Quem te espera?

Era-lhe quase impossível precisar há quanto tempo estava a esperar, se horas, dias, quem sabe até mais. Para Lúcia, o tempo parecia um contínuo infinito, denso e viscoso, que, como o ponteiro de um relógio que parou de funcionar, prendia-a num quadrante fixo, no qual passado, presente e futuro pareciam iguais na sua completa ausência de perspectiva.

Com os olhos, fixos, a mirar o vazio, ela aguardava uma ligação no telefone que repousava sobre uma pequena mesa, ao lado da cabeceira da cama onde se encontrava deitada. Não a sua cama, propriamente, mas a de um hotel barato no centro da cidade. Da janela do quarto, sempre aberta, ora chegava a luz do sol, ora as luzes da noite, embora, para ela, ali dentro, a escuridão fosse permanente.

Desde que chegara ali, Lúcia não trocou uma peça de roupa e quase não se alimentou. Sua pele estava amarelada, assim como seus olhos. O quarto cheirava mal.

Quando o telefone finalmente tocou, ela atendeu e, do outro lado da linha, ouviu alguém lhe perguntar:

– Quem te espera?

Sem saber o que responder diante da pergunta que lhe pareceu demasiadamente inusitada, restou-lhe apenas desligar o telefone de pronto, sem nem ao menos querer saber quem perguntara.

Levantou-se para ir ao banheiro e, logo depois, retornou para a cama, onde novamente se deitou e ficou em silêncio a mirar fixamente o vazio com seus olhos. Naquele momento, as luzes da noite entravam pela janela, trazendo junto com elas o lúgubre aroma da escuridão.

Lúcia tinha esperança de que o telefone voltaria a tocar e, não tendo quem a esperasse, continuou ali deitada, sozinha, esperando.

Esperança

 

Sua vida sempre lhe parecera um fardo pesado demais para ser carregado sem a ajuda de mais um par de braços. Foi por essa razão

(não por amor)

que, aos 19 anos, Vera casou-se com Alfredo, então com 25 anos, e com ele foi viver num conjugado de quarto e sala no quinto andar do Prédio Esperança, na Rua Matias Aires, quase esquina com a Frei Caneca.

Por uns dois anos, o casamento andou bem, até que ela descobriu que ele a traía com uma jovem viúva, que morava no primeiro andar daquele mesmo prédio.

Esta crônica é, na verdade, muito mais sobre essa viúva, com quem Alfredo traiu Vera.

Seu nome? Lúcia. Sua idade? Por volta de uns 30 anos, embora aparentasse ter algo entre 35 e 40.

Desde o falecimento de seu marido, com quem convivera por quase uma década

(ele havia falecido já fazia uns dois anos)

Lúcia vinha envelhecendo de maneira mais intensa: desde então, para ela, cada ano de vida contava como dois ou mais, seguindo um sistema de contagem parecido com o que, em geral, aplicamos aos cachorros.

Falando nisso, Lúcia não vivia propriamente sozinha: dividia seu apartamento

(também um conjugado de quarto e sala)

com a cadela vira-lata que um dia encontrou abandonada à porta do prédio, quando voltava do supermercado. Lúcia apiedou-se daquela cadela magra e faminta e acabou adotando-a. A cachorra ganhou de Lúcia o mesmo nome do prédio onde morava, em cuja entrada ela a encontrara: Esperança.

Sob seus cuidados, Esperança logo ganhou peso, tornando-se forte e robusta.

Lúcia morava de aluguel, que pagava com a pensão que recebia pela morte de seu marido. Não era muito dinheiro, apenas o suficiente para cobrir sua subsistência e, também, a da Esperança.

Os poucos trocados que ainda sobravam, Lúcia usava para, vez em quando, fazer apostas no jogo do bicho. Apostava sempre no cachorro, em homenagem à Esperança. Nunca ganhou nada para além de um pouco de diversão mundana.

Sempre juntas, Lúcia e Esperança dormiam, acordavam, faziam as refeições, saiam para breves caminhadas pelas redondezas. Quando iam para a rua, Lúcia sempre levava a Esperança presa à sua coleira, pois, arisca como era, a cachorra poderia terminar morta debaixo das rodas de algum carro: as ruas ali por perto eram sempre muito movimentadas.

Lúcia e Alfredo conheceram-se no elevador do prédio, quando ela voltava de um desses passeios com a Esperança. Ao vê-lo, Esperança passou a abanar o rabo, a lambê-lo e com ele brincar como se o conhecesse há tempos. Exceto por Lúcia, ela não se comportava assim com mais ninguém.

(Esperança era bastante desconfiada)

Vendo que a cachorra demonstrava afeição por Alfredo, Lúcia convidou-o para um café em seu apartamento, no que ele de pronto aceitou. A partir daquele dia, as idas dele ao apartamento dela tornaram-se comuns, gerando, por fim, a desconfiança na esposa de Alfredo, Vera, que ao descobrir que Lúcia e Alfredo se encontravam, foi bater à porta do apartamento da viúva e, ao ser por ela atendida

(Esperança dormia, indiferente ao barulho)

Vera sentenciou:

– Se voltar a se encontrar com meu marido, acabo com sua vida.

Os olhos de Vera pareciam piras de fogo, tamanho o ódio que traziam. Não restou à Lúcia outra medida senão dizer a Alfredo que era

– Melhor pararmos por aqui.

Ele, mesmo contrariado, concordou com um

– Melhor assim.

No fundo, ele queria continuar podendo desfrutar de uma vida clandestina de bígamo: esses encontros à surdina com Lúcia tinham aumentado a sua libido, levando-o a ter uma melhor performance, também, com Vera. Esta, depois de por um fim à relação extra-muros do marido, viu sua vida sexual declinar a ponto mesmo de ela se tornar, para ele, uma samambaia.

Lúcia e Alfredo, de fato, nunca mais se viram. Um mês depois de Vera

(já então transformada em uma samambaia aos olhos de Alfredo)

descobrir a traição de seu marido com a jovem viúva do primeiro andar, ela e Alfredo deixaram o Esperança e foram morar bem longe.

Lúcia e Esperança seguiram vivendo, ali, até que, num dado dia, ao acordar pela manhã, Lúcia notou que o corpo da cachorra, que dormia ao seu lado, estava frio: Esperança havia morrido durante a noite.

– Ao menos teve uma morte tranquila.

Lúcia conformou-se.

Para uma cachorra, Esperança já era bastante idosa. Seria natural que não fosse a última a morrer, e sim que morresse antes de Lúcia.

Lúcia passou então a viver, de fato sozinha, no conjugado de quarto e sala que alugava no primeiro andar do Prédio Esperança.

Ali, cercada de poucos pertences, viveria ainda por mais um ano depois da morte da Esperança, graças à pensão que recebia pela morte de seu marido.

Passado esse período, porém, de um mês para o outro, o banco deixou de pagar a pensão que era sempre religiosamente depositada em sua conta todo segundo dia útil do mês.

Vendo os boletos, inclusive o do aluguel, acumularem-se, sem ter dinheiro para pagá-los, Lúcia foi ao banco a fim de tomar satisfações sobre o ocorrido.

– Por que minha pensão deixou de ser depositada?

ela perguntou ao caixa, e este, sem saber explicar a razão, pediu a ela que falasse com o gerente.

Do senhor sentado à mesa com uma placa a identificá-lo como sendo o gerente, Lúcia ouviu, primeiro um muxoxo que denunciava a chateação daquele senhor com a pergunta

– Por que minha pensão deixou de ser depositada?

depois, ouviu dele apenas um compromisso, meio que dito por dizer, de que ele, o gerente, iria averiguar e retornaria para ela o mais rápido possível.

Dois meses depois, Lúcia ainda não tinha recebido resposta nenhuma do banco. Quando lá voltou, tanto o caixa quanto o gerente com quem falara antes tinham sido substituídos por outro caixa e outro gerente, do qual, após novamente perguntar

– Por que minha pensão deixou de ser depositada?

também recebeu apenas um compromisso, meio que dito à lápis, de que ele iria averiguar e retornaria para ela o mais rápido possível.

Naquele dia, ao retornar a seu apartamento, Lúcia abriu a porta e, por um instante, viu a cadela Esperança vir ao seu encontro, caminhando em sua direção toda alegre, a abanar o rabo. Esperança saudou-a com diversas lambidas, como sempre fazia quando viva.

(de tão emocionada, Lúcia nem lembrou que Esperança já tinha morrido)

Agachou-se junto a cadela para retribuir-lhe o carinho. Ao fazer isso, deu-se conta que aquilo que abraçava não era Esperança, mas sim os boletos que se acumulavam na soleira da porta de seu apartamento.

Sentiu-se ridícula.

Nem todos aqueles papéis, contudo, eram simples boletos. Havia um, em meio aos demais, que era na verdade uma correspondência vinda da Justiça, assim indicava o remetente. Ao abri-la, viu surgir diante de seus olhos, logo abaixo da heráldica imagem de uma mulher a segurar uma balança com seus olhos vendados, escrita com palavras solenes, uma ordem de despejo, a alertar que, em cinco dias a contar do recebimento daquela carta da Justiça, Lúcia deveria desocupar o seu apartamento no Esperança: com os aluguéis atrasados, a imobiliária, por ordem do proprietário, pedia de volta o conjugado de quarto e sala onde Lúcia morava de aluguel.

Sozinha

(sem Esperança)

e angustiada

(sem esperança)

não lhe restou outra alternativa senão, cinco dias depois, deixar que o oficial de justiça cumprisse a ordem judicial.

Sem poder pagar o aluguel, Lúcia não poderia mais continuar a viver no Esperança. Deixou-o então para trás, sem ter para onde ir, levando consigo o pouco que tinha, na esperança de um dia, quem sabe, poder voltar.

 

Esperança 

Dia sim, outro também, ele aparece na agência bancária para verificar o saldo de sua conta poupança. Seu Pereira, o titular da tal conta, tem feito isso todos os dias, exceto finais de semana e feriados bancários, há uns dois anos. Curiosamente, desde sua abertura, ainda naquela época, a conta nunca teve saldo nenhum. Os resultados que ele visualiza são portanto idênticos: todos zerados. Perguntado pela nova gerente, que assumira recentemente a agência, sobre a razão de assim agir, Seu Pereira, do alto de seus setenta anos, responde com sua voz miúda e sem muita delonga, que suas idas repetidas àquele banco para retirar um saldo de sua conta poupança zerada tem por único motivo seu objetivo, até então inconfessado e ainda por certo não realizado, de enfim ver concretizada a promessa de sua Esperança, que, segundo ele 

– Antes de desaparecer, prometeu-me que um dia depositaria um dinheirinho na minha poupança 

E já ficando com os olhos marejados, prosseguiu 

– Por isso venho aqui todos os dias 

E por fim completou 

– É por causa da promessa da minha Esperança 

Ao ouvir a inusitada resposta, a gerente olhou bem dentro dos olhos de Seu Pereira, fingindo empatia e compreensão. Por dentro, porém, ruminava uma enorme raiva. Tenho mais o que fazer, pensou. 

Então a gerente perguntou-lhe, um tanto impaciente 

– E onde está Dona Esperança? 

Em seguida, ofereceu-lhe um café 

– Aceita um café? 

Ela disse e ele respondeu, de bate e pronto, já agradecendo 

– Obrigado 

Seu Pereira ficou sentado ali, como se tivesse todo o tempo do mundo, sorvendo o café oferecido pela gerente. Parecia não ter ouvido, ou simplesmente ter esquecido a pergunta que ela lhe fizera, tão indiferente ele mostrava-se. 

Com um resto da pouca paciência que lhe restava, ela resolveu repetir a questão 

– Seu Pereira, quero muito ajudá-lo, mas preciso que pelo menos me diga onde está a Dona Esperança. 

Seu Pereira continuou a olhá-la em silêncio, enquanto terminava lentamente seu café. Foi ficando por ali bem mais do que a gerente, toda atarefada como estava, gostaria. 

Vendo que seria melhor deixá-lo em seu tempo, ela voltou aos seus afazeres. Vez ou outra, nas horas seguintes, enquanto digitava no computador ou atendia ao telefone, a gerente lançava um olhar furtivo, de rabo de olho, para ele, que por sua vez, ao notar o olhar dela, retribuía com um sorrisão largo e generoso. Algumas horas depois, já quase no horário de fechamento da agência, cansada de fazer sala para aquele senhor que não representava nenhum ganho para o banco, a gerente, então, levantando-se e pegando a sua bolsa, como quem já vai embora 

(essa era a intenção) 

lançou um 

– Seu Pereira, eu preciso ir pois a agência já vai fechar. O Senhor vem também? 

– Não 

Ele respondeu, laconicamente, e continuou ali como se nada tivesse acontecido, alheio a tudo ao seu redor. A gerente, então 

– Seu Pereira, estou ficando com muito medo do senhor 

E olhando sempre diretamente para ele 

– Muito, muito medo. Vou chamar os seguranças se o senhor não sair 

Seu Pereira, enfim deixando um pouco de lado o ar impassível, levantou-se calmamente, aprumou-se e disse à gerente, num tom seco 

– Tudo bem 

Sem contudo esconder sua frustração. 

E, em seguida, deixando claro que o medo que a gerente tinha dele não poderia vencer sua crença na promessa de sua Espernça, Seu Pereira ainda afirmou, para desespero da sua interlocutora 

– Volto amanhã. Até. 

Logo em seguida, sob olhar algo aliviado da gerente, ele virou-se e caminhou em direção à porta de saída da agência. Tão serenamente partiu, que era como se nunca tivesse estado por ali. 

No dia seguinte, ao contrário do que dissera à gerente do banco, Seu Pereira não apareceu na agência: enquanto aguardava, no ponto de parada, o ônibus que o levaria até o centro da cidade, onde ficava a agência, Seu Pereira viu, jogada num canto, dentro de uma caixa de papelão, uma filhotinha de cachorro, muito parecida com Esperança, a sua cadela, desaparecida há uns dois anos. Apiedado da pequena cachorrinha, Seu Pereira decidiu adotá-la ali mesmo. Pegou-a no colo e, emocionado, abraçou-a contra o seu peito. Foi aí que viu tratar-se na verdade de um cachorro e não de uma cadela. Batizou-o de Aperto no Peito. Seu Pereira via no cãozinho muito de sua Esperança. Para ele, era como se Esperança tivesse, por meio do Aperto no Peito, encontrado um meio de fazer-se ainda presente.

Quando lembra-se do episódio com Seu Pereira, a gerente do banco até hoje fica intrigada com a história que ouviu dele, da última vez que ele foi à agência. Ela ainda está convencida que a Esperança a que ele referiu-se naquele dia era a esposa dele, de Seu Pereira. Notando que ele não apareceu mais na agência 

(nunca mais ele voltou lá) 

por esses dias ela anda até com saudades daquele sorrisão farto dele. 

(ninguém nunca sorriu assim para ela) 

Esqueceu-se do medo.