Dora

Há horas, ela permanecia sentada à mesa daquela cafeteria, onde nunca estivera antes, sem fazer nem sequer um pedido, apenas parada a contemplar o ambiente. Com a mente distante, seu silêncio era uma nota dissonante na sinfonia criada pelo burburinho das mesas ao redor.

Ninguém notara sua chegada ali e, até então, nem sua presença se fazia perceber.

Em seu celular, depositado sobre a mesa, em meio a chamadas perdidas, pipocavam mensagens a perguntar:

“Onde vc tá?”

a mostrar preocupação:

“Mãe, estamos preocupados”

a pedir:

“Volta pra casa”

a chamar:

“Dora”

todas elas, ignoradas.

Dora saíra de casa naquele domingo de manhã, deixando para trás marido, dois filhos adolescentes e, sobre a mesa da sala de jantar, impecavelmente arrumada do mesmo modo como há quinze anos vinha fazendo: pão, bolo, frios, frutas e café quentinho.

Orgulhava-se de ser um exemplo de esposa, de mãe, de dona de casa, mas sentia que lhe faltava algo, não sabia dizer o quê, e essa angústia vinha a acompanhando há meses, tornando-se cada dia mais intensa e profunda.

Ao acordar pela manhã, naquele domingo, depois de arrumar a mesa para o café, enquanto todos os demais membros da família ainda dormiam, alguém bateu à porta da casa.

Dora nem teve tempo de pensar quão estranho e, para dizer mais, inusitado, era alguém vir bater à sua porta àquela hora, em pleno domingo. Sem se importar que ainda vestia camisola e calçava pantufas, foi atender quem batia.

Ao abrir a porta, não viu ninguém do lado de fora, mas algo dentro dela, vindo do fundo de sua alma, ordenou-lhe quase implorando:

“Fuja!”

Ao ouvir aquele comando, Dora só teve tempo de retornar, às pressas, para a sala de jantar, a fim de pegar seu celular, e então, cumprindo a ordem que acabara de ouvir, saiu de casa do jeito que estava, com a roupa do corpo, levando consigo apenas o celular. Deixou a porta da casa sem trancar à chave, apenas encostada.

Perdeu a conta de quantos quarteirões andou a esmo, até chegar àquela cafeteria onde a encontramos, e na qual ela ainda permanece sentada à mesa, sozinha, sem fazer nem sequer um pedido.

Uma notificação na tela de seu celular chamou-lhe a atenção, tirando-a por um segundo do torpor em que se encontrava. Ignorando as chamadas perdidas e todas as demais mensagens que a tela exibia, ainda a perguntar:

“Cadê vc?”

a mostrar preocupação:

“Vc tá bem?”

a pedir:

“Vem tomar café com a gente, mãe”

a chamar”

“Vem, Dora”

ela dirigiu seu dedo indicador direto para a única notificação que fora capaz de lhe tirar do transe e abriu-a.

Ao fazê-lo, a foto de uma menina com um cachorrinho ao colo, abriu-se na tela, remetendo Dora a lembranças de sua infância.

Naquela época, idos de 1970, junto com seu pai e sua mãe, ela vivia numa casa de madeira, na zona rural do estado. Como a menina da foto, Dora também era loira e tinha um cachorrinho de estimação chamado Rex.

Diferentemente da menina da foto, que sorria de alegria, a infância de Dora tinha sido triste, não deixando muita margem para que pudesse sorrir, a não ser quando, sozinha, brincava com Rex longe dos olhos de seu pai e de sua mãe. Sob as vistas grossas desta, desde muito pequena Dora foi violentada por seu pai.

No dia seguinte ao seu aniversário de dezoito anos, não suportando mais viver ao sabor do violento desejo de seu pai, Dora fugiu de casa.

Com algum dinheiro que, às escondidas, tinha juntado fazendo serviços domésticos nas casas das senhoras de classe da pequena cidade vizinha, ela foi para a rodoviária e, disfarçada com um lenço na cabeça, pegou um ônibus para São Paulo.

Horas depois, desembarcava na cidade grande, sem rumo certo a tomar, apenas com o dinheiro do bolso e a roupa do corpo, mas determinada a dar uma reviravolta em sua vida.

Seu maior sonho era ter uma família perfeita: marido e filhos.

No início, foi viver numa pensão para moças, onde a vaga do quarto, que dividia com mais três desterradas vindas de várias partes do país, custava barato o suficiente para caber em seu parco orçamento. Por uns dois anos, aquela pensão foi sua residência paulistana.

Só saiu dali para morar com João, o bancário com quem viria a se casar. No ano seguinte ao casamento, nasceu Pedro, o primeiro filho. Um ano depois do primeiro, André, o segundo filho, veio ao mundo.

O sonho de Dora de ter uma família perfeita parecia, enfim, realizado.

Olhando ao redor, ela podia dizer que seu marido era perfeito, seus filhos eram perfeitos, sua casa, mesmo simples, era perfeita. Ao menos, esforçava-se para se convencer disso.

A partir de um certo ponto, tanta perfeição começou a sufocá-la. Esse sentimento, que no começo ela mal percebia, foi crescendo, crescendo, até o dia em que, tornado insuportável, levou-a a sair de casa com a roupa do corpo, sem nem sequer se importar em fechar a porta à chave.

Não queria mais aquela família perfeita, que então reclamava sua presença por meio de mensagens e ligações no seu celular.

Queria se jogar de uma ponte, sentir a adrenalina que lhe invadiria o corpo segundos antes de se lançar lá do alto para o vazio logo abaixo. Há anos, não sabia o que era sentir aquilo, sentir-se viva. Era isso que queria: sentir-se viva, nem que fosse para, dali a instantes, morrer. Aqueles instantes de intensidade valeriam todos os anos passados com sua família perfeita.

A decisão estava tomada: sairia dali e seguiria direto para o Viaduto do Chá, ali próximo, e de lá da borda no meio do viaduto, jogaria seu corpo para cair sobre a dureza do piso do Vale do Anhangabaú, metros e metros abaixo, frações de segundos depois. Nem sentiria dor e, muito provavelmente (assim pensava), ninguém, dentre os passantes, tomaria a iniciativa de impedi-la. Sua esperança era mesmo viver anônima aqueles seus últimos e intensos minutos de vida.

Antes, porém, de levar a cabo sua decisão, pediu um café: a cafeína haveria de ajudá-la a estar desperta para viver seus últimos átimos de vida, aumentando, assim, a intensidade desses instantes.

Com a cafeteria cheia, como era de se esperar, o pedido demorou para chegar à mesa de Dora e, quando enfim o café lhe foi servido, já estava frio, longe, portanto, de um café perfeito.

Ao ingerir aquela bebida fria, Dora sentiu falta do café quentinho, coado, que todos os dias pela manhã preparava e servia para acompanhar os pães, os bolos, as frutas e os frios servidos para sua família.

Levantou-se da mesa, pagou a conta e voltou para casa.

Maria

Tinha por hábito ler o horóscopo ao final do dia, no trajeto do seu trabalho para casa. Dentro do ônibus com o qual fazia esse percurso, Maria lia o seu horóscopo mesmo que não conseguisse
(o que era bastante comum)
um lugar para se sentar: o ônibus estava quase sempre lotado.

Era assim

(dentro do ônibus a ler o seu horóscopo)

que, de segunda a sexta, ela vencia a longa distância que separava a casa de sua patroa e aquela onde ela mesma, Maria, era a patroa: a sua própria casa.
Uma casa pequena, feita de tijolos e sem reboco, cercada de pesadas grades de ferro, que Maria dividia com seu marido, Agenor, e mais três filhos
– Todos criados
como dizia, orgulhosa, para quem quer que lhe perguntasse.
Pela sua data de nascimento, o horóscopo lhe atribuía o signo de Virgem, mas desde muito moça, Maria decidira adotar o Touro como sendo o seu signo do zodíaco, por enxergar na figura daquele portentoso bovino com chifres o símbolo da força com que gostava de ser percebida. Virgem sempre lhe parecera um signo delicado demais: não combinava com seu gênio forte. Além do mais, há muito perdera a virgindade do corpo, não havia, portanto, por que mantê-la no horóscopo, pensava.

Era com esses argumentos

(que para ela pareciam bastante contundentes)

que ela justificava essa troca zodiacal. 
Trabalhadora exemplar, Maria orgulhava-se de ser empregada da mesma família há quase vinte e cinco anos, período no qual, sem nunca ter faltado um dia, trabalhara como babá dos filhos da patroa e, também, dos seus netos, sempre cumprindo sua jornada de trabalho vestida com um impecável uniforme, todo ele branco, do qual ela tanto se orgulhava. Nas palavras da patroa, o tal uniforme
– Serve para que saibam quem você é
declaração que Maria não entendia muito bem, haja vista que todos naquele condomínio onde a patroa morava a conheciam, não pelo nome próprio, é verdade, mas, sim, como a babá da Dra. Ângela. Não havia, portanto, quem por ali não soubesse quem ela era.

Ingênua, Maria não se dava conta, mas o uniforme branco abria-lhe portas que, de outro modo, estariam para ela fechadas à chave se, diante delas, ela se apresentasse sem nada para branquear a negritude de sua pele.
Há anos

(quase 25)

sua vida tinha sido praticamente só trabalhar, cumprindo, de segunda a sexta, uma primeira jornada na casa da patroa, e depois à noite, uma segunda jornada naquela casa onde ela mesma era a patroa: a sua própria.
Gabava-se de, com seus próprios recursos – provenientes de seu emprego como babá –, sem depender de um tostão do marido, ter conseguido criar seus filhos, todos hoje crescidos e encaminhados na vida, mantendo-os longe do crime. Naquela vizinhança onde os meninos

(como Maria ainda os chamava)

moravam com sua mãe e mais seu pai, numa distante periferia de São Paulo, o crime tinha por hábito arregimentar vidas jovens, e não raro as entregava à morte, principalmente se fossem vidas negras, como eram as dos filhos de Maria.
Numa segunda-feira, Maria retornava para casa ainda trazendo no corpo o cansaço da semana passada: tivera que fazer plantão na casa da Dra. Ângela, que somente na sexta a avisara que

– Vou dar uma festa e preciso de você aqui durante todo o final de semana, pode ser?

retoricamente a patroa perguntou.

Com seu uniforme todo branco guardado dentro de uma sacola, Maria estava
– À paisana
como sua patroa dizia nas raras vezes em que as duas se encontravam pela manhã: em geral, quando Maria chegava para trabalhar, a patroa ainda dormia e só acordaria dali a pelo menos uma hora, lá pelas 7 da manhã.

Enquanto o ônibus seguia, embarcando e deixando passageiros ao longo do caminho, Maria lia o seu horóscopo com as previsões para aquele dia, que muito mais apropriadamente deveriam ter sido lidas ao amanhecer, e não já no início da noite, como Maria então fazia. As colunas do horóscopo eram a única leitura que conseguia acompanhar, pois ela nunca frequentara a escola: o pouco que sabia ler foi aprendido com a ajuda de um de seus filhos, o mais velho.

Ao final do dia daquela segunda-feira, antes de deixar o trabalho, depois de espalhar algumas folhas de jornal pela área de serviço do apartamento da sua patroa, para servirem de toalete para os cachorros da família, Maria, como sempre fazia, separou para si a página do horóscopo e colocou-a dentro de sua bolsa, junto com sua escova de dentes e a bíblia que carregava como um simples amuleto: nunca lera nem sequer uma página. Era-lhe mais fácil simplesmente ouvir a bíblia pelas palavras do pastor, nos cultos que Maria frequentava todos os domingos.
O trajeto do trabalho para casa durava em média duas horas, era o tempo que em geral Maria levava para ler as previsões de seu signo de adoção, Touro, previsões que àquela altura do dia, com o sol já posto, já nada mais previam, apenas ruminavam.
Para ela, a leitura do horóscopo era muito mais que uma simples distração: realmente acreditava no que lia e esperava ver realizadas aquelas previsões passadas em sua vida futura, o que, de fato, até então nunca ocorrera. 

Não tinha sido por que o astrólogo autor daquelas colunas faltara ao trabalho, não as entregando redigidas e prontas a tempo de serem publicadas naquela segunda-feira, em que, ao final do dia, Maria voltava para casa.
Por certo, não tinha sido esta a razão pela qual a coluna daquela segunda-feira saíra exatamente igual à coluna da sexta-feira passada. Um imprevisto qualquer, ninguém sabia bem dizer qual, tinha levado o editor do jornal a republicar, ipsis litteris, a coluna de sexta na segunda.
Maria demorou um pouco para perceber 

(sua memória não andava lá essas coisas)

mas ao terminar de ler o horóscopo para o seu signo de adoção, na coluna de segunda-feira, ela enfim deu-se conta que aquelas previsões que ela então lia eram idênticas àquelas que ela tinha lido na sexta-feira passada, naquela mesma coluna, quando também retornava da mesma casa onde, há quase 25 anos, vinha trabalhando como babá, sempre vestindo seu uniforme branco, do qual tanto se orgulhava.

Ao terminar de ler aquela coluna e perceber que estava igual à coluna de sexta passada, Maria sentiu um pensamento estranho e inusitado

(nunca o tivera antes)

passar por sua cabeça. Por aquele breve instante, Maria sentiu que sua vida andava repetitiva.

– Será?

perguntou-se em pensamento, e então desceu do ônibus, tomando o caminho dali para sua casa, como sempre fizera por quase 25 anos. Na manhã seguinte, recomeçaria tudo de novo.