Que passa

Se alguém lhes perguntasse, provavelmente nenhum deles dois saberia dizer com precisão desde quando eram amigos. Poderiam responder simplesmente Somos amigos há muitos anos ou Já faz tempo e respostas assim costumavam ser suficientes. Mesmo tendo cultivado uma amizade há tanto tempo, Carlos e José pouco sabem a respeito um do outro, pois, em geral, ao se encontrarem, falam apenas de trabalho. Ambos trabalham na mesma grande empresa, como contadores, e são apaixonados pelo que fazem.

Das vinte e quatro horas do dia, dedicam-se a trabalhar quinze, dezesseis horas, quase nunca menos que isso, fazendo com que sobre muito pouco, quase nada de tempo livre para se dedicarem a qualquer outra atividade. De fato, pouco lhes interessa fazer qualquer outra coisa que não seja trabalhar.

Às margens de chegarem aos sessenta anos, no caso de Carlos, e sessenta e dois, no caso de José, nem um nem outro se casou ou teve filhos. Vivem sozinhos, cada qual em seu pequeno apartamento próprio, distantes apenas uns dois quarteirões um do outro, em um bairro de muitos edifícios altos, repletos de solidão por entre suas centenas de apartamentos de quarto e sala, como são aqueles onde moram Carlos e José.

Num sábado de manhã, ao sentar-se à mesa para tomar seu café matutino em uma padaria do bairro, José vê Carlos adentrar o recinto e o convida para ir se juntar a ele naquela mesa. Depois de fazer seu pedido no balcão, Carlos dirige-se à mesa onde José toma seu café.

Após o costumeiro Bom dia de um lado, Bom dia de outro, Carlos sentou-se à frente de José e começaram a conversar.

Quase duas horas depois, a padaria via o movimento da manhã começar a arrefecer e eles ainda estavam lá, sentados, entretendo-se fortemente com um bate-papo, como se há muito não se vissem.

Fugindo ao hábito cultivado por anos, não falaram de trabalho. A conversa toda girou em torno de si mesmos, de suas alegrias, suas tristezas, seus medos, de tudo de mais íntimo que um tinha para dizer ao outro e vice-versa. Tiveram tempo de passar a vida de cada um deles em revista perante o outro, Você sabia que por várias vezes já quis me matar?, indagou Carlos, misturando confissão à pergunta, Choro todos os dias antes de dormir, confessou José, Uma vez, há muito tempo, quase me casei, mas a menina foi proibida de se casar comigo pelo pai dela, que me considerava um merda, relatou Carlos, Juntei-me a uma mulher há muitos anos e chegamos a dividir o mesmo teto, mas ela dava muito trabalho, então nós nos separamos e eu a mandei embora de casa, contou José, Quando olho para você, sinto….

disse Carlos, sem completar a frase, que assim caiu ao chão como uma flecha lançada sem tração suficiente para atingir o alvo. Mas se a boca não disse, o seu olhar disse tudo e deixou atônito o olhar do amigo.

José pediu então licença Preciso ir ao banheiro, levantou-se e caminhou em direção ao local cujo destino anunciara ao amigo.

Ao ficar longe do campo de visão de Carlos, ao invés de ir ao banheiro, foi-se embora da padaria, esquivo como um gato. José continuou ali, a tomar seu café, sem dar pela falta de Carlos.

Desde então, nunca mais se falaram, nem mesmo para falarem de trabalho como antes costumavam fazer. Quando acontece de se encontrarem, sem querer, seja no trabalho, seja em qualquer outro lugar, nem o antes costumeiro Bom dia de um lado, Bom dia de outro. Quando muito, uma troca de olhares rápida, arisca, que não se fixa, apenas passa.

José

Não havia mais nada a fazer: diante do corpo da mãe, estirado sobre o caixão à sua frente, só restava a José deixar fluir dos olhos o choro envergonhado de quem sempre fora ensinado, pela própria mãe, Dona Maria, que

– Homem não chora.

Ela também costumava dizer:

– Não me apego à tristeza.

E com isso em mente, José beijou a pele fria da testa dela e fez sinal para os homens da funerária fecharem o caixão, que dali levaram para o cemitério. Para lá, o rabecão seguiu sem cortejo.

Fora esses dois encarregados que a funerária havia mandado para cuidarem do velório, nenhuma outra alma viva fazia companhia a José: ele era, então, o único sobrevivente de uma família devastada.

Seu pai, seus dois irmãos mais novos e agora sua mãe, todos tinham partido, um em seguida ao outro, todos dentro de um curto espaço de tempo. Mal José se curava do luto da perda de um familiar e logo outro vinha a falecer: primeiro foi seu pai, depois o irmão do meio, em seguida o mais novo e, anteontem, foi a vez de sua mãe, cuja morte súbita punha fim a essa cadeia mórbida que, ao todo, não tinha durado nem sequer um mês.

A causa das mortes era desconhecida. Nem mesmo os médicos do hospital da cidade sabiam dizer. Na falta de uma justificativa científica, José atribuía as mortes à vontade de Deus, em cuja companhia acreditava que seus familiares agora estavam. Era um homem bastante religioso, daqueles de quem se diz ter fé inabalável.

No caminho de volta para casa, ao passar defronte a igreja, José se benzeu como de costume. Sentada no primeiro degrau da escada que levava à porta da igreja, uma velha senhora, em farrapos, estendeu-lhe a mão direita para pedir uma esmola qualquer. Ao vê-la, José interrompeu seu ritual e, com os olhos vermelhos como um pôr do sol de outono, começou a desferir chutes sobre a velha, como se a querer descontar nela toda a dor por que passara no último mês, derivada da perda de seus familiares. Chutou-a na cabeça, no peito, no estômago, chutes fortes, certeiros. Na falta de forças para gritar, a velha apenas gemeu, gemeu e logo depois silenciou: estava morta.

Ninguém presenciara aquela cena, ou se presenciaram, não se importaram. Deus testemunhara e nada fizera para impedir, habituado que estava a ver tantos de seus filhos morrerem nas mãos de outros tantos de seus filhos pelo mundo afora.

Tomado pela adrenalina do assassinato que acabara de cometer, José entrou na igreja e foi se confessar. Ao padre, contou tudo que lhe ocorrera na última semana, mas omitiu que tinha acabado de matar uma velha senhora na porta daquela mesma igreja. No final da confissão, foi perdoado.

Os sinos da igreja anunciavam ser 6 da tarde, quando José passou pela mesma porta onde antes a velha senhora pedia esmola – seu corpo ainda estava lá, ensanguentado como as mãos do Nazareno na cruz.

Poucos passos adiante, José tomou o ônibus que o levaria para casa, mas no meio do caminho, decidiu descer e seguir para um bar. Precisava, como se diz, encher a cara. Sentado diante do balcão, sobre um banquinho que mal acomodava suas nádegas magras, ele pediu uma cerveja, tomou, depois pediu outra, tomou, e assim seguiu noite adentro até por volta das 3 da madrugada, quando então, sendo o último cliente, foi convidado pelo balconista a pagar a conta e ir-se embora: era hora de fechar o bar.

Mesmo bêbado, José conseguiu pagar a conta e saiu. Foi caminhando pela rua, àquela hora completamente deserta, trançando as pernas até cair alguns metros depois, na frente de um mercadinho, onde outras pessoas então dormiam, em meio a colchões e cobertores improvisados. Quando o dia amanheceu, todos dali foram enxotados pelos seguranças do mercadinho. José, de tão bêbado, não se mexia. Não fosse pela temperatura de seu corpo e pelo pulsar de seu coração, diriam estar morto.

Reclamando do fedor de álcool que o corpo de José exalava, os seguranças o levantaram e o jogaram em uma caçamba de lixo, do outro lado da rua. E ali, em meio ao lixo, e como se lixo também fosse, o corpo de José foi recolhido pelos lixeiros e jogado dentro do caminhão de lixo, quando este por ali passou no meio da tarde daquele dia.

Ao verem seu corpo, prestes a ser triturado pelo equipamento do caminhão, os lixeiros gritaram ao motorista que parasse a máquina. Os dentes das engrenagens pararam de mastigar o lixo pouco antes de chegar ao corpo de José.

Os lixeiros, então, pegaram o seu corpo, ainda inconsciente, e jogaram-no sobre o gramado imundo de uma praça qualquer ali do centro, suja e mal cuidada.

Horas depois, já com o sol alto, José foi acordado pelo arrulhar dos vários pombos que o cercavam. Ao ver aqueles serezinhos alados, José pensou estar no céu, em meio aos anjos, com Deus e, portanto, na companhia de seus familiares.

Uma forte enxaqueca agitava suas têmporas e fazia doer sua cabeça a ponto de deixá-lo zonzo. Ficou ali o restante do dia, deitado, sem forças para se levantar.

Pouco antes da meia-noite, um caminhão da prefeitura passou por ali varrendo o chão com um potente jato de água, fria como a testa da mãe morta que José beijara no dia anterior.

Junto a toda a sujeira da praça, e como se sujeira também fosse, José foi varrido dali para uma sarjeta do outro lado da rua.

Na falta de forças para reagir, levantar-se, José nada disse, nem tampouco gemeu. E, embora seus olhos, assim como todo seu corpo, estivessem encharcados, não era propriamente de choro. Afinal, como dizia sua mãe:

– Homem não chora.

Na manhã do dia seguinte, ao acordar, vendo seu corpo ainda todo encharcado, cansado e com a mente atordoada, José reuniu as poucas forças que lhe restavam para se levantar e então caminhou, meio trôpego, até um dos bancos da praça. Ali, sentou-se, e com o rosto entre as mãos, pôs-se a chorar

(– Homem não chora.)

feito uma criança.