Dordolhos

Aos dias seguiam-se noites, e a estas seguiam-se outros dias, num ciclo que parecia não ter mais fim. Dentro daquele pequeno cômodo, cercado de paredes de tijolos por todos os lados, exceto pela parede de vidro bem à sua frente, Dordolhos chegava a perceber algo dessa alternância entre dias e noites, mas não pela simples variação entre luzes e sombras e vice-versa. Havia, de fato, períodos de maior luminosidade em que, para o outro lado da parede de vidro, acorria um grande número de pessoas; e outros em que estas sumiam de todo, e a única movimentação que Dordolhos podia então acompanhar, na escuridão que se formava ao seu redor, era a de um senhor que volta e meia passava caminhando do lado de fora daquela parede de vidro, com uma lanterna acesa na mão. Quando ele vinha, mirava a luz da lanterna através da parede de vidro, fazendo-a percorrer o chão escuro daquele cubículo, até encontrar com os pés de Dordolhos, e dali fazia-a regressar. Homem e lanterna depois seguiam pelo corredor, deixando para trás treva tamanha, capaz mesmo de tornar indistintas, aos olhos de Dordolhos, as quatro paredes – três de tijolos e uma de vidro – que a envolviam. Nem ela nunca soube dos olhos dele, nem ele chegou a algum dia saber dos olhos dela. Dordolhos não era seu nome de batismo – na verdade, ignorava-o. Na sua infância, certa vez, acometida por uma grave conjuntivite que demorou semanas para sarar, acabou apelidada de Dordolhos pelos meninos de seu bairro, e o apelido logo depois apoderou-se de seu nome, e assim, como Dordolhos, ela passou a ser chamada daí em diante.

Única filha de um pai pedreiro e de uma mãe dona de casa, Dordolhos viu-se órfã de ambos, ainda muito menina. Seu pai e sua mãe morreram em condições até hoje não explicadas. Saíram uma noite para ir ao culto da igreja, deixando a pequena Dordolhos em casa, na companhia de sua avó materna, Dona Eulália, e nunca mais voltaram. Ao acordar na manhã seguinte àquela noite, a menina procurou por seus pais e foi avisada por sua avó, em prantos, que eles haviam partido para um lugar distante e que demorariam a voltar. Passaram-se então dias, meses e depois, finalmente, anos, num tempo tão longo que lhe pareceu não ter mais fim, e nada de seus pais retornarem. 

Na manhã seguinte ao desaparecimento de seus pais, com seus olhos fixos, a mirarem o nada através da janela do barraco, e tendo seus cabelos ligeiramente balançados por uma brisa morna que por ali entrava, Dordolhos viu seu ser tomado por um sentimento de abandono, de solidão. Com o passar do tempo, resignou-se.

Graças à solidariedade de alguns vizinhos e de Dona Eulália, que acabou por adotá-la, a menina sobreviveu. Dias depois do desaparecimento de seus pais, Dordolhos já estava morando com sua avó, no barraco em que esta residia, localizado num bairro não muito distante daquele onde a menina antes vivera com seus pais. O desaparecimento destes era, aliás, assunto proibido na casa de sua avó e mesmo naquele bairro. O silêncio, tal qual um sudário que encobre um cadáver, cobria a verdade por trás do misterioso sumiço, impedindo que lhe acessassem.

Certo dia, quando Dordolhos já era mulher adulta, uns homens vieram bater à porta do barraco onde ela ainda morava com sua avó. Ficaram pouco tempo e em seguida partiram, levando Dona Eulália com eles. Nem ela nem sua avó esboçaram nenhuma reação: era natural desaparecer: não se sabia de ninguém que tivesse morrido por aquelas bandas: as pessoas simplesmente desapareciam.

Mas ao contrário do sol, quando ao final do dia, põe-se no horizonte, para no dia seguinte ressurgir do lado oposto do mesmo horizonte, não havia retorno para aqueles que dali desapareciam – simplesmente nunca mais voltavam e deles jamais sabia-se notícia alguma.

Então, depois de levarem sua avó, Dordolhos passou a morar sozinha no barraco. Seu sustento tirava dos bordados que fazia e depois vendia para suas vizinhas. Nunca chegara a desbravar a cidade para além dos limites do seu bairro, uma enorme favela que crescia sem parar, às margens de uma movimentada rodovia, que cruzava uma área da cidade tida por nobre.

Anos depois, numa manhã de inverno, em que um forte nevoeiro baixara sobre o bairro, atrasando o surgimento do sol e com isso aumentando a sensação de frio e desamparo dos moradores daquela comunidade, Dordolhos, então já uma velha, acordou assustada ao som de marretas e bate-estacas. Ignorando a presença dela ali dentro, uns homens puseram uma das paredes do barraco abaixo e, no seu lugar, instalaram uma grande vidraça, que, tal qual uma vitrine, foi limpa e polida com esmero. Todas as demais saídas do barraco, basicamente uma janela e uma porta, foram vedadas com tijolos. Só um pequeno orifício, suficiente apenas para a passagem de um prato de comida, foi deixado aberto na parede. Depois desse ocorrido, através dele, de fato, três vezes ao dia, e uma vez à noite, alguém que Dordolhos não conhecia nem sequer pelas mãos, uma vez que estas estavam sempre envoltas em luvas cirúrgicas, fazia passar por ali um prato de comida e alguma bebida, em geral apenas água.

À frente da vidraça que substituíra uma das paredes do barraco, agora passam homens, mulheres, crianças e velhos, todos a depositarem olhares curiosos, entediados, cheios de pena ou mesmo aversão, sobre aquela mulher velha, sentada encolhida do outro lado da parede de vidro, que, pela perspectiva deles, de lá de fora, não era nada senão mais uma mercadoria exposta numa vitrine, assim como tantas outras do grande ‘shopping center’ construído no entorno do barraco de Dordolhos, e que por fim acabou aprisionando-a, ali dentro, como um animal enjaulado, fazendo dela, depois disso, uma atração para os frequentadores do grande centro de compras, os quais, olhando através daquela vitrine, tinham a oportunidade de ver o exemplo vivo de um ser humano excluído.