A vida é um sopro

Vistas de longe, as luzes da cidade pareciam estrelas tristes, com seu brilho amarelado como os sorrisos das gentes com quem, todos os dias, Ana cruzava pelos corredores do escritório onde trabalhava como secretária.

Era madrugada de domingo para segunda, quando o ônibus em que ela estava, depois de fazer o desvio da estrada principal, tomou a estrada secundária que daria direto na cidade. Ana voltava das férias em sua cidade natal e, na manhã daquele dia, voltaria ao trabalho. Embora tivesse ficado fora por quase um mês, parecia-lhe que tudo passara tão rápido.

Quando criança, sua mãe sempre lhe dizia:

— A vida é um sopro.

Volta e meia, para ilustrar, dizia isso e, em seguida, soprava uma flor de dente-de-leão que colhera no quintal, fazendo-a se dissolver no vento.

— Está vendo?

Perguntava a mãe, enquanto cada florzinha do dente-de-leão voava para um lugar diferente, tomando os rumos mais distintos.

Para sua mãe, de fato, a vida tinha sido breve como um sopro: morreu ainda jovem, quando Ana não tinha mais que 5 anos de idade. Órfã da mãe, ela acabou sendo criada por seu pai, Orlando. Foi graças a ele que ela conseguira estudar e ter, enfim, condições de deixar a sua cidade natal e seguir para a cidade grande, a fim de buscar uma vida melhor. A mesma cidade para a qual ela voltava depois de ficar fora de férias por quase um mês.

Muitos anos atrás, quando, ainda jovem, esperava o ônibus na rodoviária que a levaria da sua cidade natal para a cidade grande, foi-lhe inevitável comparar aquela rodoviária, com toda a gente que estava ali esperando ônibus para vários destinos, com uma flor de dente-de-leão, que a partir de um sopro, lança suas florzinhas ao vento para seguirem, cada uma delas, um destino. Também aquelas pessoas seguiriam por destinos variados, não só de viagem, mas de vida mesmo. Muitos que ali estavam, mesmo morando naquela cidade tão pequena, ela nunca tinha visto. Outros, depois de embarcarem, ela jamais veria de novo.

Ao enfim chegar a seu apartamento, onde vivia sozinha, Ana sentou-se por alguns instantes no sofá, enquanto olhava ao redor os móveis e objetos que há dias não via. Tudo era tão familiar e estranho ao mesmo tempo.

Pouco depois, algumas horas apenas, Ana teria que estar a caminho do trabalho, onde novamente encararia os seus colegas com seus sorrisos amarelos, virem na direção dela e a cumprimentarem pelo retorno dizendo:

— Bom retorno.

Depois de perguntarem, só por perguntar:

— Como foi de férias?

Tudo dito por entre cumprimentos de mãos débeis e beijos à distância. Às vezes, nem isso.

Ana não aguentava mais trabalhar naquele lugar, mas infelizmente, em sua idade, de quase se aposentar, conseguir um outro trabalho, um trabalho qualquer que fosse, era algo quase impossível.

Tentando reunir forças e coragem, ela tomou um banho, se trocou e partiu, indo em direção ao ponto do ônibus que a levaria até o escritório onde trabalhava, no centro.

Ao chegar lá, os sorrisos amarelos, que então lhe pareceram ainda mais amarelos, vieram ao seu encontro para cumprimentá-la dizendo:

— Bom retorno.

Depois de perguntarem, fingindo interesse:

— Como foi de férias?

Apesar de ser o primeiro dia de trabalho, após quase trinta dias de férias, Ana sentia-se muito cansada, afinal, viajara de ônibus a madrugada toda sem conseguir dormir direito. Mal havia ocupado seu lugar na mesa de trabalho, foi chamada a comparecer à sala da diretoria. Fez um muxoxo de chateação e seguiu para onde havia sido chamada. Lá, depois de cumprimentos protocolares, ouviu de seu chefe que, devido a uma reorganização interna, ele não mais a via como integrante da equipe.

— Não há espaço para você nessa nova estrutura.

Friamente, entregou-lhe um papel para ela assinar e, depois que ela assinou, despediu-se agradecendo pelos anos de serviços prestados.

Ana trabalhara naquela empresa por quase 30 anos. Não só ela, mas também muitos dos sorrisos amarelos foram desligados naquele mesmo dia.

Enquanto esperava pelo ônibus que a levaria de volta para casa, foi-lhe inevitável lembrar-se, sob lágrimas, de Seu Orlando, seu pai, a lhe dizer:

— Nem tudo são flores nesta vida.

ou

— A vida é como uma rosa: bela e perfumada, mas ao mesmo tempo cheia de espinhos.

Vendo toda aquela gente ali ao redor dela, no ponto de ônibus, gente que ela nunca vira e, muito provavelmente, não mais veria depois de tomarem seus rumos, lembrou-se da flor de dente-de-leão a espalhar suas florzinhas pelo mundo quando sua mãe a soprava.

( — A vida é um sopro)

Lembrou-se também do dia em que partira de sua cidade natal para vir à cidade grande; lembrou-se dos quase trinta anos que passara trabalhando no escritório que acabara de a demitir.

Enquanto sua mente vagava por essas memórias e lágrimas escorriam de seus olhos, chegou o ônibus que ela esperava. Por sorte, conseguiu um assento livre. Sentou-se ali logo na frente do veículo, de onde, olhando pela janela, acompanhava as cenas que se desenrolavam pelas ruas por onde o ônibus passava. Ruas que, por anos, ela cruzara, indo e voltando do trabalho. Tudo lhe parecia tão familiar. Tudo mesmo, exceto por uma multidão de bailarinas metidas em vestidos de tule rosa que, à maneira militar, marchavam sobre as pontas dos pés por uma rua, carregando em seus braços, cada uma delas, uma arma de grosso calibre.

Lembrancia

O carro seguia viagem tendo seu pai na direção, sua mãe sentada no banco de passageiros da frente, sua irmã ao lado dele no banco de trás. Ninguém dizia uma palavra sequer, tão absortos estavam pelos pensamentos que corriam em suas mentes.

A notícia da morte da avó, a mãe de seu pai, havia chegado de madrugada, encontrando todos ainda adormecidos da vida. Parece haver uma regra não escrita, segundo a qual toda vez que um telefone toca de madrugada é para que uma má notícia seja transmitida a quem atende a ligação. Se há exceções, por certo só devem comprovar essa regra. Regra que foi naquele momento observada quando seu pai atendeu a ligação, com voz baixa e sonolenta, no seu segundo toque.

Ao desligar o telefone, ele chamou a esposa, que por sua vez chamou os filhos para dar-lhes a notícia. Pouco mais de uma hora depois, estavam todos dentro do carro a caminho do interior.

E era da memória de sua avó que os pensamentos de Daniel iam ao encontro enquanto o carro dirigido por seu pai seguia viagem pela estrada que, diferentemente da vida, tinha poucas curvas, uma estrada quase reta, que exigia dos motoristas que por ela trafegassem um enorme esforço para não adormecerem.

Quando menino, Daniel sempre tivera uma predileção por conversar com pessoas idosas, pois tinham conteúdo muito mais interessante, aos ouvidos dele, que aquele que encontrava nas raras conversas que tinha com as pessoas de sua idade.

Foi justamente com sua recém-falecida avó, Dona Lina, que ele tivera as melhores conversas da sua infância. Para ele, conversar com a avó era como abrir um livro de histórias, daqueles cheios de ilustrações que ajudam a mente a imaginar o que se narra, como eram os livros com os quais Daniel tivera contato, ainda nos seus primeiros anos de alfabetização.

Nos finais de tarde daqueles tempos, ao sentar-se ao lado dela, entre um café e outro, as histórias eram narradas, saborosas como os bolinhos de chuva que Dona Lina insistia em fazer para acompanhar o café.

Naquela época, não lhe ocorria que aqueles encontros pudessem, um dia, não mais acontecerem. O tempo era só aquele do relógio de louça que sua avó tinha preso à parede da cozinha, que dividia os dias em pequenas tarefas rotineiras: acordar, ir para a escola, almoçar, ir ter com a avó, voltar para casa, jantar e dormir, fechando desta forma o ciclo que, assim ele então pensava, seguiria se repetindo por toda a vida.

Enquanto sua mente recuperava essas memórias, lágrimas insistiam em brotar dos cantos de seus olhos, com a teimosia do mato que insistia em crescer por entre os canteiros de flores que sua avó cultivava: dálias, crisântemos, margaridas e rosas. Talvez, pensou, ao permitir o crescimento daquele mato por entre as flores, a natureza quisesse dizer algo a respeito da nossa vida, lição que aprendemos só com o passar dos anos.

Depois de algumas horas de viagem, a família finalmente chegou ao local onde, desde as primeiras horas da manhã daquele dia, acontecia o funeral do corpo de sua avó. Todos entraram no recinto, menos Daniel. Paralisado diante da entrada, como que impedido por um muro invisível, ele sentiu as lágrimas que, até então, brotavam dos cantos de seus olhos ganharem volume mais condizente com a dor que sentia naquele momento e descerem fortes por ambos os lados de sua face, à maneira das enxurradas formadas pelas chuvas que, em sua infância, chegavam para aliviar o calor insuportável daqueles dias de primavera e verão, enxurradas sobre as quais ele depositava folhas de árvores para navegarem imitando balsas em rios turbulentos. 

Tão nervosas eram as correntezas formadas por aquelas enxurradas, que era infalível o naufrágio daquelas rudimentares balsas e, por certo, do que quer que fosse posto ali para navegar. Uma metáfora da fragilidade da vida?

Ao verem Daniel ali fora, parado, chorando, muita gente que acompanhava o velório foi ao encontro dele a fim de tentar, pelos meios que eram possíveis a cada um, consolá-lo. Mas Daniel mostrava-se inconsolável – ele não queria que o último registro da avó em sua memória fosse com ela deitada dentro de um caixão funerário, coberta por véus e rodeada de flores, que não eram as mesmas flores que ela cultivava em seu jardim, mas sim, flores funerárias, que, com seu aroma tão característico, perfumam a morte na vã tentativa de tornar menos doloroso o luto de quem fica.

Se as flores do jardim de sua avó lutavam com o mato, e eventualmente, graças ao cuidado e esmero de Dona Lina, venciam aquelas ervas daninhas, as flores funerárias, numa evidência de mais uma injusta desigualdade do mundo, lutam com a morte, e esta ninguém vence.

Sua avó para ele, sempre que se encontravam:

– Bom dia, né?

e depois complementava:

– Dormimo aggiunto?

Em seguida, ela sorria e o beliscava, e só então ele respondia:

– Bom dia, vó.

A infância tinha o frescor de uma melancia, ou, como ele dizia, quando criança, “lembrancia”.

Quando o funeral terminou, a gente toda que estava ali se dividiu em vários carros para acompanhar o carro funerário até o cemitério, seguindo um atrás do outro, reproduzindo assim cena que Daniel tantas vezes testemunhara em sua infância, ali na sua pequena cidade natal, e que, naquela época, quando o tempo parecia ser apenas aquele do relógio de louça preso à parede da cozinha de sua avó, nunca lhe passara pela cabeça um dia vir a fazer parte, muito menos com o corpo de sua avó dentro do carro funerário que puxava a procissão. A morte lhe parecia algo tão distante e exótico.

Ao entrar no carro, junto com seu pai, sua mãe e sua irmã, seguiram para o cemitério, acompanhando o rodar lento dos demais carros que seguiam para o mesmo destino.

Era um cemitério simples, para gente simples, situado na descida de uma colina, para lá de onde terminava a pequena cidade, numa distância relativamente pequena, mas longe dos olhos dos vivos.

Lá chegando, alguns homens da família puseram o caixão sobre seus ombros e, poucos passos depois, depositaram-no dentro da cova. Naquele momento, assim como para muitas pessoas que ali estavam, foi-lhe impossível mais uma vez conter as lágrimas.

Uma menina (talvez sua prima) veio lhe oferecer um pequeno buquê de flores, com dálias, crisântemos, margaridas e rosas, e num gesto do braço direito e da cabeça, pediu-lhe que jogasse aquelas flores sobre o caixão. Ao invés de assim fazer, Daniel abraçou aquelas flores, apertando-as sobre seu peito, enquanto as lágrimas que caiam de seus olhos as regavam com sua água salgada.

Aquelas flores, dos mesmos tipos que sua avó cultivava, haviam sobrevivido ao mato dos canteiros em que cresceram, por obra do cuidado de algum zeloso jardineiro. As memórias de sua avó e das muitas histórias que ela compartilhara com ele naqueles idos anos de sua infância, hão-de sobreviver à morte dela.

As linhas que aqui escrevi são como aquelas flores.

In memoriam.

Já não estar

Naquele momento, em que tudo já tinha sido dito, parecia-lhes um ponto de não retorno, Sentados em lados opostos da mesa da sala de jantar, tentavam evitar o constrangimento do contato com o olhar do outro, desviando os olhos para o celular, para a paisagem da janela, para o teto, a parede, o chão, para dentro de cada um, A conversa que começara meio sem rumo, em pouco tempo encontrou um norte e para ele seguiu, a passos firmes, como se ali estivessem apenas para sacramentar algo que já vinha pelas suas mentes, Para dizer em palavras o que os gestos já acenavam, Abrir uma brecha de respiro numa situação que há muito vinha sendo sufocante para ambos, Para escrever mais um capítulo na narrativa da relação: o final, Não que a relação só terminasse ali, naquele momento, A bem da verdade, já havia terminado meses atrás, Ali, em volta da mesa, apenas deram voz aos sentimentos, sacramentaram, oficializaram, fizeram pedra o que antes era nuvem, A regra que faz a união não é a mesma que faz a separação, Para a primeira, é necessário um encontro de vontades, Para separar, basta que um a queira, Mesmo antes de verbalizada a decisão pelo fim, aquelas duas pessoas já não eram mais um casal, Há muito instalara-se a ausência do beijo, do carinho, mas também das brigas e discussões, Veio a paz? Vieram os silêncios, longos silêncios a preencherem o vazio da falta do que compartilhar, A pouca conversa, depois, mudou de assunto, de tom, de emoção, de cor, os olhares que a envolviam mudaram, Não se destrói uma ponte para deixar um vale em seu lugar? Ou se constrói outra ponte para unir pontos que então precisam de outra ligação? Vai ver é cada um para seu lado e pronto, vai ver que sim, vai ver que não, Como a poeira que vemos assentar sobre uma longa estrada de terra depois que a vida passa, o tempo dirá.

O barulho da vida

Desde muito anos, elas se encontram semana sim, semana não, numa periodicidade maior do que aquela que, no passado, chegaram a praticar, quando então quase viviam uma dentro da casa da outra. Com o passar dos anos, porém, mãe e filha foram aos poucos se distanciando, e os seus encontros foram ficando cada vez mais e mais raros, terminando por se fixar nessa regra de semanas intercaladas: uma sim, duas não.

Júlia, a mãe, era uma viúva de 83 anos; Lídia, a filha, era uma solteira de 52 anos. Cada uma vivia na sua própria casa, a poucos quarteirões uma da outra, uma distância curta o suficiente para percorrerem a pé, tranquilamente.

Em geral, Lídia, por ser a mais nova, era quem ia até a casa de sua mãe, muito mais vezes do que Júlia ia até a casa da filha.

Quando se encontravam, entre xícaras de café e bolinhos de chuva, mãe e filha ficavam a tricotar agasalhos que depois acabavam indo para a doação. O tricô tinha por finalidade protegê-las do tédio, não do frio — servia ao menos para quebrar um pouco o silêncio entre elas. Falavam pouco entre si: a conversa entre elas era formada muito mais pelos silêncios do que pelas palavras. Também a linguagem corporal compunha o diálogo entre ambas: pelo modo como se respirava, pelas expressões dos rostos, a velocidade das mãos ao tricotar, pelos meneios das cabeças, uma sabia o que a outra queria dizer.

Num sábado à tarde, quando Lídia, como de hábito, chegou à casa de sua mãe, logo depois de dizer:

— Boa tarde, mãe.

E sua mãe responder:

— Boa tarde, minha filha.

Ela e sua mãe passaram o resto do tempo que ficaram juntas, naquele dia, sem dizer palavra nenhuma, apenas tricotando e, vez ou outra, ao modo de um gato que levanta as orelhas ao perceber algo diferente por perto, entreolhavam-se para conferir se era verdadeira ou não a ausência que o silêncio acusava estar presente. No início da noite, quando Lídia se levantou e quis tomar o rumo da porta para ir-se embora, disse apenas:

— Vou chegando, mãe.

No que sua mãe respondeu, como de praxe:

— É cedo, minha filha.

E então, também como costumava sempre fazer, a mãe complementou:

— Fica para a janta.

Esse era o código de palavras que mãe e filha adotavam a cada vez que se despediam. Sempre a mesma combinação de frases

— Vou chegando, mãe

na mesma sequência

— É cedo, minha filha. Fica para a janta.

e depois de um beijo na face uma da outra, somente se veriam dali a duas semanas, novamente em um sábado à tarde.

Nas duas semanas que separavam um encontro do outro, nenhuma ligação, nenhuma mensagem, nem um

— Tá tudo bem?

nem tampouco um

— Estou com saudades.

Nesse período, mãe e filha viviam suas vidas completamente apartadas, como se uma não existisse para a outra. Isolavam-se por completo.

Cabia um mundo de dores, angústias, alegrias e nostalgias nessas duas semanas, mas nem mãe nem filha compartilhavam uma com a outra o que se passava com cada uma delas por esses dias.

Há anos, mãe e filha cumpriam esse mesmo ritual de se encontrarem sempre num sábado à tarde, semana sim, semana não, até que, num determinado sábado em que Lídia tinha ido visitar Júlia, quando, ao final daquele dia, em que se percebera um silêncio um pouco maior entre elas, a filha anunciou sua partida, como sempre dizendo:

— Vou chegando, mãe.

Sua mãe nada respondeu. 

Então Lídia, ao voltar seus olhos para Júlia, notou que sua mãe tinha parado de tricotar

(daí o silêncio)

e, com os braços e as mãos caídos sobre seu colo, tinha os olhos fechados como se estivesse cochilando ou morta. A hipótese da morte, talvez pela idade avançada de Júlia, foi aquela que Lídia, quase instintivamente, primeiro considerou, e aos prantos e desesperada, correu para abraçar sua mãe, enquanto sua mente revivia todos os momentos que tinham passado juntas desde que Lídia nascera chorando e aos berros.

(reconhece-se a vida pelo barulho que ela faz)

— É cedo, minha mãe

disse Lídia, com a voz embargada, para uma Júlia que não mais podia lhe ouvir

(reconhece-se a morte pelo silêncio que ela traz)

— Fica para a janta

pois de fato sua mãe falecera enquanto tricotava.

O silêncio ente elas agora a acompanharia por todos os dias.

Reconhece-se a vida pela quietude que fica quando ela vai-se embora.

Dói, logo existo

Vida era seu nome de batismo. Sua mãe queria que a sua primeira filha fosse batizada com esse nome, na esperança de que, assim, a menina pudesse desfrutar de melhor sorte, podendo, quem sabe, ter uma vida plena de felicidade, ao menos no quanto possível, livre das muitas agruras pelas quais a mãe passara ao longo do curso de sua própria história, dentre as quais, talvez a pior, ter sido abandonada à própria sorte pelo pai da menina aos três meses de sua gravidez. A esperança da mãe, depositada sobre a vida da filha, frágil como a chama de uma vela ao vento, viu-se logo apagada, pois, nem bem Vida nascera, tornou-se órfã: durante o parto, sua mãe acabou sofrendo várias complicações de saúde, que, por fim, resultaram em seu óbito. A mãe de Vida morreu sem nem ao menos ter tido a chance de ver e pegar no colo a filha recém-nascida. Morreu sem poder despedir-se de Vida.Levada depois a um orfanato, Vida passou toda a sua infância e adolescência dividindo as condições precárias daquele local com outras meninas e meninos, todos também orfãos. Passavam fome, passavam frio, apanhavam uns dos outros – dos mais fortes –, e principalmente dos supervisores. Dos poucos que dali saíam, agraciados pela adoção, podia-se dizer que renasciam para a vida. A grande maioria que ali permanecia apenas sobrevivia.

Vida sobreviveu e quando, enfim, alcançou a idade adulta, tornando-se uma mulher feita, deixou o orfanato e foi viver na rua, onde, para continuar sobrevivendo, entregou-se à prostituição. Não vivia sozinha, tinha a companhia do Medo, um amigo dos tempos do orfanato com quem ela dividia a vida na rua. Numa noite quente e enluarada de outubro, um carro aproximou-se de Vida, que, como de hábito, fazia ponto numa esquina escura do centro da cidade. Ao baixar a janela do carro, o cara lá dentro identificou-se, cumprimentou Vida e negociou com ela o preço: era um cliente como outro qualquer, dos muitos que ela atendia todas as noites. Alguns meses depois, aquele cliente, porém, já não era mais um mero cliente. Ele e Vida casaram-se, jurando, em frente ao padre, viverem juntos, amarem-se e respeitarem-se, na alegria e na tristeza, até que a morte os separasse. Naquele momento, Vida sentiu-se renascendo. Deixou Medo na rua, e foi viver com o ex-cliente tornado marido, numa casa grande, num bairro tranquilo da cidade.

As palavras do marido, entretanto, ditas diante do padre, foram como que ditas ao vento: alguns meses depois de casados, ele abandonou Vida quando ela acabara de completar três meses de gravidez da filha dele com ela. Foi-se embora, com a roupa do corpo, sem explicar por que partia e jurando nunca mais voltar. Ao ver-se sozinha, atolada nas dívidas impagáveis que o seu ex-companheiro deixara, Vida desesperou-se e saiu de casa correndo, gritando a plenos pulmões por ajuda pela rua. Nenhuma alma viva veio em seu socorro: os que por ali passavam ignoravam-na. Mesmo seu amigo Medo, que por acaso andava ali por perto, olhou-a com desdém, pois sentia-se traído pelo abandono dela no passado. Vida acabou salva pela Morte, uma velha amiga que ela conhecera na sua mais tenra infância. A Morte passava por ali de carro e, quando viu o desespero da amiga Vida no meio da rua, acelerou o automóvel para ir mais rápido ao seu socorro.

  

Vida

Na maternidade, situada em um bairro tradicional da cidade de São Paulo, um homem e uma mulher, recém-empossados em seus novos papéis sociais de pai e mãe, devido ao nascimento do seu primeiro filho, algumas horas atrás, discutem calorosamente sobre a escolha de um nome para o menino. Quando a enfermeira entra no quarto, trazendo o bebê em seus braços, todo miudinho, ainda com carinha de joelho, envolto em um cueiro todo de lantejoulas prateadas, pai e mãe deixam a discussão de lado e, com olhares embevecidos, ficam a apreciar o bebê, já agora entregue aos cuidados da mãe, que o acalenta cantando baixinho sambas de raiz. A enfermeira saca então duas castanholas dos bolsos de sua calça e, tocando-as efusivamente, deixa o quarto em passos de flamenco.
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Com uma desenvoltura surpreendente para a idade avançada, uma velhinha, vestida em um traje de bailarina todo carmim, dança sobre as calçadas do Viaduto do Chá, seguindo por diversas vezes da Praça Ramos até a Praça do Patriarca, e depois repetidamente voltando. Seus passos de balé são precisos e delicados, seu rosto traz uma expressão plácida; sua saia de tule, de tão esvoaçante, parece uma chama ao vento. À maneira de uma tiara, um enorme fone de ouvido cruza por sobre sua cabeça, de orelha a orelha (o que estaria a ouvir?). Dentre os que por ali passam, são poucos os que desviam o olhar para brevemente observá-la. Pastoreada pelas contas a pagar, a maioria passa com o olhar alheio e distante.

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O menino recém-nascido e a velhinha são a mesma pessoa, aqui retratada em momentos distintos de uma vida cuja história nada teve de convencional e linear. Foi toda ela um musical.