Maria dos Anjos

Seu nome de batismo surgira por uma obra do simples acaso: na antevéspera de seu nascimento, sua mãe escrevia uma mensagem em seu celular e, no lugar de

“Eu poderia”

o corretor automático de texto levou-a a escrever

“Odemira”

Não percebendo o erro, a mãe mandou a mensagem assim mesmo. Somente depois de receber uma mensagem de sua patroa

(a pessoa com quem então trocava mensagens)

em resposta, dizendo não ter entendido nada

(– Odemira?

perguntava a patroa)

foi que a mãe enfim deu-se conta de seu erro.

Por meio daquelas mensagens, a patroa informava à mãe que esta poderia tirar sua licença maternidade já a partir daquele dia, e que iria pagar-lhe o salário normalmente durante o período de sua ausência: cerca de seis meses.

Insegura quanto a toda essa generosidade, a mãe, naquela troca de mensagens com a patroa, queria dissuadi-la da ideia da licença dizendo

– Eu poderia voltar a trabalhar na semana que vem mesmo, se a senhora preferir

mas a patroa foi firme em sua decisão e a mãe teve mesmo que aceitar sair de licença.

Emocionada com tanta generosidade, e religiosa como era, a mãe, no dia seguinte, mesmo depois de já ter decidido junto com o pai que a menina que estava por nascer chamar-se-ia Maria, mudou de decisão: a menina que estava para chegar ao mundo ganharia o nome de Odemira.

(não deve haver nenhuma outra Odemira por aí, pensou) 

Quando soube da decisão, o pai não gostou da mudança inesperada e repentina de planos para o nome de sua filha, mas depois de perguntar à esposa

– Qual a razão dessa mudança em cima da hora?

e, ainda,

– Não tínhamos combinado que seria Maria?

terminando seu interrogatório com

– De onde veio esse nome Odemira?

e da mãe receber uma explicação, que atribuía a mudança de decisão pelo nome da menina à obra do divino

– Foi vontade de Deus

o pai, ainda se sentindo um tanto contrariado, no final acabou aceitando. A mãe deu o assunto por encerrado.

No dia seguinte, nascia Odemira. Na certidão de nascimento da menina, contudo, constou:

Eupoderia Maria dos Anjos

E não Odemira Maria dos Anjos.

(como se vê, o pai ao menos conseguiu emplacar o Maria como segundo nome da filha)

Mas o erro grosseiro de grafia do primeiro nome da menina não se fez notar pelo cartorário, nem pela mãe e nem pelo pai, e assim, Eupoderia ficou sendo o nome oficial da recém-nascida.

Seus pais eram gente simples, que acabara de trocar a vida na zona rural de São Paulo, por um barraco às margens da cidade. Sua mãe até que sabia ler e escrever um pouco, na verdade apenas as mensagens que escrevia e lia em seu celular, muitas delas, como sói acontecer, fazendo uso de abreviações como “vc”, “pq”, que se fossem escritas no vernáculo, ela não entenderia. Seu pai, por sua vez, tinha um melhor nível de alfabetização, se comparado à mãe. Ainda assim, também ele tinha suas dificuldades. Por exemplo: quando ele precisava passar um cheque na mercearia, tinha de recorrer com frequência a ajuda de algum amigo ou conhecido mais instruído para preencher o cheque: faltava-lhe traquejo e autoconfiança para lidar com letras, quando estas vinham acompanhadas de números.

De qualquer forma, desde seu nascimento, nunca ninguém chamou a menina pelo nome, fosse esse Eupoderia

(como estava em sua certidão de nascimento)

ou Odemira

(como era o desejo de sua mãe, aceito depois por seu pai, a contragosto, para fazer a vontade de Deus)

Chamavam-na Mira, ou Mira Maria, este último mais frequente quando sua mãe queria chamar-lhe a atenção para alguma travessura, algo raro, dado que a menina era, em geral, bastante comportada. Seu pai, por razões óbvias, preferia chamar a filha de Maria Mira.

Toda a sua primeira infância, a menina viveu assim, sendo chamada simplesmente pelas variações de seu apelido: Mira Maria, Maria Mira, ou simplesmente Mira.

Ela somente foi dar-se conta de seu verdadeiro nome

(aquele que constava em sua certidão de nascimento)

no seu primeiro dia de aula, na primeira série do primeiro grau, quando a professora, seguindo a ordem alfabética da lista de chamada, depois de chamar o nome de Ana, Beatriz, Carla, Daniel, chamou

– Eupoderia?

deixando no mesmo instante formar-se uma ruga de expressão, por entre suas sobrancelhas, a denotar estranhamento. Não recebendo resposta, a professora chamou novamente

– Eupoderia.

Ali sentada, na penúltima fileira no fundo da classe, Mira não relacionava o nome que a professora chamava ao seu. Somente quando a professora, já com alguma dose de irritação, chamou o nome completo

– Eupoderia Maria dos Anjos!

para certificar-se verdadeiramente da presença ou ausência de quem ela chamava, foi que Mira deu-se conta de que, matriculada na sua mesma turma, havia uma menina?

(ou um menino?)

cujo sobrenome era idêntico ao seu.

Na sua inocência pueril, pensou, surpresa, que algum parente ou parenta dela poderia ser seu ou sua colega de turma. Só não sabia dizer quem poderia ser, uma vez que nunca fora apresentada a nenhum parente próximo, fosse menino ou menina, que tivesse sua mesma idade escolar.

Infelizmente, ao que lhe parecia até então, seu ou sua parente não tinha comparecido à primeira aula do primeiro dia da primeira série do primeiro grau.

Somente depois que a professora passou na chamada por Marta, Marcelo, Melissa, pulando em seguida direto para Paulo, Patrícia, finalizando a chamada em Zeferina, que Mira enfim percebeu que, talvez, algo poderia ter dado errado com sua matrícula, haja vista que seu nome, Mira

(ao menos o nome que acreditava ser de fato o seu)

não havia sido chamado pela professora.

Mira ficou com vergonha de erguer o braço e perguntar. Só de pensar em fazer isso, seu rosto já enrubescia e ela sentia o suor descer por suas têmporas. Então permaneceu assistindo à aula, normalmente, como se nada de estranho tivesse acontecido.

Ao final da aula, tendo notado a presença de Mira, ali na penúltima fila da classe, sem ter dito

– Presente!

em nenhum momento da chamada inicial, a professora aproveitou enquanto os demais alunos deixavam a sala de aula, eufóricos para retornar para suas casas, e chamou a menina Mira num canto

– Vem cá

disse-lhe

– Qual o seu nome?

emendou, no que Mira respondeu

– Mira

e, logo em seguida, a professora devolveu

– Mira do quê?

querendo saber dela justamente o sobrenome

– Mira Maria dos Anjos

respondeu a menina.

O sobrenome soou familiar à professora, impressão que ela confirmou não ser desprovida de fundamento ao repassar com os olhos a lista de presença da turma.

A professora então explicou àquela menina, à sua frente, que parecia ser tão doce e simpática, que havia uma chance de que seu nome pudesse estar gravado incorretamente na lista: até então a professora nada sabia a respeito do nome correto da menina.

Para evitar qualquer dúvida, e na tentativa de ajudar, a professora pediu à Mira um documento e, quando a menina tirou a sua carteira de identidade de dentro da mochila rosinha, cheia de motivos florais, que ela trazia nas costas, e mostrou-a para a professora, esta enfim pode ver que o nome da menina era mesmo Eupoderia.

Algo constrangida

(nunca vira alguém com esse nome)

foi dizer à Mira que, ao contrário do que havia pensado e dito, o nome da menina não estava incorretamente grafado na lista de presença: o nome dela era mesmo Eupoderia.

– Veja, está assim em seu documento

disse-lhe a professora, querendo comprovar à menina, com a evidência que lhe parecia a mais inquestionável, o infortúnio de seu nome oficial.

Para a professora, aquilo tudo era um teste para suas habilidades, pois nunca tivera que lidar com uma situação minimamente similar àquela diante de si. A professora bem que ainda tentou contornar a situação, mas depois de confrontada com essa verdade, sem dar chance a mais nada, Mira saiu correndo, chorando, e nunca mais voltou à escola.

A professora bem que ainda tentou segurá-la, gritando

– Eupoderia!

mas foi em vão: Mira nem lhe deu bola.

Depois daquele dia, quarenta anos se passaram: encontramos Mira adulta, mulher feita.

Sofreu muito toda a sua vida com o nome que sua mãe lhe dera, para fazer a vontade de Deus, mas enfim conseguiu, com a ajuda de sua patroa

(uma advogada)

fazer constar em seus documentos apenas e simplesmente o nome Maria dos Anjos. Só que então já era tarde demais: tendo crescido sem frequentar a escola, de onde, no passado, fugira de vergonha ao descobrir seu então verdadeiro nome: Eupoderia, Maria dos Anjos não havia adquirido a alfabetização necessária para ler nem o próprio nome, fosse qual fosse.

Isso poderia fazê-la uma mulher triste? Sim, até poderia, pois, afinal, além de analfabeta, Maria dos Anjos sempre desejara ter se casado e tido filhos, e nenhum destes sonhos tinha alcançado na vida. Até poderia, quem sabe, um dia ainda vir a se casar, mas já estava em uma idade

(quase na casa dos cinquenta)

que médico nenhum, em sã consciência, recomendaria a ela seguir com um parto.

Seu trunfo era que sua mãe lhe ensinara, como ninguém, a se conformar. Essa lição, ela, quando menina, recebia da sua mãe todos os dias, bem na hora do almoço. Não sendo exatamente alguém fácil para se agradar quando o assunto era comida, Mira sempre reclamava com sua mãe o alimento que esta punha no prato dela, para servir de acompanhamento do arroz e feijão de todo dia, no que sua mãe sempre lhe respondia

– É o que tem de mistura para hoje

isso, à época, era o que sua mãe repetidamente dizia a fim de ensinar a filha a se conformar com o que tinha e felicitar-se com isso, ainda que não fosse de seu agrado

– Tem que comer, seja o que for

dizia-lhe a mãe.

Por fim, como habitualmente fazia, a mãe recorria a Deus para reforçar seu argumento, fosse qual fosse, e então orientava a menina a dar-Lhe graças por pelo menos ter o que comer

– Muitos nem isso tem

dizia sua mãe, não restando à Mira, nos idos daqueles anos, outra alternativa senão, de fato, conformar-se e comer o que estava servido à mesa, fosse o que fosse.

Ao menos, atualmente, graças à generosidade de sua patroa, Maria dos Anjos pode desfrutar de uma dieta que lhe agrada mais, ainda que seja derivada apenas das sobras deixadas, a cada refeição, pela patroa e sua família.

– Graças a Deus

diz, sempre ao sentar-se para comer, sozinha, à pequena mesa que lhe é reservada na cozinha

– Muitos nem isso tem

onde come distante da família que a abriga, e sempre depois que todos terminam de comer suas refeições.

Há tantas Marias dos Anjos por aí.