A estação de trem

Desativada há anos, a antiga estação de trem ficava às margens da cidade, numa periferia distante situada para além do cemitério municipal. As suas plataformas, que outrora foram repletas de gente a chegar e partir, encontram-se vazias. Ao invés do apito do trem e do burburinho dos passageiros, ouve-se apenas o sopro do vento, que, em tom de sussurro e sob testemunho das aranhas que habitam os cantos do telhado, diz aos poucos desavisados que por ali aparecem:

— Perigo.

sobre quão perigoso é estar ali, dado que o local, bastante degradado após anos de abandono, não oferece segurança nenhuma àqueles que o visitam. A poeira, os buracos, o mato alto e a água suja empoçada criam ambiente propício para cobras, aranhas, ratos e pessoas desabrigadas.

Um dessas pessoas é uma mulher de nome Isabel, que vive ali numa das plataformas, sob uma barraca precária de panos sujos, desde quando a estação foi desativada.

Há 10 anos, quando o derradeiro trem dali partiu, levando seu único filho dentro do último vagão, aquele destinado à segunda classe, ela, em pé sobre a plataforma, ficou a acenar com um lenço que trazia na cabeça, o mesmo com que também enxugava as lágrimas que, em profusão, desciam pelos cantos de seus olhos. O filho partia para tentar a vida em outra cidade, maior e distante, com a promessa de que

— Um dia eu volto, mãe.

um dia voltaria.

Desde então, todavia, nunca mais voltou.

Refém da esperança de que ele um dia cumpriria sua palavra de voltar, Isabel permaneceu ali esperando por todos esses anos. Para isso, largou tudo para trás: casa, marido, pai, mãe, irmãos. Ninguém entendia o porquê, mas para ela isso não importava: ficava naquela estação de trem como se estivesse ali condenada à prisão.

Isabel vivia à base dos restos de alimentos que recolhia do lixo deixado ao redor daquele lugar pelo serviço de coleta da cidade. Para beber, ia até o riacho que passava ao lado da estrada de terra ao fundo da estação de trem. Fazia as suas necessidades onde e quando sua vontade ditava.

Abandonada pelos pais quando ainda era uma criança de pouco mais de 4 anos, Isabel foi criada por sua avó, seguindo uma criação muito simples, como eram aquelas que se davam às crianças, pobres como ela, em sua época, na cidade onde nasceu.

Quanto teve Lourenço, seu primeiro e único filho, jurou a si mesma que nunca o abandonaria, como fora abandonada por seus pais. Pena, para ela, que Lourenço não fizera a mesma promessa em relação à própria mãe.

Às vezes, quando, à maneira dos passageiros de outrora, o vento cruza, apressado, as plataformas da velha estação, é possível ouvir Isabel chorando baixinho. Em meio ao choro, ela reza: tem fé de que um dia seu filho vai voltar.

Certa noite, uma luz, forte como a de um farol, irrompeu o breu que envolvia a estação, seguindo a linha do trem. Vinha de longe e, rapidamente, foi chegando cada vez mais e mais perto. Ao presenciar aquela cena, Isabel sentiu seus olhos serem injetados por lágrimas, enquanto seu coração batia em disparada: para ela, aquela luz era a da locomotiva do trem que trazia seu filho de volta.

À medida que foi se aproximando, a luz foi se revelando não como a luz da locomotiva do trem, como pensava Isabel, mas a de um carro alegórico que trazia, em cima de sua carroceria, um trem feito de madeira e isopor. Da janela daquele trem de fantasia, acenava um homem vestido como um maquinista. A cada vez que ele puxava a cordinha da cabine da locomotiva, ouvia-se um apito alto e agudo.

Junto com o trem, chegou o som de uma potente bateria de escola de samba, que por sua vez puxava, à maneira do Flautista de Hamelin, um cordão de centenas de sambistas, todos fantasiados de multicoloridos maquinistas. Seguindo o ritmo compassado da bateria, carro alegórico e sambistas avançavam na direção de Isabel, que, como se estivesse hipnotizada, acompanhava aquilo tudo sem mexer um músculo, com os olhos fixos e brilhantes como de um gato que, ao cruzar a estrada à noite, é surpreendido pelos faróis de um carro.

Depois de anos de tristeza e resignação, tudo aquilo lhe parecia tão estranho, mas ainda assim tão espetacularmente belo.

Minutos depois, fez-se novamente silêncio na estação de trem abandonada: o carro alegórico e os sambistas já iam longe, bem distante dali, deixando para trás muito lixo, não do tipo orgânico e fétido em cujo meio Isabel, nos últimos anos, acostumara-se a viver, mas sim restos de festa e alegria: serpentinas, confetes, plumas e restos de paetês, cujas cores e brilhos eram então realçados pelas luzes, tépidas mas ainda assim vibrantes, que o sol da manhã lançava sobre a antiga estação de trem.

Vendo tudo aquilo espalhado pela estação e pelos trilhos do trem, Isabel se lembrou que, quando menino, Lourenço, festeiro como ele só, gostava de ir às matinês de Carnaval, vestindo fantasias diversas, que variavam conforme o tema da festa ou mesmo seu desejo de se destacar, mas sua preferida era justamente a de maquinista de trem. Ao voltar dos bailes de Carnaval, ele trazia grudado ao corpo suado restos de serpentinas, confetes, plumas e paetês similares àqueles que Isabel então via, ao seu redor, jogados ao chão. De repente, seu olhar para aqueles restos de festa e alegria mudou, e ela passou a ver ali a realização do tão aguardado retorno de seu filho que partira há 10 anos. No fundo, sabia que não era verdade que ele tinha voltado, mas se permitiu, ao menos por um instante, breve como o apito de um trem, deixar-se levar por aquela fantasia, afinal, era Carnaval.

A fotografia

O primeiro encontro também tinha sido o último. Naquele final de tarde, ele partia de trem para uma nova vida, num lugar ainda desconhecido, mas que lhe trazia a esperança de uma vida melhor. Da plataforma da estação, ela acenava em vão e assim continuou fazendo até o momento em que seu aceno encontrou o aceno dele no ar e, então, os dois acenos se abraçaram num aperto forte que só o movimento do trem conseguiu desatar.

Depois daquele dia em que seus acenos se abraçaram no ar impregnado de tantos adeus da estação de trem, Fátima e José nunca mais se encontraram e, desde então, trinta anos se passaram.

Nesse tempo todo, cada um seguiu sua vida: casaram-se, tiveram filhos, sofreram angústias, alegrias, viveram enfim as vidas que a vida lhes deu, com sua mão por vezes generosa e outras vezes, vai ver a maior parte delas, avarenta ou mesmo miserável.

Naquela tarde em que Fátima e José se encontraram em seus acenos, um lambe-lambe que fotografava aleatoriamente as pessoas documentou numa foto o momento daquele abraço. Essa foto viajou trinta anos no tempo até ir parar numa exposição em comemoração aos cem anos da pequena cidade onde ficava a estação.

Certo dia, à exposição, compareceram um grupo de adolescentes do orfanato local mais as suas supervisoras, que com muito esforço cuidavam para que nenhum dos órfãos se perdesse por entre os corredores do enorme recinto, localizado a poucos metros da estação de trem, num antigo galpão que, no passado, servira a função de oficina mecânica dos trens, hoje sem uso dado que aqueles há muito não mais circulam.

Antônio, um dos órfãos que acompanha a excursão, interessado como é em fotografia, observa com bastante atenção cada uma das fotos ali expostas, demorando-se bastante em cada uma delas, a ponto mesmo de a excursão andar e ele ficar para trás, sozinho. As fotos lhe trazem um alívio da pesada realidade que o cerca no orfanato.

Quando seus olhos se dirigiram à foto do abraço dos acenos de Fátima e José, amarelada pelo tempo, algo chamou a atenção de Antônio, algo que ele não sabia explicar o que era, mas que lhe atiçou a curiosidade, fazendo com que despendesse ainda mais tempo na contemplação daquela fotografia do que havia gasto nas demais por ele vistas até então.

Depois de alguns minutos observando aquela imagem, como que hipnotizado pela cena que estava ali retratada, lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Antônio. Não entendia a razão por que reagia daquela forma.

Uma forte angústia começou a tomar-lhe de assalto, tão intensa que não encontrava precedente em sua vida. Ele não reconhecia a mulher naquela foto, uma jovem de não mais que quinze anos, nem tampouco o rapaz, um jovem de não mais que dezoito anos.

Aos poucos, porém, foi reconhecendo as mãos da mulher no abraço dos acenos ali registrado. À medida que esse reconhecimento foi ganhando corpo, também a sensação de angústia passou a apertar-lhe ainda mais o peito, levando-o até a sentir que lhe faltava o ar.

Minutos depois, finalmente adquiriu a consciência do que estava diante dele: aquelas mãos que, no abraço dos acenos, a fotografia capturara eram as mesmas mãos que tantas vezes ergueram-se contra ele, munidas de varas e chicotes, oferendo-lhe pesadas surras em resposta às menores infrações. As mesmas mãos que, no dia em que o descobriram “mulherzinha”, como dizia seu pai, expulsaram-no de casa com a roupa do corpo e nada mais.

Trem

O poeta disse que amar é um verbo intransitivo.
O repórter alerta que o trânsito da cidade está intransitável.
A astróloga prevê que os astros entrarão em período de transição.
O economista informa que a inflação é transitória.
A nutricionista recomenda evitar gordura trans.
Ney cantava que ele não era mais um transviado.
Em meio a tanta informação, não notei o trem passar.
Já estava atrasado. Que transtorno!