-
Glória
Desde que retornara a seu apartamento na sexta-feira passada, não saiu mais. Já estamos na quinta-feira seguinte e Glória continua reclusa, sem sair de casa para nada senão buscar na portaria do prédio a comida que pede pelo telefone. E só.
Havia sido desligada do trabalho na sexta: no final da tarde daquele dia, seu chefe a chamara em uma sala de reunião e, dali a pouco mais de dez minutos, ela viu-se desempregada. Trabalhava como secretária executiva naquela empresa de importação e exportação, há quase quinze anos. Felizmente, não tinha ninguém mais para sustentar além dela mesma: o dinheiro da indenização haveria de poder garantir seu sustento, pensava; não sabia dizer ao certo, contudo, por quanto tempo.
Naquele dia, sentiu-se arrasada. Depois da fatídica reunião com seu agora ex-chefe, voltou para aquela que, por tantos anos, havia sido sua mesa de trabalho, recolheu alguns pertences, nada muito numeroso, e andou a passos rápidos e constrangidos
(parecia então pisar em solo estrangeiro)
até o banheiro feminino. Ali, trancou-se em uma das cabines, sentou-se sobre a tampa do vaso sanitário, e pôs se a chorar como há anos não chorava, fazendo um grande esforço para que a imensa dor emocional que sentia não fosse traduzida em gritos ou lamentos altos. Chorou baixinho. Uma hora depois, quando já ninguém mais estava no escritório, afinal era sexta e todos iam-se embora mais cedo ou trabalhavam de casa, ela abriu a porta da cabine e, com o rosto inchado e os olhos injetados de sangue devido ao choro, ajeitou a roupa e partiu para seu apartamento, onde, desde então, há quase uma semana, Glória encontra-se reclusa.
Há tempos e, mais ainda, depois de completar sessenta e cinco anos de idade, vinha passando por sua cabeça que talvez estivesse se aproximando o dia de parar de trabalhar. Muito embora gostasse muito de seu trabalho, tinha consciência de que, mais dia menos dia, a idade pesaria e aqueles comentários que, não raro, chegavam até ela pela rádio corredor da empresa, de que estaria velha demais para a função que desempenhava, resultariam em sua demissão.
Só não esperava ver-se demitida justo no mês de seu aniversário, na verdade dois dias depois. No dia em que completara seus sessenta e cinco anos, o pessoal do trabalho havia preparado uma comemoração, como faziam para todo mundo, com bolo, Coca-Cola, velinhas e todo mundo cantando para ela um parabéns a você. Ficara tão emocionada. Estava presente todo mundo de seu setor, inclusive seu chefe, o mesmo que, dois dias depois, a chamaria numa sala de reunião e a demitiria.
Bastante econômico com as palavras no dia a dia, ele havia sido ainda mais lacônico no dia em que mandara Glória para casa. Dissera-lhe apenas que a empresa estava passando por algumas restruturações e que, nesse processo, demissões eram necessárias, naturais e esperadas. Vai ver nem eu mesmo fique, ele disse, e olhando em retrospecto, parece a Glória que ele dissera aquilo só para amenizar o peso na consciência dele por estar mandando-a embora.
Glória tinha em casa uma caixa cheia de fotografias que, ao longo dos anos, tirou ao lado do pessoal da empresa, em comemorações as mais diversas. Por todo esse tempo, considerou-os família. Não mais. Desde que saíra da empresa, não recebeu nem sequer uma ligação de nenhuma daquelas pessoas, nem ao menos para dizer-lhe Vai ficar tudo bem ou Estou aqui caso precise de algo. Nada. Bando de ratos e ratazanas, ia pensando enquanto reduzia a pedacinhos todas aquelas fotos. Depois de terminar de destruir aquelas fotografias, levou os pedacinhos a que as reduzira ao já então volumoso saco de lixo, que seguia sem ser descartado desde sexta-feira.
Não demorou para os vizinhos do andar começarem a sentir o mal cheiro que saía do apartamento de Glória, devido ao acúmulo de lixo ali dentro. Dona Helena, a senhora viúva que era vizinha de porta de Glória, começou a estranhar não apenas o mal cheiro, mas também não ver nem ouvir mais Glória sair ou entrar, nas raras vezes que tinha que buscar a comida que os entregadores deixavam na portaria. Foi avisar o síndico, Seu Zé, e pedir a ele Vai bater lá na porta dela e ver se tem alguém em casa, já que ela mesma não tivera resposta ao tocar a campainha do apartamento de Glória. Quando Seu Zé foi lá, viu as contas acumuladas na soleira da porta e sentiu o mal cheiro nauseabundo que saía por entre as frestas da fechadura. Chamou Ô Dona Glória, bateu, chamou de novo Ô Dona Glória. Ao ouvir Seu Zé chamando lá fora, Dona Helena saiu à porta para acompanhar o que acontecia. Nada de Glória vir atender. Por alguns minutos, os dois ficaram em silêncio em frente à porta do apartamento de Glória, sob o olhar misericordioso de uma Nossa Senhora de gesso que a ornava, escondendo o olho mágico.
Seu Zé chamou a polícia e, quando os policiais chegaram, outros vizinhos haviam se juntado a Seu Zé e Dona Helena na frente da porta do apartamento de Glória. Uma dupla de policiais, dois homens fortes, bateram à porta e chamaram Dona Glória, Ô Dona Glória. Nada de ela vir atender. Ao fundo, vindo de algum apartamento próximo, ouvia-se o choro insistente de um bebê. Já temendo pelo pior, os policiais pediram aos vizinhos que se afastassem e arrombaram a porta do apartamento de Glória.
Para surpresa e choque de todos, que devido ao mal cheiro nauseante que o apartamento há dias exalava, esperavam pelo pior, algo como um corpo em decomposição, o apartamento estava completamente vazio, limpo, prístino, todo branco como uma nuvem de um dia ensolarado. Nem Seu Zé nem Dona Helena nenhum outro vizinho tinha visto qualquer movimento de mudança. Tudo muito estranho, pensaram todos. As mulheres até se benzeram, fazendo o sinal da cruz sobre seus peitos.
Caminharam todos em passos de procissão até o fundo do apartamento. Foi quando chegaram ao quarto que era de Glória que o maior espanto os tomou de assalto. Em meio ao cômodo vazio, viram uma caixinha de música, com uma bailarina a girar na ponta dos pés, tocando uma melodia de ninar como que acionada por uma pilha de energia infinita.
-
a faxineira
Naquela manhã, ao acordar, sentiu um certo mal-estar, um enjoo, tudo acompanhado de uma angústia, uma tristeza… não sabia bem dizer o quê. Era como se, durante a noite, tivesse pulado de pesadelo em pesadelo, e isso ao final a tivesse deixado nauseada. Mas Julia não se recordava de ter tido pesadelos naquela noite; de fato, eram raras as manhãs, muito raras mesmo, em que acordava com lembranças dos sonhos havidos na noite anterior.
Julia levantou-se da cama e foi ao banheiro para fazer sua toalete, tomar seu banho matinal, escovar os dentes, pentear-se, passar um perfume, maquiar-se, tudo para ficar, enfim, pronta para enfrentar mais um dia. Já se encaminhava para a cozinha, onde tomaria o seu café da manhã, mas nada daquele mal-estar que vinha sentindo desde que acordara a abandonar.
Tomou um café puro, pois se sentia enjoada demais para comer qualquer coisa. Nem as bolachinhas integrais que gostava de comer pela manhã estavam descendo. Terminado o café, pegou sua bolsa e saiu de casa, deixando a chave embaixo do capacho, em frente à porta do apartamento, para a faxineira poder entrar quando chegasse mais tarde. Era a mesma que trabalhava com ela há mais de cinco anos. Sentia-se confiante de deixar a chave para a faxineira entrar e sair. Mesmo tendo estabelecido essa relação de confiança, não sabia o nome da mulher que logo mais adentraria seu apartamento para fazer a faxina diária, abrindo a porta com a chave que ela sempre deixava embaixo do capacho.
A faxineira costumava trabalhar ali três vezes por semana, todas as semanas. Chegava cedo, pouco depois de Julia sair para o trabalho, e terminava seu expediente no final da tarde, algumas horas antes da dona da casa chegar. Ao longo dos anos em que a faxineira trabalhou para Julia, praticamente nunca haviam se encontrado. Eram quase como estranhas uma para a outra. Nos dias de pagamento, a faxineira recebia um cheque que Julia deixava sobre o aparador, com o valor da semana, descontado o valor dos alimentos que ela pegava da geladeira ou da despensa para consumo próprio. Julia tinha controle de tudo o que entrava e saía de casa e, portanto, sabia quando a faxineira consumia algo que não lhe pertencia. Para Julia, combinado era combinado e não fazia parte do ajuste que a faxineira pudesse comer de graça enquanto em serviço no apartamento dela. Por isso, a seu ver, esses descontos eram justos. Na primeira vez em que se viram, na entrevista de emprego, Julia chegou a perguntar-lhe:
— Qual seu nome?
Qualquer que tenha sido a resposta naquele dia, Julia não mais se recordava. Desde então, chamava aquela mulher simples, vinda da periferia distante e pobre da cidade, que em três vezes por semana ia até sua casa, tão somente pela função que ela desempenhava ali: faxineira.
Naquele dia, Julia teve que retornar bem mais cedo do trabalho: o mal-estar que vinha sentindo desde a hora em que acordara foi piorando ao longo do dia e ela se sentia demasiadamente fraca para continuar trabalhando. Ao chegar em casa, já quase prestes a desmaiar, tamanha a fraqueza que sentia, encontrou com a faxineira a terminar de limpar a sala.
— Oi, Dona Julia.
Disse a faxineira, sem esboçar grande entusiasmo, talvez por conta do susto que levara: tão raro era poderem se encontrar pessoalmente.
Sem se lembrar do nome da mulher que limpava sua casa, não restou a Julia outra alternativa senão dizer:
— Oi.
Assim, seco.
Enquanto caminhava na direção de seu quarto, Julia pediu a faxineira que lhe preparasse um chá, algo que estava fora do escopo de seus serviços. Ainda assim, a faxineira preparou um chá de boldo e levou para Julia, que então já descansava em sua cama.
—Tome, Dona Julia.
Disse a faxineira ao chegar ao quarto e se deparar com Julia deitada, toda enrolada em cobertas: ela estava febril.
— Cuidado pois está muito quente.
Advertiu-lhe a faxineira, antes de deixar a xícara passar de suas mãos para as mãos de Julia, que, em seguida, bebeu todo o chá quase que de um gole só, sem se importar com quão quente estava a bebida. Intrigada pela visão daquela mulher que, há pouco, havia sido tão gentil com ela, parada ali diante de sua cama, a olhá-la com uma ternura distante, Julia perguntou-lhe:
— Qual o seu nome?
A essa pergunta, sucedeu-se uma longa pausa.
Julia então caiu no sono por efeito do chá de boldo, que de fato nada tinha dessa erva: havia nele uma mistura de cogumelos que poderia ser letal, a depender da quantidade consumida. Era o mesmo chá que ela tomara no dia anterior o que acabou por causar-lhe o mal-estar à noite. A faxineira tinha deixado o chá pronto dentro de uma garrafa térmica posta sobre a bancada da cozinha, com um bilhete avisando Julia que era o chá que ela pedira para fazer. Diferentemente daquele tomado no dia anterior, o de agora tinha uma quantidade letal de cogumelos.
Julia ainda conseguiu juntar forças para novamente perguntar à faxineira:
— Qual o seu no…?
Mas antes mesmo de conseguir completar a pergunta, desfaleceu… ou morreu?
Por coincidência ou não, foi nesse momento que tocou o telefone celular que Julia deixara na mesinha ao lado da cama. Num gesto impensado, a faxineira o atendeu.
— Alô, é a Julia?
Alguém perguntou do outro lado da linha.
— Ela mesma.
Respondeu-lhe a faxineira, com os lábios e os olhos a sorrirem, pois finalmente alguém naquela casa a chamara por um nome.
-
Na sala de casa
Na sala da casa, encontramos pai, mãe, filho e filha, todos diante da televisão
Que segue ligada em uma novela qualquer
Na novela que ninguém presta atenção
Pareciam tão felizes na fotografia
Há pouco publicada numa rede social
Na rede na qual todos tinham perfis
Curtiam e eram curtidos
Mas não se tocavam
Não se olhavam
Não conversavam
Apenas gostavam
E odiavam
E invejavam
E compravam
E descartavam
Adicionando
Deletando
Bloqueando
Silenciando
Qual silêncio
Quanto barulho
Na sala de casa.
-
Madalena
O aroma inebriante que tomava conta da cozinha denunciava qual era o prato cujo preparo ficava a cargo do forno, que, a julgar pelo calor do ambiente, estava ligado em fogo alto há algum tempo. E assim ficaria por pelo menos mais meia hora, tempo suficiente para completar o necessário para que aquele prato que Madalena assava no forno ficasse pronto, segundo a receita que ela havia visto em um programa matinal de culinária no dia anterior. Dentro do forno, Madalena assava uma lasanha, o prato preferido de seu único filho, Pedramérico, que, dali alguns minutos, chegaria para reencontrá-la após quase cinco anos distantes.
Durante esses anos, mãe e filho mal se falaram – as raras vezes em que isso ocorreu foi sempre por telefone, em breves ligações nas quais ele e ela trocavam meros cumprimentos que, no caso dele, serviam apenas para saber se a mãe ainda estava viva ou se batera as botas. Nada além disso.
No passado, com quinze anos então recém-completados, Pedroamérico fugiu da casa da mãe, pois não suportava mais apanhar dela quase todos os dias. Vítima de uma educação severa, na qual crianças não tinham voz nem tampouco vez, desde sua infância Madalena somente havia aprendido a educar fazendo uso da violência física, a mesma que ela sempre aplicara na educação de Pedroamérico. Para azar dele, havia um agravante: Madalena acreditava que, quanto maior a violência utilizada para educar, melhor era a educação que daí resultaria.
Ao fugir de casa, Pedroamérico havia jurado para si mesmo que nunca mais voltaria, mas, com o passar do tempo, ele foi aos poucos revendo essa decisão até se convencer de que sua velha mãe merecia ao menos uma segunda chance.
E o dia do encontro que marcaria ao menos uma aposta nessa segunda chance havia enfim chegado: um sábado que, não fosse por isso, seria um sábado qualquer na vida dele ou de sua mãe. Pela manhã, Madalena tinha ido ao mercado para comprar os ingredientes da lasanha. Fez questão de comprar a melhor massa, presunto e queijo que seu escasso dinheiro de aposentada permitia. Pensou em também levar um pote de sorvete, a sobremesa preferida de Pedroamérico, mas não tinha como pagar por essa extravagância: Madalena tinha um pacote de boletos aguardando quitação para a semana seguinte e não queria ver-se na situação de má pagadora perante a companhia de luz ou a de gás, só para mencionar algumas das contas que teria que honrar já na próxima segunda-feira.
Enquanto a lasanha seguia assando no forno, Madalena cuidou de arrumar a mesa, jogando por sobre seu tampo redondo uma toalha estampada com motivos florais, em cima da qual depositou dois pratos, dois pares de talheres e dois copos. Deixou livre o centro da mesa, pois ali depositaria o marinex com a lasanha. Ela também aproveitara a manhã para fazer uma faxina na casa e, assim, sinalizar para Pedroamérico que aquela Madalena que aguardava por ele naquele sábado não era a mesma desleixada que convivera com ele antes de sua partida dali, que pouco ou nada se interessava em zelar para que a casa estivesse limpa e organizada: à época, vivia-se ali em meio a roupas jogadas pelos cantos, lixo para retirar, poeira e odores para todos os lados.
Madalena passara toda sua infância e adolescência tendo de lidar com um pai alcoólatra e violento, daí por que, para além de sua complicada relação com autoridade, organização, também sua relação com qualquer bebida alcoólica era cercada de ressentimentos. Nas várias vezes em que seu pai chegava em casa bêbado, ele fazia de Madalena uma vítima fácil das revoltas e frustrações dele: as surras eram frequentes, sempre sob o olhar indiferente de sua mãe, uma mulher cujo santo jamais bateu com o de Madalena – eram como estranhas uma para a outra. Mesmo diante desse histórico conturbado, Madalena gostava de tomar um pinga, beber uma cerveja. Bebia todos os dias, mas não se julgava dependente da bebida. Porém, não serviria nada alcoólico para acompanhar a lasanha. No lugar de um vinho, que raramente bebia por causa do preço, ou da cerveja, Madalena ofereceria apenas uma Coca-Cola, que ficaria guardada na geladeira até a hora de servir.
O forno apitou avisando que o tempo de cozimento da lasanha chegava ao fim. E nada de Pedroamérico chegar. Vai ver pegou trânsito, Madalena pensou. Ela imaginava que ele vinha de longe, não sabia dizer de onde, e que, portanto, poderia demorar, era natural, pensou. Foi checar se havia alguma mensagem dele no celular dela. Nada. Pensou em mandar uma mensagem para ele perguntando
— Onde está?
ou
— Está chegando?
mas jamais um
— Está tudo bem?
pois seria uma questão demasiadamente ampla. E sempre cabem muitas respostas para questões amplas. E Madalena não queria tantas respostas, queria apenas saber se Pedroamérico estava chegando dentro do horário que dissera a ela que chegaria.
Ela então desligou o forno, tirou a lasanha lá de dentro e a pôs sobre o centro da mesa, para esfriar um pouco. Depois, sentou-se em uma das cadeiras e ficou a contemplar a lasanha quente e fumegante sobre a mesa, enquanto bebericava uns goles de Coca-Cola misturada com cachaça.
Sobre o aparador, ao lado da porta de entrada da casa, havia dois porta-retratos com fotos, uma com Madalena tendo ao colo Pedroamérico bebê e outra com uma selfie recente de Madalena a ocupar toda a quadratura da foto, sem revelar ao fundo o local onde fora tirada. Na foto com Pedroamérico bebê, ela sorri para a câmera emulando as mães da igreja que frequentava, que também faziam questão de sorrir nas fotos com seus bebês. Essas fotos eram coladas no mural da igreja, como forma de avisar os fiéis que a frequentavam sobre para quem direcionar suas doações e preces.
Duas horas já haviam se passado desde que a lasanha ficara pronta e Madalena ainda seguia sem notícias do paradeiro de seu filho. Nesse tempo, a lasanha acabou esfriando. Madalena voltou a verificar se havia alguma mensagem de Pedroamérico em seu celular. Novamente nada.
Então se levantou e foi até a frente da casa a fim de olhar, até onde sua vista alcançava, se ali pela rua havia sinais da chegada do filho. Naquela hora da tarde, com o sol tinindo de quente, a rua jazia praticamente deserta, sem ninguém a percorrer suas calçadas. Voltou para dentro da casa e recolocou a lasanha no forno, mas sem acendê-lo novamente. Abriu apenas a chave do gás e, mantendo o forno aberto, deixou que o gás se espalhasse pela casa toda, preenchendo todos os seus espaços com aquele seu cheiro metálico tão característico.
Com a caixa de fósforos na mão direita, Madalena preparava-se para acender o forno, quando alguém bateu à porta e chamou:
— Mãe?
Era Pedroamérico que chegava, pensou Madalena.
Deixou de lado a caixa de fósforos e correu meio desembestada até a porta de entrada. Ao abri-la, não viu ninguém ali fora: a frente da casa estava tão vazia quanto no momento em que ela saíra para ver se avistava o filho a chegar pela rua. Ela jurava ter ouvido seu filho bater à porta e chamar:
— Mãe?
Decidiu deixar a porta aberta para dispersar o gás, fazendo-o ir para o lado de fora da casa. Feito isso, foi conferir novamente seu celular e viu ali na tela o aviso de uma ligação perdida que havia partido do celular de Pedroamérico. Com as mãos trêmulas, ela pegou o telefone e apertou o botão para chamar de volta o telefone do filho. Do outro lado da linha, mesmo diante da insistência dos toques da ligação, ninguém atendeu.
— Mãe?
De novo, era Pedroamérico que ela ouvia chamar, mas desta vez o chamado vinha do quarto que o menino ocupara quando ainda morava com ela. Aos tropeços, Madalena foi caminhando até lá, temerosa de mais uma vez ser um chamado em falso.
Ao abrir a porta do quarto do menino, que Madalena tinha preservado do mesmo modo como ele deixara quando fugiu daquela casa, ela viu, sem esboçar surpresa, Pedroamérico deitado sobre sua cama, com o corpo todo cheio de lesões e hematomas das surras que levara de sua mãe.
Madalena sentou-se na beira da cama, pousou a mão direita sobre a pele fria do rosto de Pedroamérico e, com voz serena, perguntou-lhe:
— Está tudo bem?
A mesma pergunta demasiadamente ampla que tinha evitado até então, por receio das muitas respostas que poderia contemplar.
Receio que se provou desnecessário, ao menos naquela ocasião, pois de Pedroamérico não recebeu resposta nenhuma.
-
A padaria
Elemento típico de muitas
(quiçá todas)
as padarias paulistanas, a catraca também recebia os clientes que visitavam a padaria do bairro para onde Dalva ia, todas as manhãs, a fim de comprar pão e, quando o dinheiro dava, alguns frios. Nunca ia sozinha: estava sempre acompanhada de sua filha, Teresa, uma menina de cinco anos de idade que, aproveitando-se de seu tamanho diminuto, passava por debaixo da catraca, burlando assim a contabilidade da padaria sobre o número de clientes que a frequentavam.
Numa manhã nublada de sábado, quando ainda poucos clientes estavam dentro da padaria, Teresa
(ou Teresinha, como alguns gostavam de chamá-la)
chegou sozinha e, como de hábito, passou por debaixo da catraca na entrada da padaria.
Depois de cruzar a pequena selva de pernas que separava a entrada do balcão, ela finalmente chegou até onde costumava ficar Seu João, o velho padeiro que, desde menino, trabalhava naquele estabelecimento que herdou de seu pai, que por sua vez herdara de seu pai, o avô de João.
Ao ver Teresinha se aproximar do balcão, Seu João perguntou à menina:
– Os mesmos 4 pãezinhos de sempre?
E então ouviu dela:
– Minha mãe está deitada na cama, sem conseguir se mexer nem falar.
Assustado, Seu João mandou avisar que:
– Ô Dirceu, olha aqui o balcão para mim que preciso ir ajudar Dona Dalva.
Pegou Teresinha pelo braço e saíram os dois pela mesma catraca que a menina havia passado por debaixo, há pouco, quando chegara à padaria.
Poucos minutos depois, ele e Teresinha chegaram à casa onde a menina morava mais sua mãe, Dona Dalva.
Esbaforido, Seu João entrou pela porta da frente sem bater e se deparou com Dalva sentada à mesa, toda ela generosamente arrumada para o café da manhã. Dalva vestia a camisola com que dormira à noite e tinha o rosto amarrotado de quem acabara de acordar e se levantar da cama, sem nem ao menos passar pelo toalete para se lavar ou mesmo pentear os cabelos.
Ainda assim, Seu João suspirou aliviado por ao menos ver que Dalva não estava deitada na cama sem conseguir se mexer, como Teresinha lhe dissera. Com um olhar ainda sonolento e lânguido, Dalva então lhe perguntou:
– Seu João, aceita um café?
Seu João bem quis dizer sim e aceitar o café que Dalva estava lhe oferecendo – há anos, ele nutria uma paixão platônica por ela. Mas declinou ao ver que a xícara do café trazia o logotipo de uma padaria concorrente, justo aquela cujo dono era um antigo e grande desafeto dele. Disse então:
– Obrigado, Dona Dalva.
E continuou:
– Só vim me certificar que a senhora estava bem.
E, por fim,
– Vou chegando.
Querendo dizer
– Vou indo.
Em seguida, sentindo-se como que apunhalado no peito, levantou-se e partiu, sem nem ao menos se despedir da menina Teresa.
Ao retornar à sua padaria, pediu que trocassem a catraca da entrada por uma que não permitisse a ninguém passar por debaixo. Embora Dona Dalva nunca mais tenha ido à padaria dele, nem tampouco Teresinha, o faturamento daquele estabelecimento sofreu um incremento nada desprezível depois daquela simples medida de troca da catraca.
Para celebrar a conquista, Seu Dirceu mandou fabricar algumas xícaras com o logotipo da sua padaria. Em cada uma das centenas de xícaras que ele distribui aos seus clientes mais assíduos, como uma retribuição pela fidelidade, pode se ler, em letras douradas sobre um fundo branco, o nome da padaria dele, “Padaria Dona Dalva”, rodeado por um pãozinho em formato de coração.
-
A fofoca
Sua primeira tarefa do dia era varrer a calçada de tijolinhos que tinha em frente de sua casa. Em dias sem chuva, quando o sol acabara de despontar no horizonte, com o ar ainda trazendo o frescor que ganhara na noite anterior, Rita ia para a frente de sua casa, munida de uma vassoura, e punha-se a varrer a poeira sem fim que aqueles tijolinhos da calçada teimavam acumular. Além da poeira, sempre havia folhas, bitucas de cigarro e outras coisas que o povo jogava ali quando passava ou então que era trazido para a frente da casa dela pelo vento.
Mas Rita não cumpria essa rotina porque tinha alguma mania de limpeza ou mesmo uma simples preocupação com a aparência externa da casa: sua intenção ao ir tão cedo para aquela calçada era espionar o movimento das casas vizinhas logo pela manhã: ver se, dentre aqueles que saiam ou chegavam pela vizinhança, havia alguém que causasse estranheza, levantando suspeita de algum caso extraconjugal: possivelmente um amante ou uma amante. Isso ou qualquer outra fofoca digna desse nome.
Rita conhecia bem toda a vizinhança, sabia de cor quem era casado com quem, se tinham ou não filhos e quantos, quem eram os filhos, se namoravam ou não. Trazia em sua cabeça um verdadeiro dossiê sobre seus vizinhos. Aposentada, viúva e morando sozinha, esse era um momento muito importante, pois era nele que Rita recolhia material para ter assunto pelo resto do dia, que podia ser mais movimentado ou mais tedioso e parado, a depender do que Rita conseguia apurar ao varrer sua calçada, com um olho na vassoura e outro na vizinhança. Para ela, um dia bom era aquele em que ela conseguia apurar uma fofoca grande ou várias pequenas. Nem todo dia era assim. Naquela cidade pequena, embora falar da vida alheia fosse um hábito comum, a rotina pacata raramente trazia algo que pudesse servir de matéria prima a essas conversas.
Dia desses, logo cedinho como de hábito, Rita varria sua calçada quando o olho que ficava rondando a vizinhança, tal como um farol, observou o movimento de um homem estranho, aparentando uns cinquenta anos, que ela nunca vira antes, saindo da casa de Dona Jurema, que ficava logo do outro lado da rua. Assim como Rita, Jurema também era uma viúva e morava sozinha. Diferentemente de Rita, porém, Jurema nunca tinha abandonado o luto: vestia-se toda de preto da cabeça aos pés desde o falecimento de seu marido, há quase quinze anos.
Como quem não quer nada, Rita foi ter com o homem – precisava apurar melhor o que acabara de ver, pois quanto mais concretude tinha uma fofoca, melhor ela ficava. Fofocas com base apenas em impressões não rendiam muita conversa.
O homem mal acabara de tomar seu rumo pela calçada, logo após deixar a casa de Dona Jurema, quando foi abordado por Rita, que sem mais delongas lhe perguntou:
— O senhor é parente de Dona Jurema?
Se o homem já caminhava apreensivo, ter ficado repentinamente sob o olhar inquisitório de Rita e receber dela aquela pergunta tão inusitada, deixou-o ainda mais assustado. Só restou ao homem responder:
— Estava cuidando de um entupimento na pia da cozinha dela.
Resposta que, aos ouvidos experientes de Rita, soou totalmente falsa e nada convincente. Então ela insistiu:
— Mas a essa hora?
Sem disfarçar a impaciência, o homem não respondeu – simplesmente virou as costas e saiu caminhando numa quase corrida, a fim de fugir de Rita e de suas perguntas. Mesmo sem dizer a verdade, fosse qual fosse, com esse comportamento o homem havia dado a Rita material suficiente para uma boa fofoca. Na cabeça dela, Jurema não havia aguentado segurar mais o luto e se entregara à luxúria levando para casa um amante, justamente o homem que, sorrateiramente, havia saído pelo portão há pouco e que dissera a Rita que estava cuidando do conserto de um entupimento de pia.
Ao retornar para sua casa, Rita correu para o telefone e começou a ligar para as vizinhas a fim de comentar o que acabara de presenciar. Passou a manhã toda a fazer ligações. Ligou para Dona Helena, Dona Fátima, as Marias – a mulher do médico e, também, a outra, mulher do dentista –, Dona Teresa, Dona Ermengarda, Dona Marta, entre outras. Para todas elas, narrou a mesma história, recebendo, do outro lado da linha, expressões de espanto e incredulidade. Naquela cidade, Jurema era tida como mulher correta, direita. Ninguém ali podia conceber que ela pudesse ter um amante, ainda mais sem ter tido abandonado o luto.
Atendendo a pedidos para melhor apurar a fofoca, Rita foi visitar Jurema na tarde daquele dia. Fritou uns bolinhos de chuva e, levando-os em uma tigela coberta com um guardanapo branco, chegou a casa de Jurema e chamou:
— Dona Jurema.
A casa de Jurema era uma típica casa de viúva: com um jardim mal cuidado na frente, sem muita decoração e com a tinta da fachada já bastante desgastada.
Na segunda vez que Rita chamou:
— Jurema.
Dona Jurema veio atender, toda vestida de preto, com seus cabelos compridos e brancos, soltos, conferindo-lhe a aparência de uma feiticeira de contos de fada.
Ao ver que Rita trazia os bolinhos de chuva que tanto gostava, Jurema convidou-a para entrar e tomar um café:
— Ô, Dona Rita. Quanto tempo. Entre, vamos tomar um café.
Faltou dizer:
— E por o papo em dia.
Mas essa mensagem era desnecessária: estava sempre implícita em qualquer encontro que contasse com a presença de Rita.
Enquanto Jurema passava um café novo, bem quentinho, Rita colocou o cesto de bolinhos de chuva sobre uma mesa forrada com uma toalha de fuxicos. Sentou-se em uma das cadeiras de madeira que estavam ao redor da mesa e ficou a observar Jurema preparar o café. Quando Jurema terminou o preparo e veio servir o café a Rita, logo ouviu desta:
— Ô, Dona Jurema, fiquei preocupada hoje de manhã.
Intrigada, Jurema quis saber o porquê:
— O que aconteceu, Rita?
No que Rita respondeu, visivelmente excitada pela adrenalina daquele momento:
— Logo pela manhã, enquanto eu varria a calçada em frente de casa, vi um homem estranho saindo daqui de seu portão.
E, caprichando na atuação, continuou:
— Nunca o tinha visto aqui na cidade e, por isso, fiquei preocupada com a senhora.
Falseando a impressão que tivera a respeito daquele encontro com o homem pela manhã, completou:
— Podia ser um assaltante, sei lá. Deus me livre!
Jurema ouviu o relato de Rita e, sabendo da fama de fofoqueira da mulher, não deu muita trela. Limitou-se a responder:
— Vixi Maria, Rita. Não sei de homem nenhum. Tem certeza que ele estava aqui?
No que Rita respondeu:
— Absoluta.
Reforçando com um aceno positivo da cabeça.
E então Jurema concluiu:
— Deve ter sido sua imaginação. Como você sabe, desde que João faleceu, eu não larguei o luto. Jamais receberia outro homem em casa.
E então reforçou:
— Isso seria uma afronta à memória de meu primeiro, grande e único amor.
Percebendo que Jurema não ia ceder, Rita foi entretendo ela com outros assuntos até que, num momento de distração de Jurema, Rita foi até o quarto dela e viu, jogada sobre a cama toda desarrumada, uma cueca samba canção. Diante daquilo, Rita deu-se por satisfeita: já tinha material mais do que suficiente, em sua cabeça, para alimentar a fofoca que pretendia levar ao conhecimento da cidade toda.
A fofoca depois ganhou proporção tão grande que, ao final daquele dia, chegou ao conhecimento de Jurema, que, ao saber do que Rita espalhava a seu respeito pela cidade, foi a casa dela tomar satisfações.
Ao chegar a casa de Rita, bateu palmas e chamou:
— Dona Rita!
Evitando dizer simplesmente Rita, pois queria deixar clara sua irritação.
Depois de chamar maus umas duas vezes, Rita veio finalmente atender ao chamado. Abriu a porta de casa e, de camisola, foi até o portão receber Jurema.
— A que devo essa honra?
Perguntou Rita, no que Jurema de pronto respondeu sacando um revólver de dentro do sutiã e desferindo um tiro à queima roupa bem no meio da testa flácida de Rita, que então caiu para trás tendo metade de seus miolos espalhados para fora da cabeça. No silêncio daquela tarde quente e modorrenta, o som do tiro acabou sendo ouvido pela cidade toda. Como ninguém ali nunca ouvira um barulho como aquele, julgaram ser tudo menos um tiro. Ninguém se importou.
Jurema colocou o revólver de volta no sutiã, por entre os peitos, e tomou o rumo de sua casa, deixando o corpo de Rita jogado ali, sem vida, com a cabeça toda explodida pelo tiro que acabara de levar.
No dia seguinte, Dona Teresa, uma das vizinhas para a qual Rita contara a respeito do misterioso homem que havia visto deixando a casa de Jurema, passou pela frente da casa de Rita e, ao ver seu corpo ali jogado, com a cabeça estraçalhada, soltou um grito de pavor, grito que, de tão alto, foi ouvido pela cidade toda. Poucos segundos depois, uma multidão a consolava enquanto, com espanto e terror, viam o corpo morto de Rita jogado na frente da casa.
Não demorou a surgirem boatos de que Rita pudesse ter sido morta por aquele homem que ela vira sair da casa de Jurema. Afinal, que homem era aquele? Perguntavam-se sem resposta.
A fonte mais confiável de esclarecimento parecia ser Jurema, e foi para a casa dela que a multidão seguiu logo depois que a ambulância recolheu o corpo de Rita. Bastava cruzar a rua.
Lá chegando, Dona Helena, a mulher que assumira a liderança do grupo, chamou:
— Dona Jurema.
E, não obtendo resposta, chamou de novo:
— Dona Jurema.
E mais uma vez, agora mais alto:
— Dona Jurema!
Mas Jurema não veio atender. De fato, não estava ali. Tinha ido ao mercado comprar mantimentos para a semana. Ao voltar, deparou-se com a multidão ainda aglomerada em frente a sua casa.
Dona Helena, nem nem esperou Jurema chegar. Foi até ela para oferecer ajuda com as sacolas do mercado. Enquanto caminhavam em direção à multidão, perguntou:
— Está sabendo que Dona Rita foi assassinada a sangue frio na frente da casa dela?
Fingindo nada saber a respeito, Jurema respondeu:
— Não pode ser! Jura?
E continuou:
— Vai ver foi aquele homem que vi saindo da casa dela hoje pela manhã. Mas na hora pensei que Rita pudesse estar recebendo uma visita qualquer, não alguém que fosse lhe retirar a vida.
De repente, na cabeça de Dona Helena, Dona Fátima, as Marias – a mulher do médico e, também, a outra, mulher do dentista –, Dona Teresa, Dona Ermengarda, Dona Marta e todas as outras pessoas que integravam a multidão, tudo passou a fazer mais sentido: Rita havia sido morta pelo seu próprio amante. O mesmo homem que, no dia anterior, ela dissera ter visto visitando Jurema.
— Que história maluca!
— Que absurdo!
— Deus nos livre!
Exclamaram por entre a multidão. Depois se dispersaram e foram para suas respectivas casas. A partir dali, como as águas de um lago que voltam a ser plácidas pouco depois da queda de uma pedra, a vida voltaria ao seu estado de suspensão naquela pequena cidade.
A calmaria só não atingiu Jurema, pois, sem ter quem mais a vigiasse, como Rita fazia, passou a receber seu amante em casa com mais frequência. Desde então, só veste luto para sair. Dentro de casa, principalmente quando acompanhada de seu amante, anda praticamente nua.
-
Asas sem ninho
Nunca tinha estado em meio a uma multidão como aquela, com todo mundo vestindo fantasias exuberantes ornadas com plumas, lantejoulas, muito dourado e prateado, caminhando com passos ritmados ao som de uma potente bateria.
Era a primeira vez de Manuela em um desfile de escola de samba. Sentia-se inebriada pela alegria que a circundava, embora não estivesse ali para desfilar, mas a trabalho: integrava a equipe de garis encarregada da limpeza da avenida. Era a única mulher em um grupo de trinta homens, todos, assim como ela, trajando o uniforme cor de laranja da companhia de limpeza para a qual trabalhavam.
Da arquibancada, o público que acompanhava o desfile julgava ver ali, naquele grupo de garis, mais uma ala da escola de samba, cujo samba enredo homenageava reis e rainhas de tempos passados.
Com a mesma maestria com que, com a vassoura, varria a sujeira deixada pelos sambistas na avenida, Manuela sambava. No gingar de suas pernas, ritmadas pela bateria, brotava uma enorme alegria, que crescia e desabrochava feito flor.
Ao final do desfile daquela escola de samba, foram para ela os aplausos do público, que ali então elegia uma nova rainha do samba.
Quando o dia amanheceu, findou o expediente de trabalho dela e de seus colegas garis. Cada um a seu modo, voltaram para suas respectivas casas. Estavam exaustos. Manuela ficou. Foi remexer, por entre o lixo, restos de fantasias deixados pelos foliões. Encontrou de tudo, mas depois de uma seleção com base na memória da música que mais havia lhe comovido naquela noite, selecionou um par de asas angelicais, puídas pelo uso, e uma coroa de lamê dourado. Vestiu as asas nas costas e pôs a coroa sobre a cabeça. E foi ornamentada assim, que ela seguiu para sua casa, na distante periferia da cidade, onde, ao chegar, ainda teve que cozinhar o café da manhã para seus irmãos e lavar a louça antes de poder se deitar e descansar. Fez tudo isso sem tirar as asas das costas e a coroa da cabeça. Dormiu então o dia inteiro, indo acordar somente quando o despertador tocou, avisando da chegada da hora de voltar ao trabalho, para onde seguiu de ônibus, ainda trajando sua fantasia da noite anterior. Fantasia que, ao chegar ao trabalho, pediram-lhe para retirar. Por regra do empregador, os funcionários só podiam trabalhar vestindo o uniforme laranja que trazia, no peito, o logotipo da empresa.
Resignada, ela pegou as asas e a coroa e guardou em um armário no vestiário feminino, que ela, sendo a única mulher empregada, não dividia com mais ninguém. Enquanto seus colegas de trabalho partiam em direção à avenida onde, mais uma vez, passariam a noite a limpar a sujeira deixada após a passagem das escolas de samba, Manuela ficou ali, sozinha, no vestiário. De repente, não viu mais sentido naquela alegria que, como um fogo fátuo, tão rapidamente viria quanto depois desapareceria. Asas sem ninho. Mas se isso não for o Carnaval, então o que seria? Refletiu.
Movimentada por essa reflexão, tomou coragem, levantou-se e acompanhou seus colegas de trabalho para a avenida, a fim de cumprir seu ofício de varrer e limpar.
Varreu, limpou, mas também sambou. Ao final dos desfiles de cada escola de samba, era sempre ela a mais aplaudida. Chegou até a dar entrevista para uma emissora de televisão. Na imagem transmitida a tantos lares, pôde-se ver Manuela no seu traje laranja da empresa de limpeza, trazendo no alto da cabeça uma coroa de lamê dourado e, penduradas nas costas, asas de penas puídas, ambas peças que ela recolhera do lixo no dia anterior. Contrariando a política da empresa, ela havia cumprido sua jornada de trabalho vestindo sua fantasia de restos de lixo. Tão dura era sua realidade de vida, que mesmo a mais precária fantasia, como era aquela que Manuela vestia, conseguia fazê-la mais suportável de viver. Afinal, pensou com alegria, não é para isso mesmo que serve o Carnaval?
-
Luiza e Manuel
Casados há mais de trinta anos, chegava a ser difícil imaginar Luiza sem Manuel e vice-versa, tão grudados um ao outro ambos viviam.
Seu único filho, João, já não morava mais com os pais, de modo que tinham a casa só para si mesmos. Livres, passavam os dias ali dentro, pelados, a cuidar dos afazeres domésticos, que não eram muitos: a casa era pequena e não exigia muita manutenção. O tempo livre, passavam a assistir televisão ou lendo, tudo muito prosaico.
Só quando precisavam sair de casa ou quando recebiam alguma visita, duas situações muito raras, é que vestiam roupas. Fora isso, estando frio ou calor, andavam nus.
Era uma manhã nublada, dessas em que o céu parece estar de mau humor, ranzinza, de tão fechado que está seu semblante. Luiza acabara de por a mesa para o café da manhã e foi chamar Manuel, que àquela hora ainda estava no banheiro, tomando seu banho matinal.
— Manuel, o café está pronto.
Ela avisou.
— Vem.
Ela chamou, sem muito entusiasmo.
Mas Manuel demorou a responder. Lá do banheiro, ouvia-se apenas a água do chuveiro a cair dentro do box.
— Manuel?
Ela perguntou, já esboçando um semblante de preocupação. Luiza foi então em direção ao banheiro e, lá chegando, abriu a porta e entrou sem bater, deparando-se com Manuel, não tomando banho como o chuveiro ligado dava a impressão de estar, mas sentado sobre o vaso sanitário a olhar o seu celular.
— O que você está fazendo?
Ela quis saber.
Manuel, sorrindo, mostrou a ela uma foto que estava guardada no celular, uma foto antiga que ele encontrara em seus arquivos de imagens.
— Olhe isso.
Ele disse.
Luiza apertou os olhos para poder enxergar o que Manuel mostrava na tela de seu celular. A foto era do casamento do casal, uma foto antiga, portanto, na qual ele estava vestindo um fraque com duas longas aberturas traseiras, à semelhança de asas de gafanhoto; e ela com um vestido de noiva com muitas camadas de véus e tules brancos, parecido com uma rosa gigante, os dois de mãos dadas diante da porta da igreja, enquanto tentavam se proteger de uma chuva de arroz que caía sobre suas cabeças, lançada pelos convidados que os esperavam ali fora, logo depois de terminada a cerimônia matrimonial.
Na foto, o então jovem Manuel e uma Luiza ainda na flor da idade sorriam para um futuro que, no instante capturado pela imagem, era uma terra virgem, como um vasto descampado prestes a ser conquistado e explorado.
— Parece que foi ontem.
Disse Manuel, sem tirar os olhos da foto, no que Luiza concordou com um meneio da cabeça. E, por alguns instantes, pareceu-lhes mesmo que tinha sido ontem aquele momento retratado naquela imagem de quase trinta anos atrás, guardada no celular de Manuel. Era como se os anos de casados, que viveram juntos, não fossem nada senão as últimas vinte e quatro horas que os separavam da manhã do dia anterior.
– Como o tempo passa rápido.
Disse Luiza, esboçando um olhar algo cansado.
– Passa mesmo.
Confirmou Manuel, enquanto fechava a tela do celular e se levantava.
Ao ficar em pé, Manuel pôde olhar-se no espelho do banheiro e, por sobre a superfície embaçada pelo vapor do chuveiro, viu a sua imagem refletida junto a de Luiza. Diferentemente da foto do casamento, em que estavam vestidos a rigor, ali diante do espelho, ambos estavam nus, seguindo hábito cultivado em anos recentes, depois que seu filho deixara a casa dos pais.
Como uma metáfora do tempo que se esvai, o chuveiro continuava ligado despejando litros e litros de água diretamente sobre o ralo dentro do box do banheiro.
(como o tempo passa rápido)
— Desliga esse chuveiro, Manuel.
Ordenou Luiza.
— A gente não é sócio da companhia de água.
Justificou.
Manuel fechou o chuveiro, fazendo cessar o desperdício de água, e então seguiram para a cozinha onde tomaram seu café da manhã, como sempre faziam, fiéis à rotina dos dias que seguiam a passos lentos, surpreendendo-os, vez em quando ou quase sempre, com a sensação de que o tempo não passava, sentimento que parecia ainda mais marcante em dias nublados como aquele que então apenas se iniciava, certamente um longo dia.
-
Carolina
Bastava fevereiro se aproximar para que seu estado de humor, em geral sujeito a poucas variações, apático mesmo, sofresse um abalo, baixando até quase o ponto de uma verdadeira melancolia. Tal ocorria porque, junto com fevereiro, tradicionalmente também chegava o Carnaval.
E, para Carolina, os Carnavais eram datas tristes como, para muitos, são os Natais e os aniversários da morte de entes queridos: ao longo dos anos, ela sofreu as maiores perdas de sua vida sempre nesse feriado: primeiro foram seus pais; dois anos depois, seu primeiro marido, e, anos mais tarde, foi-se o segundo.
Aos 73 anos, viúva por duas vezes, sem filhos, sozinha, ela passa os dias do Carnaval a olhar, do alto da diminuta janela de sua quitinete, os bloquinhos de foliões que desfilam lá na rua, alguns andares abaixo daquele de sua morada.
Gosta de dizer para si mesma, em pensamento, que no seu tempo de moça jovem, tudo era muito diferente e melhor.
De fato, naqueles idos anos, a lei de então não obrigava ninguém a ser feliz, como faz a lei atual, cuja vigilância, fazendo uso de táticas de uma blitz policial, cresce exponencialmente nessa época do ano. Não por outra razão, para muitos o Carnaval é uma época tão obrigatoriamente festiva e alegre: estão apenas a cumprir a lei.
Receosa de ver-se privada de sua liberdade, de ser presa em flagrante por desobediência a essa lei, Carolina prefere então passar esses dias a salvo na segurança das quatro paredes de sua quitinete, onde ao menos é livre para sentir-se triste.
Está feliz assim.
-
A estação de trem
Desativada há anos, a antiga estação de trem ficava às margens da cidade, numa periferia distante situada para além do cemitério municipal. As suas plataformas, que outrora foram repletas de gente a chegar e partir, encontram-se vazias. Ao invés do apito do trem e do burburinho dos passageiros, ouve-se apenas o sopro do vento, que, em tom de sussurro e sob testemunho das aranhas que habitam os cantos do telhado, diz aos poucos desavisados que por ali aparecem:
— Perigo.
sobre quão perigoso é estar ali, dado que o local, bastante degradado após anos de abandono, não oferece segurança nenhuma àqueles que o visitam. A poeira, os buracos, o mato alto e a água suja empoçada criam ambiente propício para cobras, aranhas, ratos e pessoas desabrigadas.
Um dessas pessoas é uma mulher de nome Isabel, que vive ali numa das plataformas, sob uma barraca precária de panos sujos, desde quando a estação foi desativada.
Há 10 anos, quando o derradeiro trem dali partiu, levando seu único filho dentro do último vagão, aquele destinado à segunda classe, ela, em pé sobre a plataforma, ficou a acenar com um lenço que trazia na cabeça, o mesmo com que também enxugava as lágrimas que, em profusão, desciam pelos cantos de seus olhos. O filho partia para tentar a vida em outra cidade, maior e distante, com a promessa de que
— Um dia eu volto, mãe.
um dia voltaria.
Desde então, todavia, nunca mais voltou.
Refém da esperança de que ele um dia cumpriria sua palavra de voltar, Isabel permaneceu ali esperando por todos esses anos. Para isso, largou tudo para trás: casa, marido, pai, mãe, irmãos. Ninguém entendia o porquê, mas para ela isso não importava: ficava naquela estação de trem como se estivesse ali condenada à prisão.
Isabel vivia à base dos restos de alimentos que recolhia do lixo deixado ao redor daquele lugar pelo serviço de coleta da cidade. Para beber, ia até o riacho que passava ao lado da estrada de terra ao fundo da estação de trem. Fazia as suas necessidades onde e quando sua vontade ditava.
Abandonada pelos pais quando ainda era uma criança de pouco mais de 4 anos, Isabel foi criada por sua avó, seguindo uma criação muito simples, como eram aquelas que se davam às crianças, pobres como ela, em sua época, na cidade onde nasceu.
Quanto teve Lourenço, seu primeiro e único filho, jurou a si mesma que nunca o abandonaria, como fora abandonada por seus pais. Pena, para ela, que Lourenço não fizera a mesma promessa em relação à própria mãe.
Às vezes, quando, à maneira dos passageiros de outrora, o vento cruza, apressado, as plataformas da velha estação, é possível ouvir Isabel chorando baixinho. Em meio ao choro, ela reza: tem fé de que um dia seu filho vai voltar.
Certa noite, uma luz, forte como a de um farol, irrompeu o breu que envolvia a estação, seguindo a linha do trem. Vinha de longe e, rapidamente, foi chegando cada vez mais e mais perto. Ao presenciar aquela cena, Isabel sentiu seus olhos serem injetados por lágrimas, enquanto seu coração batia em disparada: para ela, aquela luz era a da locomotiva do trem que trazia seu filho de volta.
À medida que foi se aproximando, a luz foi se revelando não como a luz da locomotiva do trem, como pensava Isabel, mas a de um carro alegórico que trazia, em cima de sua carroceria, um trem feito de madeira e isopor. Da janela daquele trem de fantasia, acenava um homem vestido como um maquinista. A cada vez que ele puxava a cordinha da cabine da locomotiva, ouvia-se um apito alto e agudo.
Junto com o trem, chegou o som de uma potente bateria de escola de samba, que por sua vez puxava, à maneira do Flautista de Hamelin, um cordão de centenas de sambistas, todos fantasiados de multicoloridos maquinistas. Seguindo o ritmo compassado da bateria, carro alegórico e sambistas avançavam na direção de Isabel, que, como se estivesse hipnotizada, acompanhava aquilo tudo sem mexer um músculo, com os olhos fixos e brilhantes como de um gato que, ao cruzar a estrada à noite, é surpreendido pelos faróis de um carro.
Depois de anos de tristeza e resignação, tudo aquilo lhe parecia tão estranho, mas ainda assim tão espetacularmente belo.
Minutos depois, fez-se novamente silêncio na estação de trem abandonada: o carro alegórico e os sambistas já iam longe, bem distante dali, deixando para trás muito lixo, não do tipo orgânico e fétido em cujo meio Isabel, nos últimos anos, acostumara-se a viver, mas sim restos de festa e alegria: serpentinas, confetes, plumas e restos de paetês, cujas cores e brilhos eram então realçados pelas luzes, tépidas mas ainda assim vibrantes, que o sol da manhã lançava sobre a antiga estação de trem.
Vendo tudo aquilo espalhado pela estação e pelos trilhos do trem, Isabel se lembrou que, quando menino, Lourenço, festeiro como ele só, gostava de ir às matinês de Carnaval, vestindo fantasias diversas, que variavam conforme o tema da festa ou mesmo seu desejo de se destacar, mas sua preferida era justamente a de maquinista de trem. Ao voltar dos bailes de Carnaval, ele trazia grudado ao corpo suado restos de serpentinas, confetes, plumas e paetês similares àqueles que Isabel então via, ao seu redor, jogados ao chão. De repente, seu olhar para aqueles restos de festa e alegria mudou, e ela passou a ver ali a realização do tão aguardado retorno de seu filho que partira há 10 anos. No fundo, sabia que não era verdade que ele tinha voltado, mas se permitiu, ao menos por um instante, breve como o apito de um trem, deixar-se levar por aquela fantasia, afinal, era Carnaval.