurora por todas as vezes em que se punha a escrever suas cartinhas, as quais, pouco depois de completar 80 anos, trazendo na pele da alma as muitas feridas de amores passados, desesperançada de um dia poder voltar a amar alguém e sozinha no mundo como Dona Sônia vivera antes de morrer, passou a picotar, jogando os pedacinhos, pequenos como confetes, por sobre a calçada, vez ou outra atingindo algum pedestre que por ali passava bem nesse momento.

Ninguém entendia a razão por que Aurora, todas as tardes, desde completar seus 80 anos, vinha cumprindo esse ritual de picotar as cartas de amor que tão zelosamente guardara ao longo dos anos, todas elas escritas de próprio punho e nunca enviadas aos seus destinatários.

(dos quais Aurora nunca recebeu carta nenhuma)

Certa vez, questionada por uma vizinha sobre o porquê daquele gesto, Aurora deu de ombros e respondeu simplesmente:

– Estavam a juntar traças dentro de casa.

E seguiu picotando as cartas e jogando à calçada os seus pedacinhos, tão pequenininhos que, ainda que fossem colados de volta, não garantiriam o retorno da carta à sua legibilidade de origem.

– Tem coisa que só sai da gente por escrito.

Ensinava-lhe Dona Sônia – uma lição que Aurora bem apreendeu.

Por outro lado, a vida lhe ensinara que outras coisas só saem da gente quando de fato as destruímos e jogamos fora, muitas vezes nos deixando em pedacinhos.