• Logo é tempo demais

    Logo é tempo demais

    Fazia uns quarenta minutos ou mais que estavam sentados, um diante do outro, em lados opostos da pequena mesa redonda da sala de jantar, entretidos com a sopa que vinha servida em seus respectivos pratos, sem dizer uma palavra sequer. O silêncio só era quebrado pelo ruído do movimento dos talheres e os sons produzidos pelo ato de mastigar e engolir. Não tinham brigado nem discutido, nada disso. Simplesmente não tinham mais o que compartilhar um com o outro, nada senão o silêncio, denso como a sopa de mandioca que tomavam.

    Tito e Sofia estão juntos há muitos anos, tantos que não sabem mais dizer ao certo quantos, mas certamente mais do que quinze. O tempo passa rápido e, não raro, engana nossa própria percepção sobre o tempo. Quando nos damos conta

    (isso quando nos damos conta…)

    lá se foi uma vida.

    À semelhança de um avião em voo de cruzeiro, o relacionamento entre ambos segue um voo quase automático por uma noite escura sem fim. Ele toca a vida dele; ela, a dela. Estariam ainda casados? Formalmente, nunca estiveram. Anos atrás, pouco depois de se conhecerem, foram morar juntos e assim permaneceram desde então, sem nunca terem oficializado nada. Isso não os impediu de sempre se apresentarem como marido e mulher, como casados mesmo.

    Quando terminaram de jantar, Sofia

    (a primeira a terminar)            

    levantou-se e seguiu para a cozinha. Tito permaneceu sentado à mesa e, sozinho, pô-se a chorar. De início, de forma discreta, mas rapidamente o choro foi ganhando corpo e vazão. Cresceu a ponto de fazer parecer um menino o homem que estava ali chorando.

    Ao ouvir o choro de Tito, Sofia retornou da cozinha, em passos apressados, foi ao encontro dele e o abraçou. Também ela naquele momento chorava. Ambos choravam. Minutos depois, completamente encharcados pelas lágrimas derramadas, Tito e Sofia se separaram. Com os olhos vermelhos, os rostos inchados, sentindo suas gargantas embargadas, seguiram para o quarto que ambos dividiam no apartamento.

    Ali, no local onde antes havia uma cama de casal, daquelas bem grandes, estão duas camas de solteiro, separadas por alguns palmos de mão de distância. Com cada um empurrando de um lado, juntaram as camas de solteiro para, de improviso, formar uma nova cama de casal. E é sobre esta que se deitaram e dormiram, cada um do seu lado, de costas um para o outro, sem nem ao menos um abraço ou um beijo prévios. Dormiram assim a noite toda e, pela manhã, ao acordar, Sofia viu-se sozinha. No lado da cama de casal improvisada, antes ocupado por Tito, há apenas um bilhete. Neste, uma mensagem na qual se lê: “Volto logo”, em letras de mão. A letra de Tito.

    Logo é tempo demais para mim, pensou Sofia, e então rasgou o bilhete.

    A verdade é que, depois daquela noite, Sofia nunca mais teve notícias de Tito. Tanto tempo se passou desde a última vez que ela o viu, que ela nem conta mais com o retorno dele. Passou a viver sozinha, solitária.

    Para ela, o tempo tem ganhado a mesma densidade viscosa dos silêncios que antes preenchiam o convívio com Tito. A eternidade parece não caber nas horas, tão longas estas parecem estar. Qualquer instante se lhe apresenta como tempo demais.

  • Lorena

    Lorena

    Havia encontrado a caixa de sapatos em cima da última prateleira do guarda-roupa. Dentro dela, em vez de sapatos, havia várias fotos antigas, documentos vencidos, papéis de todo tipo que tinham sido guardados ali e, ao longo dos anos, esquecidos naquela caixa. Dentre os papéis, chamou-lhe a atenção um antigo telegrama que sua mãe havia lhe enviado, há mais de 30 anos.

    Lorena era então recém-chegada a São Paulo, numa época em que os telefones eram apenas os fixos, sinais de riqueza para quem os tinha, ou os públicos, encontrados naqueles icônicos orelhões de fibra amarela espalhados pela cidade.

    Distraída, ela havia passado alguns dias sem ligar para sua mãe, como sempre fazia para simplesmente dizer que tudo ia bem. Lá da sua cidade natal, sua mãe, preocupada, enviou-lhe um telegrama pedindo que Lorena ligasse para ela. No telegrama, sua mãe pedia:

    – Me telefona estou preocupada.

    Ao receber o telegrama do porteiro do prédio onde morava em São Paulo, Lorena abriu-o imediatamente e, dali mesmo, correu em direção a um orelhão que ficava a poucos passos de onde ela estava. Enquanto a ligação chamava por sua mãe do outro lado da linha, Lorena observava o movimento ao seu redor. Era uma rua movimentada, que tinha gente a circular a qualquer hora do dia ou da noite. Quando sua mãe finalmente atendeu a ligação, Lorena distraiu-se da multidão e concentrou-se na conversa.

    – Está tudo bem, minha filha?

    Sua mãe quis saber.

    Estava de fato tudo bem e a conversa se restringiu a perguntar e responder sobre isso, repetindo o enredo de praticamente todas as conversas ao telefone que Lorena teria com sua mãe até esta vir a falecer alguns anos depois.

    Naquele seu primeiro ano na cidade grande, a adaptação de Lorena foi difícil, tudo era muito diferente da pequena cidade onde, até então, vivera a maior parte da sua vida. Depois, com o decorrer dos anos, isso se inverteu, e é justamente na metrópole onde ela registra a passagem da maior parte de seus anos de vida. Hoje em dia, sente-se parte da paisagem; antes, sentia-se um elemento estranho. A bem da verdade, aos olhos da cidade, ela era e continua sendo só mais um número, dentre os milhões que formam sua população. Haverá de chegar o dia em que, ao caminhar por São Paulo, quase ninguém a notará, pois sua imagem se diluirá na invisibilidade dos velhos.

    Vez ou outra, Lorena visita locais que, naqueles seus primeiros anos na cidade, costumava ir. Nesse final de semana, foi até aquele mercado de pulgas da Praça Dom Orione, no Bixiga. Era uma manhã ligeiramente fria, com o céu azul, sem nenhuma nuvem: uma manhã típica de outono na Paulicéia.

    No passado, sempre ia àquela feira, pois, para além de apreciar os objetos antigos e outros nem tão antigos assim, gostava de ouvir as histórias por trás dos objetos, em geral bastante floreadas pelos vendedores. Adoravam atribuir origens nobres, raras ou exóticas a bonecas, medalhas, móveis, roupas, esculturas e todo tipo de quinquilharia exposto à venda.

    – Esse violino pertenceu a um grande violinista da rainha da Inglaterra

    ou

    – Essa escultura é proveniente de um achado arqueológico no Irã

    e frisavam

    – É muito rara

    E só então o preço era divulgado e, quase sempre, estava muito acima do que Lorena podia pagar.

    Ali na feira, Lorena cruzou com uma senhora que pedia ajuda para pendurar um velho casaco em uma arara de roupas. Uma velha senhora que tinha os traços de sua mãe

    (vai ver foi isso que a fez escapar da invisibilidade dos velhos)

    e que, apesar da idade avançada, demonstrava enorme vivacidade para estar ali, àquela hora da manhã, provavelmente vendendo roupas de seu próprio guarda-roupa para angariar alguns dinheiros para sobreviver. Uma velha senhora que vestia uma roupa tão velha quanto e usava uma maquiagem forte, que claramente buscava esconder os sinais do avanço da idade no rosto. Uma velha senhora pequenina como as bonecas de biscuit vendidas numa banca ali próxima, e frágil como uma boneca de louça. Tinha os olhos azuis de uma solidão tão profunda quanto o mar. Como os olhos de meu avô, pensou de relance.

    Lorena ajudou-a a pendurar o velho casaco e, ao final, perguntou-lhe:

    – Está tudo bem, minha filha?

    Estava de fato tudo bem e a conversa se restringiu a perguntar e responder sobre isso.

  • Nem todo fim é o fim do mundo

    Nem todo fim é o fim do mundo

    Fuçando uma caixa de sapatos que, há anos, mantinha guardada no fundo de uma gaveta da penteadeira, Paula encontrou várias fotos antigas, de sua época de juventude; fotos em que ela aparecia sempre cercada de muitas amigas, o pessoal da faculdade, do trabalho. Gente que os anos foram levando e sobre paradeiro das quais ela atualmente nada sabe.

    Daquela gente toda, cujas imagens as fotografias registraram em geral abraçadas umas às outras e sorrindo, não recorda o nome de ninguém; por vezes, também não se lembra nem sequer onde a foto foi tirada. Ainda assim, pensa Parece que foi ontem.

    Pela manhã, enquanto caminhava pela rua em direção à padaria, leu em um muro que Qualquer idiota consegue ser jovem, mas que É preciso talento para envelhecer. Olha de novo para aquelas fotografias, uma a uma, manuseando-as com cuidado, como se, ao invés de fotos, estivesse a recolher as pétalas de um arranjo de flores, que caíram ao chão pela ação do tempo. Também aquelas fotos revelavam a ação do tempo, mas de um tempo muito maior, o tempo de toda a sua vida.

    Uma das verdades da vida da gente é que, só quando estamos mais maduros, nos damos conta não apenas da escassez do tempo, mas também de quão rápido ele passa, Meus Deus, já estamos em abril, Parece que foi ontem que celebramos, com os corações cheios de esperança renovada, a chegada de mais um ano.

    O tempo passa rápido, muito rápido, tal qual aqueles maratonistas que, em sua passagem, acenam para a plateia de pessoas a observá-los a correr. A vida é mesmo uma maratona? E diante dela somos esses corredores ou somos a plateia para quem eles acenam?

    Sozinha em casa, enquanto olha para aquelas fotografias antigas, Paula permanece sentada sobre a cama de casal que, por décadas, dividiu com seu marido, falecido há alguns anos. Hoje vive sozinha, pois Marlene, sua única filha, mora em outra cidade e nunca a visita. Olha as fotos da filha, do falecido marido; não os reconhece mais, também eles lhe parecem estranhos. Emolduradas em porta-retratos, outras fotografias dividem o espaço sobre a penteadeira com escovas de cabelo, presilhas, um frasco de leite de rosas, águas de colônia, alguns bibelôs e um revólver. A arma pertenceu a seu marido, que, quando vivo, falava que era para a segurança da família, Vai que um dia entra um bandido aqui, ele dizia para justificar a presença daquele revólver, sempre carregado, dentro de casa.

    Ela reconhece a arma em umas das fotos que tem em suas mãos; talvez porque fosse uma foto recente, que ela mesma tirara, numa selfie em que, com o dedo no gatilho, ela aparece apontando aquela arma para a própria cabeça. Paula consegue reconhecer a arma na foto, mas ao olhar para seu próprio rosto, não se reconhece. Pensa tratar-se de uma estranha. Aos seus olhos, contrariamente aos dizeres que lera naquele muro no caminho para a padaria, na manhã daquele dia, a mulher da foto não havia demonstrado nenhum talento para envelhecer, pois tinha a pele fina, feito papel, toda enrugada, os olhos fundos, uma expressão de profunda tristeza e solidão. Ao contrário de Paula, que julgava estar bem para alguém de sua idade, pois se acostumara a entristecer, aquela mulher da foto parecia ter sido derrotada pela vida.

    Nem todo fim é o fim do mundo, ela pensou enquanto observava a imagem da mulher na fotografia com o revólver apontado para a cabeça. Pegou então o revólver, apontou para sua própria cabeça e, mais uma vez, pensou Nem todo fim é o fim do mundo. Quando ia reproduzir essa frase pela terceira vez em sua mente, só conseguiu pensar Fim.

  • Que passa

    Que passa

    Se alguém lhes perguntasse, provavelmente nenhum deles dois saberia dizer com precisão desde quando eram amigos. Poderiam responder simplesmente Somos amigos há muitos anos ou Já faz tempo e respostas assim costumavam ser suficientes. Mesmo tendo cultivado uma amizade há tanto tempo, Carlos e José pouco sabem a respeito um do outro, pois, em geral, ao se encontrarem, falam apenas de trabalho. Ambos trabalham na mesma grande empresa, como contadores, e são apaixonados pelo que fazem.

    Das vinte e quatro horas do dia, dedicam-se a trabalhar quinze, dezesseis horas, quase nunca menos que isso, fazendo com que sobre muito pouco, quase nada de tempo livre para se dedicarem a qualquer outra atividade. De fato, pouco lhes interessa fazer qualquer outra coisa que não seja trabalhar.

    Às margens de chegarem aos sessenta anos, no caso de Carlos, e sessenta e dois, no caso de José, nem um nem outro se casou ou teve filhos. Vivem sozinhos, cada qual em seu pequeno apartamento próprio, distantes apenas uns dois quarteirões um do outro, em um bairro de muitos edifícios altos, repletos de solidão por entre suas centenas de apartamentos de quarto e sala, como são aqueles onde moram Carlos e José.

    Num sábado de manhã, ao sentar-se à mesa para tomar seu café matutino em uma padaria do bairro, José vê Carlos adentrar o recinto e o convida para ir se juntar a ele naquela mesa. Depois de fazer seu pedido no balcão, Carlos dirige-se à mesa onde José toma seu café.

    Após o costumeiro Bom dia de um lado, Bom dia de outro, Carlos sentou-se à frente de José e começaram a conversar.

    Quase duas horas depois, a padaria via o movimento da manhã começar a arrefecer e eles ainda estavam lá, sentados, entretendo-se fortemente com um bate-papo, como se há muito não se vissem.

    Fugindo ao hábito cultivado por anos, não falaram de trabalho. A conversa toda girou em torno de si mesmos, de suas alegrias, suas tristezas, seus medos, de tudo de mais íntimo que um tinha para dizer ao outro e vice-versa. Tiveram tempo de passar a vida de cada um deles em revista perante o outro, Você sabia que por várias vezes já quis me matar?, indagou Carlos, misturando confissão à pergunta, Choro todos os dias antes de dormir, confessou José, Uma vez, há muito tempo, quase me casei, mas a menina foi proibida de se casar comigo pelo pai dela, que me considerava um merda, relatou Carlos, Juntei-me a uma mulher há muitos anos e chegamos a dividir o mesmo teto, mas ela dava muito trabalho, então nós nos separamos e eu a mandei embora de casa, contou José, Quando olho para você, sinto….

    disse Carlos, sem completar a frase, que assim caiu ao chão como uma flecha lançada sem tração suficiente para atingir o alvo. Mas se a boca não disse, o seu olhar disse tudo e deixou atônito o olhar do amigo.

    José pediu então licença Preciso ir ao banheiro, levantou-se e caminhou em direção ao local cujo destino anunciara ao amigo.

    Ao ficar longe do campo de visão de Carlos, ao invés de ir ao banheiro, foi-se embora da padaria, esquivo como um gato. José continuou ali, a tomar seu café, sem dar pela falta de Carlos.

    Desde então, nunca mais se falaram, nem mesmo para falarem de trabalho como antes costumavam fazer. Quando acontece de se encontrarem, sem querer, seja no trabalho, seja em qualquer outro lugar, nem o antes costumeiro Bom dia de um lado, Bom dia de outro. Quando muito, uma troca de olhares rápida, arisca, que não se fixa, apenas passa.

  • Aurora

    Aurora

    A qualquer hora do dia, quem quer que passasse ali na frente da porta daquele pequeno comércio, bem ao lado da floricultura, notaria a presença daquela mulher corpulenta, sentada de cócoras sobre um banquinho de madeira, desses de três pés, que mantinha o corpo dela a poucos centímetros do chão; mais um pouco, e ela estaria de fato sentada sobre o piso de cimento da loja, formando uma imagem que muito provavelmente a assemelharia a um sapo.

    Na loja, vendia-se uma enorme variedade de bugigangas para cozinha, banheiro, alguns doces, salgados, e o que mais pudesse chamar a atenção dos transeuntes para adentrarem naquele pequeno espaço e comprarem algum produto que estava ali exposto.

    Vez ou outra, via-se uma ou duas crianças a fazer companhia para a mulher. A julgar pela idade que ela e as crianças aparentavam ter, seria fácil dizer que se tratava de avó e seus netos. E de fato eram. Aurora era a avó dos dois meninos de oito e dez anos de idade, ambos filhos de Maria, a filha de Aurora, que os tivera enquanto ainda vivia com João, homem que, logo após o nascimento do segundo filho, fugiu de casa sem dar notícias de seu paradeiro. Isso há quase três anos. Maria trabalhava como caixa em uma lotérica a poucos metros de distância da loja da mãe, virando a esquina. Moravam ambas mais os meninos no andar de cima da loja de Aurora, em um quartinho que mal os acomodava: tinham de dividir a mesma cama de casal, que desencostavam da parede à noite, para dormir, e apoiavam novamente na parede depois de acordarem, de modo a livrar algum espaço para circulação ali dentro. Ainda assim, ficava apertado.

    Certo dia, ao abrir a loja logo de manhã bem cedo, como costumava fazer, Aurora deparou-se com um envelope que alguém fizera passar por debaixo da porta de ferro. Ela abriu o envelope e tirou de dentro dele uma folha de papel em cujas linhas algo vinha escrito. Sem saber o que era, recolocou a folha dentro do envelope. Aurora nunca tinha podido estudar, era completamente analfabeta. Seu pai a proibira de estudar, pois não queria que ela fosse capaz de escrever cartas para os meninos do bairro, não queria a filha na boca do povo, queria que ela fosse uma menina direita. Naquela família numerosa, todos os filhos homens puderam estudar ao menos para aprender a escrever o básico. Aurora, a filha do meio, a única filha mulher, nem isso. Nunca chegara sequer a entrar em uma escola. Conseguia se virar ali na loja, pois tinha um certo tino para lidar com números, embora também não conseguisse lê-los. Ao menos, era-lhe algo mais intuitivo do que as palavras.

    Ela foi então pedir a Pedro, seu neto mais velho, para ajudá-la a entender o que dizia o bilhete

    – Pedro, me ajude aqui.

    Vendo a avó com o envelope na mão, ele, curioso, quis saber

    – O que é isso, vó?

    Aurora abriu o envelope e extraiu de dentro dele a folha de papel cujo conteúdo queria decifrar e mostrou-o a Pedro

    – Me diz o que está escrito aqui.

    O menino pegou o papel na mão, olhou, olhou e depois respondeu para a avó

    – Vó, não diz nada aqui.

    Ela, incrédula, insistiu

    – Como assim não diz nada?

    No que Pedro confirmou

    – Não tem nada escrito.

    Não satisfeita, Aurora então lançou um

    – Então o que é isso aqui?

    enquanto apontava o dedo para o desenho de um coração vermelho a preencher a parte central da folha de papel

    – É o desenho de um coração, vó

    respondeu-lhe Pedro, algo incrédulo por ver a avó incapaz de entender aquele desenho tão simples.

    Aurora ficava a olhar para a imagem do coração ao centro da folha de papel que segurava firme em suas mãos, como se visse e talvez sentisse algo pela primeira vez na vida, tamanho era o estranhamento expresso em seus olhos. 

    — De quem é essa cartinha, vó?

    Inquiriu-lhe Pedro, chamando de cartinha aquela simples folha de papel com a figura vermelha de um coração ao centro, como se tivesse sido pintada à canetinha.

    Aurora refletiu por alguns instantes, enquanto seu olhar ia da folha de papel para a vigília da porta da loja, pois havia sempre o risco de trombadinhas passarem por ali e roubarem algum produto que estivesse mais à mão, e depois voltava para a folha de papel. Refletiu mais um pouco e com os olhos a brilhar devido ao orvalho dos velhos, sob o sol forte que invadia a loja naquele horário, respondeu-lhe numa tristeza bondosa de avó

    — Deve ser de alguém que vê sua avó como uma gorda.

    Incapaz de qualquer compreensão daquela figura fosse como órgão do corpo propriamente dito e menos ainda como símbolo do amor, ela viu na figura vermelha daquele coração ocupando todo o centro da folha de papel, desenhado com linhas irregulares, que, tal como uma carta, tinham colocado dentro de um envelope e feito passar por debaixo da soleira da porta da loja, apenas e tão somente a imagem de sua caricatura.

  • Adelaide

    Adelaide

    Logo de manhã, ao acordar, pegou o seu celular e leu a notícia de que os metroviários estavam em greve. Se seu ânimo para sair para o trabalho já não era dos maiores, ficou ainda mais desanimada, pois podia antever os transtornos pelos quais passaria para poder chegar à casa de família onde cumpria jornada como babá de um bebê de dez meses, filho único de um jovem casal recém-casado.

    Sua patroa gostava que ela chegasse bem cedo, a tempo de assumir os cuidados da criança antes de ela sair para trabalhar. Para atender ao pedido da patroa, Adelaide procurava chegar por volta das sete da manhã, o que a forçava a sair da casa dela bem mais cedo, não depois das cinco e meia, pois, para além disso, atrasaria demais sua chegada ao trabalho, colocando-a sob a mira certa das reclamações da patroa.

    Mas naquele dia seria mesmo impossível chegar no horário: com a greve dos metroviários, Adelaide teria que se espremer em ônibus ou lotações, que por certo estariam apinhadas de gente, tudo gente simples como ela, que levava para o trabalho a comida de casa, para não ter que comer na rua, um luxo definitivamente fora do alcance daquelas pessoas todas, a não ser que lhes fosse possível comer algo barato, que coubesse na fome e na falta. Para Adelaide, também isso era impossível: a casa onde trabalhava ficava em um bairro nobre da cidade, cercado de restaurantes finos, nos quais uma garrafa de vinho ou um prato qualquer podia custar mais que seu dia inteiro de trabalho.

    Ela mesma já havia se deparado com pedidos de comida recebidos pelos seus patrões, que ia buscar no portão da casa, cujas notas não raramente registravam preços que deixavam à mostra a pornográfica desigualdade social do mundo.

    Ao chegar à estação do metrô, como previsto, Adelaide encontrou os portões fechados, com um aviso colado às grades, escrito à mão, onde se lia: “Em greve”. Ela correu para pegar alguma das muitas lotações que se aglomeravam ali na frente, mas tamanho era o número de pessoas a se espremerem que ela mal podia se mexer. As vans de lotações, embora numerosas, mal davam para atender as pessoas que ali estavam, desesperadas para encontrar um meio de transporte que lhes permitisse chegar aos seus destinos.

    Às seis e meia da manhã, Adelaide ainda lutava com a multidão para embarcar em alguma van, à semelhança de peixes que se debatem correnteza acima. Com certeza, se conseguisse chegar, chegaria atrasada. Já podia ouvir sua patroa vir reclamar Ô Deda

    (era assim que a patroa a chamava)

    Ô Deda, seu horário de chegar é às sete.

    E a depender do horário em que ela enfim chegaria, além de ouvir o Ô Deda, seu horário de chegar é às sete, ainda teria de ouvir da patroa que Se fosse para chegar tão tarde, pelo menos poderia ter me avisado com antecedência.

    Mas, naquele dia, Adelaide, ainda que quisesse, não tinha como avisar: saiu de casa num corre tão grande que acabou se esquecendo de levar seu celular. Além disso, não tinha de memória o número da patroa, de modo que nem teria como ligar para ela, ainda que fosse do orelhão.

    Somente às oito da manhã que Adelaide conseguiu enfim embarcar numa van super lotada. Dali umas duas horas, chegaria ao trabalho.

    A van seguia pelas ruas congestionadas da cidade, esquivando-se com dificuldade como quem cruza uma multidão, e despejando gente e trazendo gente para dentro ao longo do caminho. Pelos semáforos e cruzamentos, vendedores de balas, de guardanapos, de mapas, homens se oferecendo para limpar os para-brisas, guardas a ameaçarem multas, ladrões de celular, meninos raquíticos a levantarem placas de “estou com fome”, “preciso de ajuda”, “estou desempregado”, gente a correr para seus compromissos, gente apressada, gente pobre, pobre gente que precisa espremer a vida apertando-a entre as paredes estreitas das necessidades mais básicas.

    A muitos quilômetros dali, Teresa, a patroa de Adelaide, havia acordado há pouco. Dormira tarde naquela noite, pois tinha saído para jantar com o marido, de modo que só foi conseguir se levantar quando o relógio marcava oito da manhã. Logo que notou a ausência de Adelaide, pôs-se a tentar ligar para o telefone dela, a fim de saber seu paradeiro. Tentou umas três, quatro vezes e, em todas elas, a ligação caiu na caixa postal. Teresa tomou seu café, enquanto acompanhava na televisão o noticiário de um canal estrangeiro sobre determinada guerra, greve e protestos que aconteciam em terras distantes e também notícias do mercado e da bolsa de valores. Nada sabia do que ocorria na própria cidade.

    Teria de esperar a chegada de Adelaide, pois não tinha com quem deixar o bebê para ir trabalhar. Adelaide só foi chegar por volta das dez horas daquela manhã. Ao abrir a porta da casa, deu de cara com uma Teresa irritada pelo atraso e pela falta de notícias sobre seu paradeiro. Com o olhar cansado, ainda teve de ouvir da patroa Ô Deda, já te disse que seu horário de chegada é às sete, não? e quase aos gritos complementar Já são dez horas! e por fim ameaçar Se continuar assim, vou ter que descontar de seu salário.

    Adelaide estava cansada demais até para responder e, via de regra, para evitar conflitos, preferia mesmo o silêncio a argumentar, fosse com sua patroa, fosse com qualquer pessoa. Não era de seu feitio, como sua mãe costumava lhe dizer quando ela era criança, já naquela época antevendo que a filha carregaria pela vida afora aquele traço de personalidade. Depois que Teresa saiu para o trabalho, Adelaide sentou-se, cansada, diante da televisão e, com o bebê no colo, ficou a assistir as notícias no telejornal a respeito da greve dos metroviários, que então ainda seguia sem solução.

    Um repórter surge na tela para narrar sua versão dos fatos, tendo ao fundo um aglomerado de pessoas a tentar embarcar nas diversas vans que estão no local. Lá atrás, é possível ver Adelaide em meio aos que lutam para entrar numa dessas vans. Em determinado momento, sem saber que está sendo filmada, ela olha para a câmera, e a imagem de seus olhos tristes é transmitida pela televisão pelo país afora. Algumas de suas vizinhas, amigas e conhecidas, logo em seguida, enviam-lhe mensagens pelo celular dizendo que a haviam visto na televisão. Ela só veria as mensagens à noite, ao retornar para sua casa. Adelaide mesmo, ainda que também estivesse assistindo aquela reportagem, não a reconheceu na imagem transmitida. A realidade daquela mulher da imagem gravada de manhã, lutando para subir em uma van lotada, parecia tão distante daquela que agora estava sentada naquele enorme sofá, a compor a decoração daquela elegante sala de tevê da enorme casa da patroa. Vai ver era porque nem pareciam habitar o mesmo mundo.

  • Glória

    Glória

    Desde que retornara a seu apartamento na sexta-feira passada, não saiu mais. Já estamos na quinta-feira seguinte e Glória continua reclusa, sem sair de casa para nada senão buscar na portaria do prédio a comida que pede pelo telefone. E só.

    Havia sido desligada do trabalho na sexta: no final da tarde daquele dia, seu chefe a chamara em uma sala de reunião e, dali a pouco mais de dez minutos, ela viu-se desempregada. Trabalhava como secretária executiva naquela empresa de importação e exportação, há quase quinze anos. Felizmente, não tinha ninguém mais para sustentar além dela mesma: o dinheiro da indenização haveria de poder garantir seu sustento, pensava; não sabia dizer ao certo, contudo, por quanto tempo.

    Naquele dia, sentiu-se arrasada. Depois da fatídica reunião com seu agora ex-chefe, voltou para aquela que, por tantos anos, havia sido sua mesa de trabalho, recolheu alguns pertences, nada muito numeroso, e andou a passos rápidos e constrangidos

    (parecia então pisar em solo estrangeiro)

    até o banheiro feminino. Ali, trancou-se em uma das cabines, sentou-se sobre a tampa do vaso sanitário, e pôs se a chorar como há anos não chorava, fazendo um grande esforço para que a imensa dor emocional que sentia não fosse traduzida em gritos ou lamentos altos. Chorou baixinho. Uma hora depois, quando já ninguém mais estava no escritório, afinal era sexta e todos iam-se embora mais cedo ou trabalhavam de casa, ela abriu a porta da cabine e, com o rosto inchado e os olhos injetados de sangue devido ao choro, ajeitou a roupa e partiu para seu apartamento, onde, desde então, há quase uma semana, Glória encontra-se reclusa.

    Há tempos e, mais ainda, depois de completar sessenta e cinco anos de idade, vinha passando por sua cabeça que talvez estivesse se aproximando o dia de parar de trabalhar. Muito embora gostasse muito de seu trabalho, tinha consciência de que, mais dia menos dia, a idade pesaria e aqueles comentários que, não raro, chegavam até ela pela rádio corredor da empresa, de que estaria velha demais para a função que desempenhava, resultariam em sua demissão.

    Só não esperava ver-se demitida justo no mês de seu aniversário, na verdade dois dias depois. No dia em que completara seus sessenta e cinco anos, o pessoal do trabalho havia preparado uma comemoração, como faziam para todo mundo, com bolo, Coca-Cola, velinhas e todo mundo cantando para ela um parabéns a você. Ficara tão emocionada. Estava presente todo mundo de seu setor, inclusive seu chefe, o mesmo que, dois dias depois, a chamaria numa sala de reunião e a demitiria.

    Bastante econômico com as palavras no dia a dia, ele havia sido ainda mais lacônico no dia em que mandara Glória para casa. Dissera-lhe apenas que a empresa estava passando por algumas restruturações e que, nesse processo, demissões eram necessárias, naturais e esperadas. Vai ver nem eu mesmo fique, ele disse, e olhando em retrospecto, parece a Glória que ele dissera aquilo só para amenizar o peso na consciência dele por estar mandando-a embora.

    Glória tinha em casa uma caixa cheia de fotografias que, ao longo dos anos, tirou ao lado do pessoal da empresa, em comemorações as mais diversas. Por todo esse tempo, considerou-os família. Não mais. Desde que saíra da empresa, não recebeu nem sequer uma ligação de nenhuma daquelas pessoas, nem ao menos para dizer-lhe Vai ficar tudo bem ou Estou aqui caso precise de algo. Nada. Bando de ratos e ratazanas, ia pensando enquanto reduzia a pedacinhos todas aquelas fotos. Depois de terminar de destruir aquelas fotografias, levou os pedacinhos a que as reduzira ao já então volumoso saco de lixo, que seguia sem ser descartado desde sexta-feira.

    Não demorou para os vizinhos do andar começarem a sentir o mal cheiro que saía do apartamento de Glória, devido ao acúmulo de lixo ali dentro. Dona Helena, a senhora viúva que era vizinha de porta de Glória, começou a estranhar não apenas o mal cheiro, mas também não ver nem ouvir mais Glória sair ou entrar, nas raras vezes que tinha que buscar a comida que os entregadores deixavam na portaria. Foi avisar o síndico, Seu Zé, e pedir a ele Vai bater lá na porta dela e ver se tem alguém em casa, já que ela mesma não tivera resposta ao tocar a campainha do apartamento de Glória. Quando Seu Zé foi lá, viu as contas acumuladas na soleira da porta e sentiu o mal cheiro nauseabundo que saía por entre as frestas da fechadura. Chamou Ô Dona Glória, bateu, chamou de novo Ô Dona Glória. Ao ouvir Seu Zé chamando lá fora, Dona Helena saiu à porta para acompanhar o que acontecia. Nada de Glória vir atender. Por alguns minutos, os dois ficaram em silêncio em frente à porta do apartamento de Glória, sob o olhar misericordioso de uma Nossa Senhora de gesso que a ornava, escondendo o olho mágico.

    Seu Zé chamou a polícia e, quando os policiais chegaram, outros vizinhos haviam se juntado a Seu Zé e Dona Helena na frente da porta do apartamento de Glória. Uma dupla de policiais, dois homens fortes, bateram à porta e chamaram Dona Glória, Ô Dona Glória. Nada de ela vir atender. Ao fundo, vindo de algum apartamento próximo, ouvia-se o choro insistente de um bebê. Já temendo pelo pior, os policiais pediram aos vizinhos que se afastassem e arrombaram a porta do apartamento de Glória.

    Para surpresa e choque de todos, que devido ao mal cheiro nauseante que o apartamento há dias exalava, esperavam pelo pior, algo como um corpo em decomposição, o apartamento estava completamente vazio, limpo, prístino, todo branco como uma nuvem de um dia ensolarado. Nem Seu Zé nem Dona Helena nenhum outro vizinho tinha visto qualquer movimento de mudança. Tudo muito estranho, pensaram todos. As mulheres até se benzeram, fazendo o sinal da cruz sobre seus peitos.

    Caminharam todos em passos de procissão até o fundo do apartamento. Foi quando chegaram ao quarto que era de Glória que o maior espanto os tomou de assalto. Em meio ao cômodo vazio, viram uma caixinha de música, com uma bailarina a girar na ponta dos pés, tocando uma melodia de ninar como que acionada por uma pilha de energia infinita.

  • a faxineira

    a faxineira

    Naquela manhã, ao acordar, sentiu um certo mal-estar, um enjoo, tudo acompanhado de uma angústia, uma tristeza… não sabia bem dizer o quê. Era como se, durante a noite, tivesse pulado de pesadelo em pesadelo, e isso ao final a tivesse deixado nauseada. Mas Julia não se recordava de ter tido pesadelos naquela noite; de fato, eram raras as manhãs, muito raras mesmo, em que acordava com lembranças dos sonhos havidos na noite anterior.

    Julia levantou-se da cama e foi ao banheiro para fazer sua toalete, tomar seu banho matinal, escovar os dentes, pentear-se, passar um perfume, maquiar-se, tudo para ficar, enfim, pronta para enfrentar mais um dia. Já se encaminhava para a cozinha, onde tomaria o seu café da manhã, mas nada daquele mal-estar que vinha sentindo desde que acordara a abandonar.

    Tomou um café puro, pois se sentia enjoada demais para comer qualquer coisa. Nem as bolachinhas integrais que gostava de comer pela manhã estavam descendo. Terminado o café, pegou sua bolsa e saiu de casa, deixando a chave embaixo do capacho, em frente à porta do apartamento, para a faxineira poder entrar quando chegasse mais tarde. Era a mesma que trabalhava com ela há mais de cinco anos. Sentia-se confiante de deixar a chave para a faxineira entrar e sair. Mesmo tendo estabelecido essa relação de confiança, não sabia o nome da mulher que logo mais adentraria seu apartamento para fazer a faxina diária, abrindo a porta com a chave que ela sempre deixava embaixo do capacho.

    A faxineira costumava trabalhar ali três vezes por semana, todas as semanas. Chegava cedo, pouco depois de Julia sair para o trabalho, e terminava seu expediente no final da tarde, algumas horas antes da dona da casa chegar. Ao longo dos anos em que a faxineira trabalhou para Julia, praticamente nunca haviam se encontrado. Eram quase como estranhas uma para a outra. Nos dias de pagamento, a faxineira recebia um cheque que Julia deixava sobre o aparador, com o valor da semana, descontado o valor dos alimentos que ela pegava da geladeira ou da despensa para consumo próprio. Julia tinha controle de tudo o que entrava e saía de casa e, portanto, sabia quando a faxineira consumia algo que não lhe pertencia. Para Julia, combinado era combinado e não fazia parte do ajuste que a faxineira pudesse comer de graça enquanto em serviço no apartamento dela. Por isso, a seu ver, esses descontos eram justos. Na primeira vez em que se viram, na entrevista de emprego, Julia chegou a perguntar-lhe:

    — Qual seu nome?

    Qualquer que tenha sido a resposta naquele dia, Julia não mais se recordava. Desde então, chamava aquela mulher simples, vinda da periferia distante e pobre da cidade, que em três vezes por semana ia até sua casa, tão somente pela função que ela desempenhava ali: faxineira.

    Naquele dia, Julia teve que retornar bem mais cedo do trabalho: o mal-estar que vinha sentindo desde a hora em que acordara foi piorando ao longo do dia e ela se sentia demasiadamente fraca para continuar trabalhando. Ao chegar em casa, já quase prestes a desmaiar, tamanha a fraqueza que sentia, encontrou com a faxineira a terminar de limpar a sala.

    — Oi, Dona Julia.

    Disse a faxineira, sem esboçar grande entusiasmo, talvez por conta do susto que levara: tão raro era poderem se encontrar pessoalmente.

    Sem se lembrar do nome da mulher que limpava sua casa, não restou a Julia outra alternativa senão dizer:

    — Oi.

    Assim, seco.

    Enquanto caminhava na direção de seu quarto, Julia pediu a faxineira que lhe preparasse um chá, algo que estava fora do escopo de seus serviços. Ainda assim, a faxineira preparou um chá de boldo e levou para Julia, que então já descansava em sua cama.

    —Tome, Dona Julia.

    Disse a faxineira ao chegar ao quarto e se deparar com Julia deitada, toda enrolada em cobertas: ela estava febril.

    — Cuidado pois está muito quente.

    Advertiu-lhe a faxineira, antes de deixar a xícara passar de suas mãos para as mãos de Julia, que, em seguida, bebeu todo o chá quase que de um gole só, sem se importar com quão quente estava a bebida. Intrigada pela visão daquela mulher que, há pouco, havia sido tão gentil com ela, parada ali diante de sua cama, a olhá-la com uma ternura distante, Julia perguntou-lhe:

    — Qual o seu nome?

    A essa pergunta, sucedeu-se uma longa pausa.

    Julia então caiu no sono por efeito do chá de boldo, que de fato nada tinha dessa erva: havia nele uma mistura de cogumelos que poderia ser letal, a depender da quantidade consumida. Era o mesmo chá que ela tomara no dia anterior o que acabou por causar-lhe o mal-estar à noite. A faxineira tinha deixado o chá pronto dentro de uma garrafa térmica posta sobre a bancada da cozinha, com um bilhete avisando Julia que era o chá que ela pedira para fazer. Diferentemente daquele tomado no dia anterior, o de agora tinha uma quantidade letal de cogumelos.

    Julia ainda conseguiu juntar forças para novamente perguntar à faxineira:

    — Qual o seu no…?

    Mas antes mesmo de conseguir completar a pergunta, desfaleceu… ou morreu?

    Por coincidência ou não, foi nesse momento que tocou o telefone celular que Julia deixara na mesinha ao lado da cama. Num gesto impensado, a faxineira o atendeu.

    — Alô, é a Julia?

    Alguém perguntou do outro lado da linha.

    — Ela mesma.

    Respondeu-lhe a faxineira, com os lábios e os olhos a sorrirem, pois finalmente alguém naquela casa a chamara por um nome.

  • Na sala de casa

    Na sala de casa

    Na sala da casa, encontramos pai, mãe, filho e filha, todos diante da televisão

    Que segue ligada em uma novela qualquer

    Na novela que ninguém presta atenção

    Pareciam tão felizes na fotografia

    Há pouco publicada numa rede social

    Na rede na qual todos tinham perfis

    Curtiam e eram curtidos

    Mas não se tocavam

    Não se olhavam

    Não conversavam

    Apenas gostavam

    E odiavam

    E invejavam

    E compravam

    E descartavam

    Adicionando

    Deletando

    Bloqueando

    Silenciando

    Qual silêncio

    Quanto barulho

    Na sala de casa.

  • Madalena

    Madalena

    O aroma inebriante que tomava conta da cozinha denunciava qual era o prato cujo preparo ficava a cargo do forno, que, a julgar pelo calor do ambiente, estava ligado em fogo alto há algum tempo. E assim ficaria por pelo menos mais meia hora, tempo suficiente para completar o necessário para que aquele prato que Madalena assava no forno ficasse pronto, segundo a receita que ela havia visto em um programa matinal de culinária no dia anterior. Dentro do forno, Madalena assava uma lasanha, o prato preferido de seu único filho, Pedramérico, que, dali alguns minutos, chegaria para reencontrá-la após quase cinco anos distantes.

    Durante esses anos, mãe e filho mal se falaram – as raras vezes em que isso ocorreu foi sempre por telefone, em breves ligações nas quais ele e ela trocavam meros cumprimentos que, no caso dele, serviam apenas para saber se a mãe ainda estava viva ou se batera as botas. Nada além disso.

    No passado, com quinze anos então recém-completados, Pedroamérico fugiu da casa da mãe, pois não suportava mais apanhar dela quase todos os dias. Vítima de uma educação severa, na qual crianças não tinham voz nem tampouco vez, desde sua infância Madalena somente havia aprendido a educar fazendo uso da violência física, a mesma que ela sempre aplicara na educação de Pedroamérico. Para azar dele, havia um agravante: Madalena acreditava que, quanto maior a violência utilizada para educar, melhor era a educação que daí resultaria.

    Ao fugir de casa, Pedroamérico havia jurado para si mesmo que nunca mais voltaria, mas, com o passar do tempo, ele foi aos poucos revendo essa decisão até se convencer de que sua velha mãe merecia ao menos uma segunda chance.

    E o dia do encontro que marcaria ao menos uma aposta nessa segunda chance havia enfim chegado: um sábado que, não fosse por isso, seria um sábado qualquer na vida dele ou de sua mãe. Pela manhã, Madalena tinha ido ao mercado para comprar os ingredientes da lasanha. Fez questão de comprar a melhor massa, presunto e queijo que seu escasso dinheiro de aposentada permitia. Pensou em também levar um pote de sorvete, a sobremesa preferida de Pedroamérico, mas não tinha como pagar por essa extravagância: Madalena tinha um pacote de boletos aguardando quitação para a semana seguinte e não queria ver-se na situação de má pagadora perante a companhia de luz ou a de gás, só para mencionar algumas das contas que teria que honrar já na próxima segunda-feira.

    Enquanto a lasanha seguia assando no forno, Madalena cuidou de arrumar a mesa, jogando por sobre seu tampo redondo uma toalha estampada com motivos florais, em cima da qual depositou dois pratos, dois pares de talheres e dois copos. Deixou livre o centro da mesa, pois ali depositaria o marinex com a lasanha. Ela também aproveitara a manhã para fazer uma faxina na casa e, assim, sinalizar para Pedroamérico que aquela Madalena que aguardava por ele naquele sábado não era a mesma desleixada que convivera com ele antes de sua partida dali, que pouco ou nada se interessava em zelar para que a casa estivesse limpa e organizada: à época, vivia-se ali em meio a roupas jogadas pelos cantos, lixo para retirar, poeira e odores para todos os lados. 

    Madalena passara toda sua infância e adolescência tendo de lidar com um pai alcoólatra e violento, daí por que, para além de sua complicada relação com autoridade, organização, também sua relação com qualquer bebida alcoólica era cercada de ressentimentos. Nas várias vezes em que seu pai chegava em casa bêbado, ele fazia de Madalena uma vítima fácil das revoltas e frustrações dele: as surras eram frequentes, sempre sob o olhar indiferente de sua mãe, uma mulher cujo santo jamais bateu com o de Madalena – eram como estranhas uma para a outra. Mesmo diante desse histórico conturbado, Madalena gostava de tomar um pinga, beber uma cerveja. Bebia todos os dias, mas não se julgava dependente da bebida. Porém, não serviria nada alcoólico para acompanhar a lasanha. No lugar de um vinho, que raramente bebia por causa do preço, ou da cerveja, Madalena ofereceria apenas uma Coca-Cola, que ficaria guardada na geladeira até a hora de servir.

    O forno apitou avisando que o tempo de cozimento da lasanha chegava ao fim. E nada de Pedroamérico chegar. Vai ver pegou trânsito, Madalena pensou. Ela imaginava que ele vinha de longe, não sabia dizer de onde, e que, portanto, poderia demorar, era natural, pensou. Foi checar se havia alguma mensagem dele no celular dela. Nada. Pensou em mandar uma mensagem para ele perguntando

    — Onde está?

    ou

    — Está chegando?

    mas jamais um

    — Está tudo bem?

    pois seria uma questão demasiadamente ampla. E sempre cabem muitas respostas para questões amplas. E Madalena não queria tantas respostas, queria apenas saber se Pedroamérico estava chegando dentro do horário que dissera a ela que chegaria.

    Ela então desligou o forno, tirou a lasanha lá de dentro e a pôs sobre o centro da mesa, para esfriar um pouco. Depois, sentou-se em uma das cadeiras e ficou a contemplar a lasanha quente e fumegante sobre a mesa, enquanto bebericava uns goles de Coca-Cola misturada com cachaça.

    Sobre o aparador, ao lado da porta de entrada da casa, havia dois porta-retratos com fotos, uma com Madalena tendo ao colo Pedroamérico bebê e outra com uma selfie recente de Madalena a ocupar toda a quadratura da foto, sem revelar ao fundo o local onde fora tirada. Na foto com Pedroamérico bebê, ela sorri para a câmera emulando as mães da igreja que frequentava, que também faziam questão de sorrir nas fotos com seus bebês. Essas fotos eram coladas no mural da igreja, como forma de avisar os fiéis que a frequentavam sobre para quem direcionar suas doações e preces.

    Duas horas já haviam se passado desde que a lasanha ficara pronta e Madalena ainda seguia sem notícias do paradeiro de seu filho. Nesse tempo, a lasanha acabou esfriando. Madalena voltou a verificar se havia alguma mensagem de Pedroamérico em seu celular. Novamente nada.

    Então se levantou e foi até a frente da casa a fim de olhar, até onde sua vista alcançava, se ali pela rua havia sinais da chegada do filho. Naquela hora da tarde, com o sol tinindo de quente, a rua jazia praticamente deserta, sem ninguém a percorrer suas calçadas. Voltou para dentro da casa e recolocou a lasanha no forno, mas sem acendê-lo novamente. Abriu apenas a chave do gás e, mantendo o forno aberto, deixou que o gás se espalhasse pela casa toda, preenchendo todos os seus espaços com aquele seu cheiro metálico tão característico.

    Com a caixa de fósforos na mão direita, Madalena preparava-se para acender o forno, quando alguém bateu à porta e chamou:

    — Mãe?

    Era Pedroamérico que chegava, pensou Madalena.

    Deixou de lado a caixa de fósforos e correu meio desembestada até a porta de entrada. Ao abri-la, não viu ninguém ali fora: a frente da casa estava tão vazia quanto no momento em que ela saíra para ver se avistava o filho a chegar pela rua. Ela jurava ter ouvido seu filho bater à porta e chamar:

    — Mãe?

    Decidiu deixar a porta aberta para dispersar o gás, fazendo-o ir para o lado de fora da casa. Feito isso, foi conferir novamente seu celular e viu ali na tela o aviso de uma ligação perdida que havia partido do celular de Pedroamérico. Com as mãos trêmulas, ela pegou o telefone e apertou o botão para chamar de volta o telefone do filho. Do outro lado da linha, mesmo diante da insistência dos toques da ligação, ninguém atendeu.

    — Mãe?

    De novo, era Pedroamérico que ela ouvia chamar, mas desta vez o chamado vinha do quarto que o menino ocupara quando ainda morava com ela. Aos tropeços, Madalena foi caminhando até lá, temerosa de mais uma vez ser um chamado em falso.

    Ao abrir a porta do quarto do menino, que Madalena tinha preservado do mesmo modo como ele deixara quando fugiu daquela casa, ela viu, sem esboçar surpresa, Pedroamérico deitado sobre sua cama, com o corpo todo cheio de lesões e hematomas das surras que levara de sua mãe.

    Madalena sentou-se na beira da cama, pousou a mão direita sobre a pele fria do rosto de Pedroamérico e, com voz serena, perguntou-lhe:

    — Está tudo bem?

    A mesma pergunta demasiadamente ampla que tinha evitado até então, por receio das muitas respostas que poderia contemplar.

    Receio que se provou desnecessário, ao menos naquela ocasião, pois de Pedroamérico não recebeu resposta nenhuma.