Havia encontrado a caixa de sapatos em cima da última prateleira do guarda-roupa. Dentro dela, em vez de sapatos, havia várias fotos antigas, documentos vencidos, papéis de todo tipo que tinham sido guardados ali e, ao longo dos anos, esquecidos naquela caixa. Dentre os papéis, chamou-lhe a atenção um antigo telegrama que sua mãe havia lhe enviado, há mais de 30 anos.
Lorena era então recém-chegada a São Paulo, numa época em que os telefones eram apenas os fixos, sinais de riqueza para quem os tinha, ou os públicos, encontrados naqueles icônicos orelhões de fibra amarela espalhados pela cidade.
Distraída, ela havia passado alguns dias sem ligar para sua mãe, como sempre fazia para simplesmente dizer que tudo ia bem. Lá da sua cidade natal, sua mãe, preocupada, enviou-lhe um telegrama pedindo que Lorena ligasse para ela. No telegrama, sua mãe pedia:
– Me telefona estou preocupada.
Ao receber o telegrama do porteiro do prédio onde morava em São Paulo, Lorena abriu-o imediatamente e, dali mesmo, correu em direção a um orelhão que ficava a poucos passos de onde ela estava. Enquanto a ligação chamava por sua mãe do outro lado da linha, Lorena observava o movimento ao seu redor. Era uma rua movimentada, que tinha gente a circular a qualquer hora do dia ou da noite. Quando sua mãe finalmente atendeu a ligação, Lorena distraiu-se da multidão e concentrou-se na conversa.
– Está tudo bem, minha filha?
Sua mãe quis saber.
Estava de fato tudo bem e a conversa se restringiu a perguntar e responder sobre isso, repetindo o enredo de praticamente todas as conversas ao telefone que Lorena teria com sua mãe até esta vir a falecer alguns anos depois.
Naquele seu primeiro ano na cidade grande, a adaptação de Lorena foi difícil, tudo era muito diferente da pequena cidade onde, até então, vivera a maior parte da sua vida. Depois, com o decorrer dos anos, isso se inverteu, e é justamente na metrópole onde ela registra a passagem da maior parte de seus anos de vida. Hoje em dia, sente-se parte da paisagem; antes, sentia-se um elemento estranho. A bem da verdade, aos olhos da cidade, ela era e continua sendo só mais um número, dentre os milhões que formam sua população. Haverá de chegar o dia em que, ao caminhar por São Paulo, quase ninguém a notará, pois sua imagem se diluirá na invisibilidade dos velhos.
Vez ou outra, Lorena visita locais que, naqueles seus primeiros anos na cidade, costumava ir. Nesse final de semana, foi até aquele mercado de pulgas da Praça Dom Orione, no Bixiga. Era uma manhã ligeiramente fria, com o céu azul, sem nenhuma nuvem: uma manhã típica de outono na Paulicéia.
No passado, sempre ia àquela feira, pois, para além de apreciar os objetos antigos e outros nem tão antigos assim, gostava de ouvir as histórias por trás dos objetos, em geral bastante floreadas pelos vendedores. Adoravam atribuir origens nobres, raras ou exóticas a bonecas, medalhas, móveis, roupas, esculturas e todo tipo de quinquilharia exposto à venda.
– Esse violino pertenceu a um grande violinista da rainha da Inglaterra
ou
– Essa escultura é proveniente de um achado arqueológico no Irã
e frisavam
– É muito rara
E só então o preço era divulgado e, quase sempre, estava muito acima do que Lorena podia pagar.
Ali na feira, Lorena cruzou com uma senhora que pedia ajuda para pendurar um velho casaco em uma arara de roupas. Uma velha senhora que tinha os traços de sua mãe
(vai ver foi isso que a fez escapar da invisibilidade dos velhos)
e que, apesar da idade avançada, demonstrava enorme vivacidade para estar ali, àquela hora da manhã, provavelmente vendendo roupas de seu próprio guarda-roupa para angariar alguns dinheiros para sobreviver. Uma velha senhora que vestia uma roupa tão velha quanto e usava uma maquiagem forte, que claramente buscava esconder os sinais do avanço da idade no rosto. Uma velha senhora pequenina como as bonecas de biscuit vendidas numa banca ali próxima, e frágil como uma boneca de louça. Tinha os olhos azuis de uma solidão tão profunda quanto o mar. Como os olhos de meu avô, pensou de relance.
Lorena ajudou-a a pendurar o velho casaco e, ao final, perguntou-lhe:
– Está tudo bem, minha filha?
Estava de fato tudo bem e a conversa se restringiu a perguntar e responder sobre isso.